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segunda-feira, 8 de maio de 2023

PRÁTICAS ARTETERAPÊUTICAS COM CRIANÇAS NO TRANSTORNOS DO ESPECTRO AUTISTA

 


 Por Tania Salete – RJ/CE

 @caminhartes.arteterapia

 

 

 

“A gente bota essas experiências fortes

de lado, mas elas ficam acontecidas

dentro da gente; e os fragmentos

delas formam um novo desenho lá no

fundo do nosso caleidoscópio.

Só que no nosso caleidoscópio as

imagens viradas – mesmo parecendo

que nunca mais vão voltar, acabam

aparecendo de novo – porque a gente

não deixa de ser cada desenho que

criou”. (Lygia Bojunga).

 

 

INTRODUÇÃO

            Em texto anterior, publicado recentemente aqui no Blog, abordamos a atuação da Arteterapia no contexto de crianças no Transtorno do Espectro Autista (CLIQUE AQUI).

           Neste texto, faremos um recorte sobre materiais, aplicabilidades e adaptações para este contexto tão singular e ainda em expansão no trabalho do arteterapeuta, tendo em vista que a Arteterapia com crianças privilegia as experiências sensoriais e, a partir destas promove inúmeros benefícios, como: expressão simbólica, estímulo à imaginação, criatividade, potencialização dos processos de aprendizagens, relaxamento, sentimento de pertencimento, estímulo ao desenvolvimento das habilidades motoras, cognitivas, sociais,  autorregulação emocional, dentre outros. 

            Entretanto, para além da pesquisa continuada sobre materialidades e suas aplicações na Arteterapia, outros conhecimentos prévios são indispensáveis no processo terapêutico com crianças de um modo geral, dentre eles, investir no estudo sobre o desenvolvimento infantil, ou seja, os marcos do desenvolvimento, que podem ser entendidos como um conjunto de habilidades que a maioria das crianças consegue fazer em uma determinada idade. Este conhecimento prévio certamente fará toda diferença na escolha do tipo de material expressivo mais apropriado para cada criança.  Além disso, segundo Coutinho, “o terapeuta precisa apurar sua capacidade de compreender mensagens que lhe cheguem por meio das modalidades não verbais de comunicação. As posturas, gestos, forma de caminhar, de olhar, o tom de voz,  ritmo do movimento. Tudo isso pode revelar um código bem mais rico do que palavras.” (p.18)

            Ao iniciar nesta nova seara de atendimentos às crianças no Transtorno do Espectro Autista, fui me conscientizando de que a bagagem trazida da formação precisaria passar por um ajuste mais fino, devido as peculiaridades deste público, pois um número expressivo de crianças autistas apresenta   sensibilidade sensorial (também conhecido por distúrbio na integração sensorial), que pode ser tátil, visual, olfativa e outras causando incômodos e até resistência às sessões.  Sendo esta uma característica bastante comum, é necessário mais conhecimento sobre este tema específico e importante na prática do arteterapeuta para que sejam promovidas as devidas adaptações para cada criança, respeitando sempre seus limites e tempo de ajustamento ao processo.

            Algumas estratégias para engajamento de pacientes com mais sensibilidade sensorial podem ser adotadas, como por exemplo:  rotina (previsibilidade) nas sessões, limitar o acesso de materiais de artes e/ou excesso de estímulos no ambiente (iluminação excessiva, tipos de músicas ou sons); para aqueles com comportamentos mais rígidos ou com dificuldades de transacionar entre atividades e ambientes,  é interessante incluir na rotina alguns minutos antes do término da sessão, por exemplo, para que se reorganize e guarde os materiais, principalmente com a cooperação deles. Desta forma, a criança vai compreender que estamos finalizando aquele momento. Isso pode ser feito com alarme suave do celular, um sino delicado, com música ou som de um instrumento musical. Assim, proporcionamos um ambiente mais seguro, confiável e minimizamos a ansiedade e possível desregulação. Pode parecer uma rotina um tanto óbvia no contexto terapêutico de maneira geral, entretanto, no caso de crianças com esta singularidade,  isso é bastante importante e até imprescindível.   

Patrícia Winck, em palestra sobre o Autismo, ressalta: “Conheça mais sobre o autismo, mas não esqueça que ao atender uma pessoa autista você está conhecendo e aprendendo sobre o seu autismo, suas peculiaridades e potencialidades. Tudo que é e o que traz para sua rotina, seus aprendizados e necessidades.” 

