Casa
Estrelinha - Ilha do Ferro- Alagoas
Regina Célia Rasmussen – SP
@espacocrisantemo1
Em
maio de 2025, participei de uma residência artística em Ilha do Ferro, um
pequeno povoado de Pão de Açúcar, Alagoas. A experiência despertou em mim
sensações e emoções adormecidas, como se minha alma fosse novamente convidada a
respirar. Foram dias intensos, em que o olhar, o paladar, o corpo e a mente
foram provocados e atravessados por novas descobertas.
A
residência artística tem como propósito deslocar o artista para um contexto
cultural distinto, oferecendo vivências capazes de nutrir e desafiar a
criatividade. É um espaço-tempo em que o cotidiano se rompe e dá lugar à
abertura: para o encontro com o outro, com a cultura local, com a natureza,
com o fazer artístico e, sobretudo,
consigo mesmo.
Ilha
do Ferro revelou-se para mim como uma viagem por um túnel do tempo. Foi como
retornar à infância, a um período em que não existiam celulares, em que os
perigos não eram tão iminentes e a vida parecia seguir em um compasso mais
lento, com dias que se alongam no tempo Kairós.
O
povoado, com cerca de 500 moradores, abriga em quase um quarto de sua população
artistas populares. São homens e mulheres dedicados às mais diversas linguagens
expressivas — e até ao mobiliário criativo — que carregam a marca singular da
comunidade.
Éramos
cinco residentes: três artistas visuais, uma escritora e eu - arteterapeuta
criativa.
O coordenador da residência artística, Roger Basseto, é artista contemporâneo e educador, que valoriza o processo criativo. Ele explora cadernos (sketchbooks) e variadas técnicas em seu ateliê - Estúdio Pop - onde também oferece workshops.
Roger Basseto
A casa que nos acolheu às margens do Rio São Francisco já se apresentava como um templo sagrado da arte local. Suas paredes e cômodos apresentavam símbolos do povo ribeirinho — esculturas, pinturas, bordados e objetos que transbordavam histórias. Esse ambiente, repleto de criação, era em si um convite à percepção e à imaginação.
As
manhãs se tornaram um convite para o fazer criativo.
Cada gesto parecia dialogar com a paisagem e com a energia do lugar. Os almoços
eram nas casas de moradores, momentos em que pude conhecer famílias, construir
vínculos e ouvir narrativas que misturavam memórias ancestrais com crenças no
futuro.
À
tarde, seguíamos em visita aos ateliês, onde os artistas nos recebiam
generosamente, apresentando seus processos criativos e as obras que expunham à
venda — hoje, o grande motor da economia do povoado.
Entre
tantas descobertas, chamou-me especial atenção o bordado típico da Ilha do
Ferro, conhecido como Boa-Noite,
caracterizado pela técnica de desfiar o tecido para formar delicados desenhos
geométricos e florais com fios. Seu nome deriva de uma planta típica da região,
e ele é repleto de significado, como se cada ponto guardasse a memória das mãos
que o tecem e a identidade de um território.
Durante
os dez dias em Ilha do Ferro, realizamos dois passeios que ampliaram ainda mais
nossa experiência. Visitamos a cidade de Pão de Açúcar, com sua feira típica do
Nordeste, e navegamos pelo majestoso Rio São Francisco até Entremontes — onde
grande parte das mulheres se dedica ao bordado, perpetuando uma tradição
delicada e ancestral — e até Piranhas, cidade marcada pela memória do cangaço,
outrora conhecida por exibir as cabeças dos cangaceiros.
Ao
cair da noite, quando o sol se despedia nas águas do Velho Chico e os pássaros
faziam suas algazarras: íamos nos reunir com moradores e alguns poucos turistas
no bar O Macumba. Sob o comando de
André Dantas, o espaço transformou-se em uma verdadeira exposição permanente
das artes e das histórias da Ilha do Ferro e de suas redondezas. Ali, entre
conversas, risos e olhares curiosos, seguíamos desenhando e criando, embalados
pelos estímulos visuais e pelo encantamento das histórias dos “Encantados”.
Senti
fortemente o prazer da simplicidade: o sabor de um peixe fresco, o encontro das
crianças em jogos e brincadeiras às margens do rio, o bordado realizado
vagarosamente pelas mãos das mulheres da comunidade. Tudo me lembrava que a
vida pode ser plena no essencial, sem a pressa e o excesso que tantas vezes nos
afastam de nós mesmos.
Essa
simplicidade, tão presente na Ilha do Ferro, ecoou dentro de mim como um
convite à leveza. Percebi que, assim como na arteterapia, não é a complexidade
do recurso que importa, mas a autenticidade do gesto - seja em um risco traçado
no papel ou em um ponto bordado no tecido. Cada experiência carregava potência
de sentido e me devolveu a alegria de estar no aqui e agora. Como afirma Zinker
(2007 p.20 e 21):
“O processo criativo é terapêutico porque nos permite expressar e
examinar o conteúdo e as dimensões de nossa vida interior. A vida tem a medida
da plenitude que nos é possibilitada pela variedade de veículos que encontramos
para concretizar, simbolizar e expressar de inúmeras maneiras todas as nossas
experiências.”
Na
convivência com os moradores, fui tocada pela maneira como vivem com dignidade
e beleza, mesmo diante das limitações materiais. Esse olhar me fez refletir
sobre o quanto podemos nos nutrir do simples — e como a arteterapia, em sua
essência, também é um exercício de reencontro com aquilo que é essencial em
nós: o processo criativo, o vínculo humano, a expressão do que pede voz.
Na
Ilha do Ferro, percebi, mais do que nunca, que a arte não é apenas produção,
mas modo de viver. Manifesta-se no ato singelo de bordar, na escultura que
nasce da madeira, nas sentadas preguiçosas na porta de casa ao entardecer e na
expressão de quem compartilha sua história. Essa experiência me mostrou que a
arteterapia também se constrói assim: na confluência entre a vida e a criação.
Voltei
trazendo comigo não apenas boas lembranças, mas a certeza de que o essencial é
o que sustenta nossa humanidade.
Acredito
que seja justamente isso que uma residência artística, assim como o setting de
arteterapia, nos oferece de mais valioso: a oportunidade de experienciar um
espaço em que arte e vida se encontram. É nesse encontro - na contemplação, no
fazer artístico, no contato com o outro, no coletivo e na simplicidade - que reside a verdadeira potência da
transformação.
Referências
BASSETO, Roger - https://www.instagram.com/rogerbassetto/
ILHA DO FERRO -
https://www.instagram.com/_ilhadoferro/
STUDIO POP - https://www.instagram.com/pop_studiopop/
ZINKER, Joseph. Processo Criativo em Gestalt-terapia. 2ª.ed. - São
Paulo: Summus Editorial
_________________________________________________
Sobre a autora: Regina Célia Rasmussen
Bordadeira
Bacharel em Pedagogia (Faculdade de Educação USP)
Pós graduada: Orientação Educacional, Supervisão
Escolar, Gestão Escolar, Psicopedagogia e Arteterapia.
Gestora do Espaço Crisântemo - @espacocrisantemo1
Muito interessante esse seu processo Regina
ResponderExcluir