Por Claudia Tona - RJ
claudiatona63@gmail.com
@libelula_psicopedagogia_arte
“Há beleza na vida, há beleza em tudo. Vocês veem?… Há beleza na alegria, e mesmo na saudade, na tristeza, no sofrimento e até na partida, há beleza. A vida é uma beleza.” (Nise da Silveira)
Como educadora, sempre valorizei a “aula passeio”, termo cunhado por Celetin Freinet. Para ele, a aula-passeio é uma prática que liberta estudantes do ambiente estritamente escolar para explorar o entorno, fomentando o contato com a realidade e a conexão entre teoria e prática. No contexto arteterapêutico, meu trabalho continua sustentado pelo mesmo pilar. Assim, com este relato, apresento um recorte das experiências que venho fazendo com o grupo de mulheres maduras, Sementes ao Pôr-do-sol – oficinas de arte para pessoas no entardecer da vida – incluindo as visitas guiadas a museus. Mas antes, é necessário contextualizar os pensamentos que me fizeram adotar uma prática mais comum na área da Educação, observando algumas conexões entre pensadores que considero importantes para o tema.
Comecemos pela Abordagem Triangular, da arte-educadora Ana Mae Barbosa, cujas ideias se conectam com a Arteterapia no sentido de como essa visão pode enriquecer e aprofundar o processo arteterapêutico, em se tratando das aulas passeio. Enquanto a Arteterapia foca na expressão e no autoconhecimento por meio da arte, a abordagem de Ana Mae oferece uma estrutura para que essa expressão ganhe maior consciência crítica e contextual, tanto para o paciente, quanto para o arteterapeuta. Trata-se do conhecer (contextualizar), apreciar (fruir) e fazer (produzir) Arte.
O fazer artístico é parte fundamental do processo arteterapêutico, onde o cliente materializa conteúdos do inconsciente por meio de diferentes linguagens artísticas e esta expressão se torna um ponto de partida para a reflexão sobre o seu mundo interno. A apreciação e a leitura da imagem são essenciais para o processo reflexivo em Arteterapia. Com o acompanhamento do arteterapeuta, o cliente conhece sua própria obra, compreendendo os símbolos, as formas e as cores como manifestações de seu inconsciente, bem como os materiais e as técnicas utilizadas. Na contextualização, a abordagem de Barbosa sugere um enriquecimento. O arteterapeuta pode levar o paciente a relacionar suas criações não apenas com sua história pessoal, mas também com o contexto histórico, social, cultural e familiar em que vive, permitindo uma compreensão mais completa das influências externas sobre seus sentimentos e comportamentos, pois todos nós vivemos no coletivo. A contextualização é o diferencial que a teoria de Ana Mae oferece à Arteterapia. Ao encorajar a reflexão sobre as condições sociais e culturais, o processo terapêutico se aprofunda. Por exemplo, a obra de um paciente pode refletir questões de gênero, racismo ou preconceitos, que ganham mais profundidade se analisadas sob uma perspectiva abrangente.
A Abordagem Triangular de Ana Mae Barbosa é um recurso para a organização da prática arteterapêutica ao oferecer uma estrutura que integra a expressão emocional (fazer artístico) com a reflexão estética e crítica (apreciação e contextualização), promovendo um processo mais consciente, completo e libertador para o paciente quando em visita guiada a museus, o que pode ser uma ferramenta complementar e enriquecedora para a arteterapia, pois proporciona um encontro direto com obras de arte em seu contexto original, estimulando a reflexão, a ressignificação e a expressão emocional dos pacientes. O museu se torna o espaço para a leitura mais aprofundada, coletiva e individual de imagens, indo além das obras produzidas na sessão. Os clientes têm contato com diferentes técnicas, estilos e épocas, ampliando seu repertório visual e estético. O arteterapeuta vai mediar a observação, incentivando o cliente a explorar como diferentes artistas representaram temas universais como medo, alegria, tristeza ou esperança. Essa análise pode trazer insights sobre as próprias emoções. Além do mais, o museu pode e deve ser um espaço de integração social, onde o cliente questiona seu lugar na arte e na sociedade. Para a Arteterapia, isso pode ajudá-lo a ressignificar o pertencimento e a identidade. O fazer artístico que acontece depois, na sessão de Arteterapia, se aprimora com a visita a museus. O contato com as obras pode inspirar e dar novas ideias aos pacientes, que retornam ao ateliê com um repertório ampliado para a criação, produzindo uma releitura pessoal, baseada nas percepções, emoções e reflexões que surgiram durante a visita, fortalecendo a autenticidade e a autoria. E as vantagens terapêuticas da visita a museus não param por aí.