        Orrú destaca que “O TEA (Transtorno do Espectro Autista) pode se manifestar de maneira semelhante e, ao mesmo tempo, distinta em cada indivíduo. E que cada pessoa é única, sendo que o TEA é uma das singularidades que compõe a subjetividade de cada pessoa. Portanto, o TEA em seu quadro sintomático pode se repetir em sua manifestação por todo planeta, no entanto, as pessoas não se repetem, elas são únicas, são singulares e, antes de qualquer categoria de diagnóstico, são seres humanos que devem ser respeitados em todas as suas demandas e direitos sociais.” (p.22-23)

 

OS CONTOS, CANTOS E ENCANTOS – PRÁTICAS NA SINGULARIDADE

         O brincar é, sem dúvida, a melhor maneira de se conectar com a criança, pois dentre tantos benefícios, viabiliza sua livre expressão. A arte é uma outra fonte de conexão e interesse dos pequenos. Afirma Coutinho que, “ao pintar, desenhar, modelar, a criança se encontra diante de múltiplas possibilidades criativas, explorando os materiais, o que se constitui uma atividade enriquecedora, que combina e aguça todos os sentidos, sem nenhuma necessidade de ensinar, quando pode tentar, ousar, vivenciar.” (p.64).  Assegura ainda que “criar é uma das formas mais eficientes no cuidado com a saúde emocional das crianças, por resgatar ou alimentar o seu potencial criativo”. (p.40)

Ferreira destaca que:

“a criança produz arte quando atribui significados às suas experiências. Ela transforma o vivido, o ouvido, o visto, o sentido, de maneira singular e autoral através de desenhos, gestos, cantos, escritas, com uma infinidade de possibilidades de representações. A arte está por todos os lados, desde a cantiga na voz materna para o recém-nascido, que tem o potencial de acalmar e serenar, até à linguagem simbólica na criança mais velha, que já consegue explorar o imaginário e os contos de fada.” (p.23)

E Pilloto ressalta que:

 “para a criança, importam o processo e a experiência no ato do fazer (garatujar, balbuciar, movimentar, sonorizar...). É o adulto que muitas vezes lhe impõe significado, determinando o produto como até mais importante que o ato criativo da criança. Uma pista é aproveitar ao máximo o tempo de convívio com as crianças, deixando-as livres para explorar suas várias formas de expressão”.(p.22)

 

RELATOS DE CASO

- Contação de história com teatro de sombra e uma degustação possível.

Às sextas-feiras desenvolvemos um projeto mais interativo e interdisciplinar com as crianças, formado por  alguns profissionais da equipe (pedagoga, musicoterapeuta, nutricionista e arteterapeuta). Juntos, selecionamos uma história e de acordo com o grupo daquele dia, organizando a melhor forma de apresentar, de maneira que as crianças pudessem tirar o máximo proveito daquele tempo. Escolhemos a história do Macaco Caco e das frutas (muitas crianças autistas apresentam seletividade alimentar e com isso, transtornos alimentares importantes). A ideia era apresentar a história com teatro de sombras (com palitoches), depois cada um escolheria qual animal gostaria de levar para casa.

Como nosso grupo era de crianças acima de 7 anos, nível 1 de suporte, com boa interação social entre elas, a proposta de artes seria origami (técnica japonesa de dobrar papel) de alguns animais da história.

 

Depois deste momento, semelhante a história contada, faríamos uma “festa das frutas” (salada de frutas) e cada participante poderia experimentar um pouquinho. Conquanto fosse a mesma proposta, cada terapeuta tinha em mente seus objetivos específicos, porém o objetivo geral consistia em proporcionar inúmeras experiências às crianças, principalmente a degustação das frutas, que consiste num desafio importante. Alguns por conta da textura, sabor, odor ou consistência dos alimentos, não conseguem ingeri-los com facilidade. E, neste grupo específico, ficou muito clara esta dificuldade. Foi um momento de alegria ver que alguns conseguiram superar-se, principalmente pelo apoio e incentivo dos participantes. Foi um dia de conto e encanto para todos nós. É sempre um dia de cada vez.

