segunda-feira, 25 de maio de 2020

OS LIMITES E A CRIATIVIDADE – Parte 2: Os materiais




Por Eliana Moraes MG/RJ
naopalavra@gmail.com

Parafraseando Manoel de Barros: a criatividade caça jeito. E este é o mote do arteterapeuta atuante em tempos de isolamento social. Quando recebemos a autorização da UBAAT para atuarmos em atendimentos on line durante o período da pandemia, observei que as primeiras perguntas surgidas nos debates giraram em torno dos materiais. Como trabalhar como arteterapeutas com as possibilidades em materiais tão comprometidas, restritas apenas ao que os experienciadores têm em casa?
Instigada por esta questão, resgatei alguns textos que escrevi para este blog no ano de 2018 e compilados no livro Pensando a Arteterapia Vol 2, ao qual eu já refletia sobre o trabalho arteterapêutico com a escassez de materiais, a partir de demandas que surgiam na minha clínica, mal sabendo o futuro que nos aguardava:

Seria a escassez de material um impeditivo para o arteterapeuta trabalhar? Na verdade, muito pelo contrário. Penso que essa efetivamente é a oportunidade para que, no campo do simples, a mola mestra da Arteterapia possa emergir: a criatividade.

Criar a partir da riqueza de possibilidades é muito interessante. Mas penso que criar diante do pouco ou do quase nada é, de fato, o chão da vida. A realidade da clínica mostra-nos que vivemos em tempos de crise financeira, perdas sucessivas de poder aquisitivo, redução de possibilidades múltiplas narradas por nossos pacientes com ar de frustração e derrota, sendo o discurso do “não posso” a tônica.

Então eu pergunto aos arteterapeutas, não seria justamente essa metáfora de vida que precisamos remontar em nossos settings terapêuticos? Diante do (que parece) pouco, para onde sua criatividade o leva? Ao que sua intuição o instiga? Quais possibilidades você pode se levar a enxergar diante do que tem à frente? (MORAES, 2019, p22-23)

Em tempos de pesquisa sobre a criatividade, um livro que tem me orientado muito é o “Ser Criativo: O poder da improvisação na vida e na arte” de Stephen Nachmanovitch. No capítulo “O poder dos limites” o autor nos convida a fazer as pazes com os limites, pois estes podem fazer o papel de contornos necessários justamente para estimular a criatividade:

As vezes amaldiçoamos os limites, mas sem eles a arte não é possível. Eles nos proporcionam algo com que trabalhar e contra o que trabalhar. No exercício de nossa arte, submetemo-nos, em grande medida, àquilo que os materiais nos determinam. A viscosidade da tinta, a tensão das cordas de um violino, o ego dos atores – todos esses pontos fracos e limitações podem ser encarados como a disciplina necessária para o despertar da criatividade. A própria língua é um veículo rico de obstáculos e resistências... (NACHMANOVITCH, p 81)

Vale destacar que é uma especificidade da Arteterapia estudar as linguagens e propriedades dos materiais, compreendendo justamente quais são os limites e as possibilidades de cada um, para que possamos promover o encontro do experienciador com o material que seja mais facilitador do seu processo. Neste sentido, podemos compreender que já faz parte do nosso cotidiano conhecer e manejar com destreza os “pontos fracos e limitações” dos materiais, bem como a criatividade que pode ser despertada por cada um deles.

Seguindo seu raciocínio:

Muitas vezes é mais fácil produzir arte de boa qualidade dentro de um baixo orçamento do que de um alto orçamento. Não estou recomendando a pobreza como modus operandi; é lógico que necessitamos de materiais para criar... Mas a necessidade nos obriga a improvisar com o material que temos a mão, a recorrer a uma engenhosidade e uma inventividade que talvez não emergissem se pudéssemos adquirir soluções prontas. (NACHMANOVITCH, p 81)

Creio que uma reflexão importante que o momento presente nos traz é que, durante nossa formação em Arteterapia, temos a oportunidade de nos ser ofertado uma infinidade de materiais a serem experimentados. É o tempo da “mesa farta”. Acredito que este seja um período essencial para nossa construção uma vez que somente no processo de profunda experimentação dos mais diversos materiais é que poderemos criar intimidade com cada um deles e suas propriedades, para enfim saber acessá-los singularmente a cada momento oportuno. Entretanto, é necessário reconhecer, que ao adentrarmos a prática, muitas vezes a realidade não é esta, mas o cenário que nos apresenta é o da escassez de materiais. Neste sentido precisamos justamente acessar nossa criatividade, “recorrer a uma engenhosidade e uma inventividade que talvez não emergissem se pudéssemos adquirir...” bem logo um belo ateliê equipado com todos os materiais dos nossos sonhos!

