segunda-feira, 6 de outubro de 2025

RESIDÊNCIA ARTÍSTICA E A ARTETERAPIA

 


Casa Estrelinha - Ilha do Ferro- Alagoas

Regina Célia Rasmussen – SP

@espacocrisantemo1

Em maio de 2025, participei de uma residência artística em Ilha do Ferro, um pequeno povoado de Pão de Açúcar, Alagoas. A experiência despertou em mim sensações e emoções adormecidas, como se minha alma fosse novamente convidada a respirar. Foram dias intensos, em que o olhar, o paladar, o corpo e a mente foram provocados e atravessados por novas descobertas.

A residência artística tem como propósito deslocar o artista para um contexto cultural distinto, oferecendo vivências capazes de nutrir e desafiar a criatividade. É um espaço-tempo em que o cotidiano se rompe e dá lugar à abertura: para o encontro com o outro, com a cultura local, com a natureza, com  o fazer artístico e, sobretudo, consigo mesmo.

Ilha do Ferro revelou-se para mim como uma viagem por um túnel do tempo. Foi como retornar à infância, a um período em que não existiam celulares, em que os perigos não eram tão iminentes e a vida parecia seguir em um compasso mais lento, com dias que se alongam no tempo Kairós.

O povoado, com cerca de 500 moradores, abriga em quase um quarto de sua população artistas populares. São homens e mulheres dedicados às mais diversas linguagens expressivas — e até ao mobiliário criativo — que carregam a marca singular da comunidade.

Éramos cinco residentes: três artistas visuais, uma escritora e eu - arteterapeuta criativa.

O coordenador da residência artística, Roger Basseto, é artista contemporâneo e educador, que valoriza o processo criativo. Ele explora cadernos (sketchbooks) e variadas técnicas em seu ateliê - Estúdio Pop - onde também oferece workshops.                                    

                                                  

 Roger Basseto

A casa que nos acolheu às margens do Rio São Francisco já se apresentava como um templo sagrado da arte local. Suas paredes e cômodos apresentavam símbolos do povo ribeirinho — esculturas, pinturas, bordados e objetos que transbordavam histórias. Esse ambiente, repleto de criação, era em si um convite à percepção e à imaginação. 




As manhãs se tornaram um convite para o fazer criativo. Cada gesto parecia dialogar com a paisagem e com a energia do lugar. Os almoços eram nas casas de moradores, momentos em que pude conhecer famílias, construir vínculos e ouvir narrativas que misturavam memórias ancestrais com crenças no futuro.

À tarde, seguíamos em visita aos ateliês, onde os artistas nos recebiam generosamente, apresentando seus processos criativos e as obras que expunham à venda — hoje, o grande motor da economia do povoado.

Entre tantas descobertas, chamou-me especial atenção o bordado típico da Ilha do Ferro, conhecido como Boa-Noite, caracterizado pela técnica de desfiar o tecido para formar delicados desenhos geométricos e florais com fios. Seu nome deriva de uma planta típica da região, e ele é repleto de significado, como se cada ponto guardasse a memória das mãos que o tecem e a identidade de um território.

Durante os dez dias em Ilha do Ferro, realizamos dois passeios que ampliaram ainda mais nossa experiência. Visitamos a cidade de Pão de Açúcar, com sua feira típica do Nordeste, e navegamos pelo majestoso Rio São Francisco até Entremontes — onde grande parte das mulheres se dedica ao bordado, perpetuando uma tradição delicada e ancestral — e até Piranhas, cidade marcada pela memória do cangaço, outrora conhecida por exibir as cabeças dos cangaceiros.

Ao cair da noite, quando o sol se despedia nas águas do Velho Chico e os pássaros faziam suas algazarras: íamos nos reunir com moradores e alguns poucos turistas no bar O Macumba. Sob o comando de André Dantas, o espaço transformou-se em uma verdadeira exposição permanente das artes e das histórias da Ilha do Ferro e de suas redondezas. Ali, entre conversas, risos e olhares curiosos, seguíamos desenhando e criando, embalados pelos estímulos visuais e pelo encantamento das histórias dos “Encantados”.

Senti fortemente o prazer da simplicidade: o sabor de um peixe fresco, o encontro das crianças em jogos e brincadeiras às margens do rio, o bordado realizado vagarosamente pelas mãos das mulheres da comunidade. Tudo me lembrava que a vida pode ser plena no essencial, sem a pressa e o excesso que tantas vezes nos afastam de nós mesmos.

Essa simplicidade, tão presente na Ilha do Ferro, ecoou dentro de mim como um convite à leveza. Percebi que, assim como na arteterapia, não é a complexidade do recurso que importa, mas a autenticidade do gesto - seja em um risco traçado no papel ou em um ponto bordado no tecido. Cada experiência carregava potência de sentido e me devolveu a alegria de estar no aqui e agora. Como afirma Zinker (2007 p.20 e 21):

                                                 “O processo criativo é terapêutico porque nos permite expressar e examinar o conteúdo e as dimensões de nossa vida interior. A vida tem a medida da plenitude que nos é possibilitada pela variedade de veículos que encontramos para concretizar, simbolizar e expressar de inúmeras maneiras todas as nossas experiências.”

Na convivência com os moradores, fui tocada pela maneira como vivem com dignidade e beleza, mesmo diante das limitações materiais. Esse olhar me fez refletir sobre o quanto podemos nos nutrir do simples — e como a arteterapia, em sua essência, também é um exercício de reencontro com aquilo que é essencial em nós: o processo criativo, o vínculo humano, a expressão do que pede voz.

Na Ilha do Ferro, percebi, mais do que nunca, que a arte não é apenas produção, mas modo de viver. Manifesta-se no ato singelo de bordar, na escultura que nasce da madeira, nas sentadas preguiçosas na porta de casa ao entardecer e na expressão de quem compartilha sua história. Essa experiência me mostrou que a arteterapia também se constrói assim: na confluência entre a vida e a criação.

Voltei trazendo comigo não apenas boas lembranças, mas a certeza de que o essencial é o que sustenta nossa humanidade.

Acredito que seja justamente isso que uma residência artística, assim como o setting de arteterapia, nos oferece de mais valioso: a oportunidade de experienciar um espaço em que arte e vida se encontram. É nesse encontro - na contemplação, no fazer artístico, no contato com o outro, no coletivo e na simplicidade -  que reside a verdadeira potência da transformação.

Referências

BASSETO, Roger - https://www.instagram.com/rogerbassetto/

ILHA DO FERRO - https://www.instagram.com/_ilhadoferro/

STUDIO POP - https://www.instagram.com/pop_studiopop/

ZINKER, Joseph. Processo Criativo em Gestalt-terapia. .ed. - São Paulo: Summus Editorial



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Sobre a autora: Regina Célia Rasmussen



Bordadeira

Bacharel em Pedagogia (Faculdade de Educação USP)

Pós graduada: Orientação Educacional, Supervisão Escolar, Gestão Escolar, Psicopedagogia e Arteterapia.

Gestora do Espaço Crisântemo - @espacocrisantemo1

 

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