               Nachmanovitch cita a importância dos processos compartilhados para vencer os desafios: “Uma vantagem da colaboração é que é mais fácil aprender com alguém do que sozinho.  (...) os amigos têm um poder incalculável (...) pela conversa, apoio, conforto, humor, (...) eles são o mais perfeito eliminador de bloqueios.”  (NACHMANOVITCH, 1993, p.92)  

          

Figura 1 – Teatro de sombras com palitoches

 

Figura 2 – Crianças experimentando a técnica do teatro de sombras.


Figura 3 – Hora da degustação como na história do macaco. 

-  Salão de cabelereiros

Nesta proposta simulamos um salão de cabelereiros onde cada criança deveria atender um cliente. Ofereceremos tiras coloridas de diversos papéis (reciclados), cola de isopor, uma bola de látex. A atividade consistia em colar as tiras de papel na bola (que estava presa na mesa), simulando os cabelos e depois deveriam colar as partes do rosto, representando uma expressão facial do cliente, após o serviço feito. O objetivo principal consistia em estimular as habilidades socioemocionais, compartilhamento e interação do grupo. 

Durante a atividade, perguntamos aos “profissionais do salão” como os clientes estavam se sentindo. A., 9 anos disse que seu cliente estava feliz!  Já J.M. 8 anos, declarou convicto de que seu cliente estava confiante, porém a expressão facial demonstrava puro desespero! Foi muito engraçado, pois ele repetia durante toda a sessão a confiança do cliente no seu trabalho. Ao final, cada um poderia levar seu cliente de cabelos cortados e bem penteado para casa. 

            Vale ressaltar que crianças autistas podem ter mais dificuldades para reconhecer e utilizar de expressões faciais e outras expressões não verbais para interagir com outros, por isso, aspectos ligados à comunicação como imitações, gestos, contato visual, tom de voz, metáforas, ironia são bastante desafiadores para eles.

 

Figura 4: A, cortando cabelo da sua cliente.

  

Figura 5- .JM. colando as tiras,  representando os cabelos do cliente que estava confiante. 

 CONCLUSÃO:

       O papel do arteterapeuta primordialmente  é de oferecer arte e disponibilizar os meios possíveis para que qualquer indivíduo que deseje se expressar possa fazê-lo sem temor de ser julgado, rejeitado, desprestigiado ou se achar “desimportante”, no vocabulário do Manoel de Barros.

        Concordo com esta definição tão poética de Doederlein: “arte é fuga, é lar, é para onde correm as pessoas que procuram se encontrar. É filha primogênita de quem tenta se expressar, nem sempre é o nosso melhor lado, mas é sempre o mais sincero. É o rosto do Criador por debaixo de qualquer máscara. É um incômodo na existência. É uma boa razão para se estar vivo. É o ofício dos corações inquietos.” (p.28).  

          Arte é para todos. Arteterapia é para quem quiser, mesmo que nem sempre possa expressar-se com as palavras, mas pode fazê-lo ao seu modo.  

 

BIBLIOGRAFIA:

- COUTINHO, Vanessa – Arteterapia com crianças, 4ª edição, Rio de Janeiro, Wak Editora, 2013

- DOEDERLEIN, João – O livro dos ressignificados, 1ª edição – São Paulo: Paralela, 2017

- FERREIRA, Suzana J (org)Infância com artes – Implicações das artes no processo de crescimento e desenvolvimento da criança, Guarujá/SP, 2020

- PILLOTTO, Silva S D - Linguagens da arte na infância 2ª. Edição. Univille, 2020, Joinville/SC

- NACHMANOVITCH, Stephen. Ser Criativo: o poder da improvisação na vida e na arte. Summus Editorial, SP. 1993.

- ORRÚ, Silva. Autismo, Linguagem e EducaçãoInteração Social no Cotidiano Escolar. WAK Editora,  3ª edição, Rio de Janeiro,  2012 

- WEISS, Mery – O Macaco Caco – Editora Betânia, Venda Nova/MG, 1995

- WINCK, Patrícia – Palestra realizada no dia 18 de abril de 2023, com tema: A Arteterapia como linguagem da escuta sensível no Autismo, promovida pela AATERGS -Associação de Arteterapia do Rio Grande do Sul em parceria com ACAT a Associação Catarinense de Arteterapia.

- Alphafono: Transtorno do Processamento Sensorial. Sinais de Alerta. Disponível em: <https://www.alphafono.com.br/transtorno-do-processamento-sensorial-sinais-de-alerta/>. Acesso em 29 de abril de 2023.