Em minha jornada, o processo de descobertas sobre o reaproveitamento de materiais tem sido uma grande oportunidade:

Uma das características de nossa contemporaneidade faz-se em um modelo materialista e consumista. Estamos acostumados aos “descartáveis” e todos os sentidos que esse termo contém. Pensar dessa forma acarreta uma série de desdobramentos, desde subjetivos, quando não investimos na “reutilização” e “reciclagem” de nossos conteúdos psíquicos mais profundos, até materiais, quando objetivamente entulhamos nosso planeta/casa de tudo que entendemos que já cumpriu sua função em nossa vida.

O arteterapeuta, como um administrador de materiais, pode investir em uma conscientização e responsabilização daquilo que utiliza como recursos em seu setting arteterapêutico... essa é uma prática que coopera com o próprio arteterapeuta, que não deve entender que a Arteterapia só se faz com a riqueza de materiais sobre a mesa. “O chão da vida” da prática arteterapêutica... dá-se na falta de possibilidade de grandes investimentos financeiros em materiais... Na escassez de material, não se faz Arteterapia? Ao contrário, muitas vezes a realidade da vida não está na riqueza de materiais/possibilidades, e a verdadeira criatividade está justamente em criar a partir do (quase) nada. (MORAES, 2019, p 32-33)

É tempo de irmos a campo, “caçando jeito” de trabalhar com Arteterapia, abrindo mão dos materiais que já compõem nosso primeiro repertório ou zona de conforto. Para isso, é tempo de pesquisas, trocas, experimentações... e descobertas. Afinal, se trabalharemos com nossos pacientes para que eles enxerguem possibilidades diante de um cenário tão desafiador que o fenômeno da pandemia tem os imposto e desenvolvam um olhar criativo perante a vida, esta postura deve começar em nós arteterapeutas e nossa naturalidade em lidar com a escassez de materiais, na arte e na vida. 

Em próximos textos e conteúdos nas redes sociais do Não Palavra, compartilharei algumas propostas práticas que têm funcionado em meu fazer arteterapêutico em tempos de atendimentos on line.



Referências Bibliográficas:

MORAES, Eliana. Pensando a Arteterapia Vol 2. 2019
NACHMANOVITCH, Stephen. Ser Criativo: O poder da improvisação na vida e na arte.

_______________________________________________________________________

Sobre a autora: Eliana Moraes


Arteterapeuta e Psicóloga.


Pós graduada em História da Arte
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia. Nascida em Minas Gerais, coordena o Espaço Não Palavra no Rio de Janeiro.
Autora dos livros "Pensando a Arteterapia" Vol 1 e 2

6 comentários:

  1. Muito relevante a reflexão e um estímulo para que os Arteterapeutas sigam atuando nesse momento de crise.

    ResponderExcluir
  2. Parabéns Eliana pelo trabalho que vem desenvolvendo à Arteterapia e motivando os profissionais a continuarem e se reinventarem. Sou muito grata. O artigo acima é exelente para recordarmos do nosso SER CRIATIVO.

    ResponderExcluir
  3. Como sempre você arrebenta, parabéns!

    ResponderExcluir
  4. Comentário enviado por Tania SALETE

    Parabéns,Eliana! Mais um excelente texto de ampla relevância para o momento e como estímulo aos arteterapeutas para se permitirem à paralisia, pois o "mundo precisa da arte(e dos arteterapeutas) nos salve desta loucura"! Obrigada por nos apoiar, incentivar e ser uma referência consistente para a Arteterapia.

    ResponderExcluir
  5. Parabéns, Eliana!
    Muito interessante esta sua reflexão sobre a escassez de materiais e a disciplina como promotores da criatividade!

    ResponderExcluir
  6. Excelente, Eliana! Mais uma vez você nos orienta através das suas reflexões, especialmente para este momento tão controverso e repentino, onde tivemos de reinventar nossas maneiras de viver, trabalhar e atender à distância com Arteterapia. A criatividade encontra sempre o melhor meio para agir. Gratidão!

    ResponderExcluir