A prática pode promover a redução da ansiedade e estresse: a contemplação de obras de arte em um ambiente tranquilo pode ter um efeito calmante, ajudando a restaurar a atenção e a reduzir a ansiedade; o aumento da autoconsciência e da criatividade (ao se conectarem com as emoções expressas na arte e refletir sobre a própria história, os clientes podem aumentar sua autoconsciência) estimula a criatividade, abrindo novas possibilidades de expressão; o pertencimento social, sobretudo para grupos em situação de isolamento ou com questões de saúde mental, pois a visita ao museu, especialmente em contexto terapêutico, fomenta a coesão social e a sensação de ser pertencente; o enriquecimento da narrativa pessoal, já que a arte pode evocar memórias e sentimentos, levando o sujeito a refletir sobre suas experiências de vida e a ressignificar sua narrativa.
Convido ainda para esta conversa, a psiquiatra Nise da Silveira, pioneira na luta contra o estigma da loucura, demonstrando o potencial criativo de seus clientes. Ela valorizava o sujeito em sua totalidade, independentemente de seu estado psíquico. Foi a criadora do Museu de imagens do Inconsciente, no Rio de janeiro, com a função de preservar, estudar e divulgar as obras dos clientes, dando a elas o estatuto de arte. O museu foi pensado como um espaço de reconhecimento e dignidade para a produção de quem era historicamente marginalizado, além de um espaço de pesquisa para cientistas nacionais e internacionais. A expressão do inconsciente através da criação artística era o ponto central do trabalho de Nise. Ela via a arte como a manifestação do mundo interior. Utilizava a interpretação das obras para entender os processos psicológicos dos clientes, fazendo uso da Psicologia Junguiana e da mitologia. Ela contextualizava o trabalho em relação ao universo simbólico e inconsciente de cada indivíduo.
Bem, então vamos à prática! Antes da visita guiada, o grupo de 5 pessoas de 60 a 80 anos já havia trabalhado com sua identidade, suas memórias desde a infância, usando materiais e técnicas diversas. Uma delas se interessa pela fotografia e este foi o gancho que eu precisava para que a minha proposta de saída cultural acontecesse. Na mesma rua da instituição, foi reinaugurado recentemente o Museu Antonio Parreiras, que estava fechado há mais de dez anos. Quando lancei a ideia, elas se entusiasmaram e então, passei à etapa da organização: o agendamento da visita guiada, informando o perfil do grupo à equipe do museu, o preparo do grupo sobre qual seria a consigna e, claro, o lanche para um piquenique coletivo. Todos esses preparativos fazem parte do acolhimento com afeto e são disparadores da vivência.
O MAP é cercado de verde. O som do vento nas folhas e dos pássaros e pequenos animais silvestres superam o movimento da rua onde é localizado. Combinamos o encontro no local e ali mesmo, no jardim, começou essa experiência sensível, emocional e afetiva, pois algumas haviam conhecido o Museu antes dele fechar. A visita guiada pela Exposição em cartaz foi enriquecida por uma experimentação sensorial, na qual usamos vendas para sentir cheiros e tocar em elementos da natureza sem o sentido da visão. Ao abrirmos os olhos, estávamos diante de duas obras de Parreiras que retratavam um incêndio na floresta e uma árvore morta (ambas dos anos 1930), o que explicou o aroma inicial de ervas e o barulho de chuva, substituídos posteriormente pelo cheiro de fumaça e estalidos de fogo. Foi um momento de reflexão profunda sobre a natureza e a importância do ecossistema, planejado e executado com maestria pela equipe do Educativo do MAP. Depois desse momento, o grupo ficou livre para fotografar o que mais as tocaram em todo o espaço de visitação, incluindo o jardim. Acompanhei o movimento de longe, mas com olhar e escuta atentos. Percebi que cada uma por si buscava cantos e recantos que as chamavam para perto, penetrando num outro plano, numa envolvente atmosfera de passado, presente e elucubrações futuras.