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Sobre a Autora:

 


 

Graduação em Fonoaudiologia, pós-graduação em psicopedagogia/UERJ.  Especialização em Arteterapia pela POMAR/RJ. Atuou com grupos terapêuticos e de apoio em casa de recuperação feminina e masculina. Grupos de Mulheres online (Grupo Rede).  Residindo em Fortaleza/CE há 6 anos, atua como Arteterapeuta no IPREDE/Clínica Conecta, compondo equipe multidisciplinar no crianças no Transtorno do Espectro Autista.

Contatos: Instagram/Facebook:@caminhartes.arteterapia

Textos publicados no Blog:

ARTETERAPIA – DANDO VIDA E COR - RESSIGNIFICANDO HISTÓRIAS - 2016

PRÁTICAS EM ARTETERAPIA COM INDIVIDUOS EGRESSOS DE RUA E ADICTOS EM RECUPERAÇÃO - 2017

FENIX: PARA ALÉM DO CRACK – RESGATE DO FEMININO EM COMUNIDADE TERAPÊUTICA PARA MULHERES - 2017

DESENHANDO E PINTANDO COM A TESOURA COMO O VOVÔ MATISSE - 2018

O BORDADO COMO INSTRUMENTO DE ARRAIGAMENTO E CONDUTOR DE VIDA - 2018

LEONILSON – BORDANDO A VIDA, AS DORES E OS AMORES - 2018

 DOIS METROS ACIMA DO CHÃO” – AS BOAS NOVAS DE BISPO DO ROSÁRIO - 2019

ESTENDENDO A REDE – ABRINDO OS BRAÇOS PARA O NOVO - 2020

ENTRE OS MÓBILES E STÁBILES DE CALDER – LIDANDO COM A DOR NA ARTETERAPIA - 2021

EXPERIENCIAR É BEBER DA PRÓPRIA FONTE – 2022

COMO UM RIO QUE FLUI: A ARTETERAPIA NO CONTEXTO DO AUTISMO - 2023

 

13 comentários:

  1. Que delícia de texto! Quanto aprendizado! E que trabalho bonito, Tânia! Parabéns! Tenho certeza de que suas crianças se beneficiam demais com a Arteterapia. Obrigada por compartilhar. Beijos

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  2. Tânia , mais um texto elucidativo compartilhando sua vivência no contexto do TEA . Realço aqui o papel fundamental da Arteterapia ao trabalhar a singularidade do indivíduo que protagoniza essa realidade .

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  3. Que texto lindo, sensível e direcionado a uma experiência real. É sempre tão bom aprender com você 🥰

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  4. Enquanto eu lia o texto sobre os pedacinhos de memórias espalhadas num caleidoscópio, fui bebendo cada palavra e visualizando a cena! Que incrível experiência!!! Gostei muito muito !

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  5. Que texto maravilhoso e que belíssimo trabalho!

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  6. Parabéns, Tânia! A Arte surge no meio do caminho... ampliando e transformando a construção interior e a poética nos possibilitando depararmos com pedras preciosas, que nos fazem entender a riqueza da VIDA, como as crianças com TEA.

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  7. A Tânia é a personificação da arte terapia, pelo amor, sensibilidade e profissionalismo. Além de domínio técnico-científico sobre o tema e aplicação prática de modo relevante em crianças com TEA

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  8. Tânia, querida! Parabéns pelo seu trabalho e pela forma de compartilhar o seu fazer com Arte nos atendimentos de crianças com TEA. Realmente é uma prática muito significativa para com esse público, que exige do profissional arteterapeuta uma atenção plena, uma escuta atenta e uma entrega ímpar ao buscar adentrar no universo interno de cada criança. Prática rica e primorosa. Grata por compartilhar seu conhecimento de maneira tão sensível e profunda. Que venham outras reflexões. Avanteeee beijos

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  9. Parabéns Tânia! Seu fazer alcançando o que mais tem de primoroso em atender crianças com TEA: as suas emoções de corpo e alma, suas sensações ultrapassando seus próprios limites e mostrando que é possível ser visto e acolhido, validado e compreendido. A essência de cada um em suas expressões livres, autenticas e genuínas. Um super abraço pra ti e continue com sua confiança e presença, elas te levam a esse lugar que só quem está junto de uma pessoa autista sabe qual é!!! Patrícia Winck

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  10. Patrícia, gratidão por suas palavras tão incentivadoras! Agradeço sobretudo as trocas e o caminho de parceria que vem sendo construído até aqui! Abraço !

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