Pedi que elas enviassem as fotos mais significativas (em suas visões) para o grupo de WhatsApp e passei as orientações para o encontro seguinte, já na sede da Fundação: elas deveriam, além de me enviar as fotos, escolher uma delas, a mais importante para cada uma, e levar impressa.
Uma semana depois, o fazer artístico estava ali, se materializando. A consigna era: o que está além dos meus sentidos na visita ao Museu Antonio Parreiras? A técnica foi a amplificação de imagem, usando a foto selecionada e o material disponibilizado foi lápis aquarelável e aquarela, mas algumas me solicitaram lápis grafite e régua. Para sensibilização, exibi um vídeo com todas as imagens que elas me enviaram, possibilitando que elas revisitassem o Museu e relessem aqueles registros tão caros a elas.
Durante o processo de produção expressiva, houve comentários, como: “sinto-me uma criança brincando de pintar.”; ou “eu me lembro do momento exato em que fiz essa foto.” Percebi o quanto estavam envolvidas naquele trabalho de estimulação cognitiva, tão essencial para um envelhecimento saudável, ainda mais com Arte, afeto e diversão.
Essa vivência ainda não terminou, está acontecendo ainda, se amplificando e, a cada semana, elas descobrem algo a incluir nessa visão abrangente do seu mundo interno. E assim segue o grupo Sementes ao Pôr-do-Sol, para pessoas no entardecer da vida, semeando sempre, pois, no pensamento de Ana Mae Barbosa:
“A arte une mais que experiências de outra natureza. São as relações de fazer e padecer, e a energia de ida e vinda que fazem com que a experiência da Arte seja uma experiência renovadora e constantemente renovável”. BARBOSA, 2021.
REFERÊNCIAS
BARBOSA, Ana Mae e CUNHA, Fernanda Pereira , Abordagem triangular no ensino das artes e culturas visuais. 1ª ed. Ed. Cortez. SP, 2012
BARBOSA, Ana Mae. Arte na Pedagogia. 200 Revista GEARTE, Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 200-209, maio/ago. 2021. http://dx.doi.org/10.22456/2357-9854.117498
FREINET, Celestin. A Pedagogia do Bom Senso. Ed: WMF Martins Fontes (POD). 8ª edição. SP, 2022.
Formanda em Arteterapia pelo Espaço terapêutico Caminhos do Self, no Méier, RJ.
Como Pedagogoga e Psicopedagoga, atuou em todos os segmentos da Educação Básica, da Educação Infantil ao Ensino Médio, EJA e Educação Especial e Inclusiva, tanto como professora quanto gestora; nas escolas públicas e privadas, a Arte sempre foi seu instrumento principal, sua varinha de condão.
Atualmente, faz atendimentos individuais e em grupo, tendo como base a Psicopedagogia com abordagem em Arte.
É Coordenadora do Solar do Guri, segmento infanto-juvenil do Solar Artes e Terapias em Piratininga, onde organiza junto com a Trupe Ensolarada, eventos para celebração do brincar através da Arte.
Compõe a equipe multidisciplinar do Espaço Terapêutico Cíntia Magacho, no Centro de Niterói, onde realiza atendimentos individuais e participa da organização de Workshops periódicos sobre aprendizagem e saúde mental.
Na Fundação Cultural Avatar, no Ingá, promove a Oficina Sementes ao Pôr-do-sol, com pessoas maduras as protagonistas do presente relato.
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