Laila Alves de Souza - Curitiba/Rio de Janeiro
lai_ajt@hotmail.com
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Nos
outros textos dessa série “Olhares sobre os mitos” enfatizei a importância que
a psicologia profunda atribui aos mitos. Estes não apenas carregam meras
narrativas descrevendo sobre o comportamento humano, mas trata da vida da alma.
Diz HILLMAN: “Os mitos governam nossas vidas. Governam uma história de caso a
partir de baixo, através da história de alma.” (20011, p. 93)
Considerar
a perspectiva pela história da alma é diferente da perspectiva pela história de
caso. Numa história de caso temos como metodologia a descrição e a
interpretação dos eventos e das emoções. E o tratamento, nessa perspectiva, se
molda por essas colocações, trazendo luz as questões até então obscurecidas.
Portanto, seguindo por esse caminho “de dar luz” ou “trazer à luz” partimos do
pressuposto que a luz representa um critério que diz respeito a algo saudável e
adequado. No entanto, quando nos atemos à história da alma, esta nos coloca em
contato com aquilo que subjaz da EXPERIÊNCIA. A alma reclama a experiência! Ao
invés de debruçarmos na tentativa de desvendar o que quer dizer essa
experiência, nós vamos para as profundezas do que o indivíduo está
experenciando. Tiramos, desse modo, qualquer tipo de parâmetro ou critério que
indique que algo é adequado ou inadequado, sadio ou patológico, bom ou mal.
Apenas ficamos com a escuta para alma daquele sujeito.
Peguemos
uma das experiências psíquicas mais discutida da atualidade, a depressão. Ao
imaginá-la nós já conseguimos agrupar certas associações e parâmetros a
respeito da “doença”. Felizmente, já há um progresso na conscientização da
depressão, ou seja, já existe um movimento de profissionais da saúde e outras
áreas que a qualifica como algo sério e que a condição depressiva ultrapassa a
força de vontade (força egóica) do sujeito. Este fica completamente vulnerável
e à mercê da depressão. Essa experiência o consome, consome seu ego e sua
orientação consciente, pondo-se à vista a natureza psíquica, a alma.
Na
ótica da psicologia analítica, dentro da estrutura psíquica proposta por Jung,
a condição depressiva é justamente a perda de energia psíquica que o ego
possuía. Uma pessoa que se mantém ativa, com a capacidade cognitiva intacta e
sem alterações nas suas necessidades físicas detém de uma quantidade específica
de energia que a permite desenvolver suas atividades cotidianas. Sem essa
energia concentrada na consciência nenhum movimento do ego é possível. A
energia, portanto, regrediu às profundezas, isto é, há uma regressão da libido.
Isso nos dá um panorama muito elucidativo da situação específica, que consiste
naquilo que anteriormente foi mencionado como história de caso. No entanto,
para a história da alma a linguagem é outra. Aí adentramos ao mito.
HADES
Hades
é o deus que reina o submundo ou mundo das trevas, assim também designado como
o reino dos mortos. Como Hécate (já mencionada em outro texto CLIQUE AQUI) ele é um deus
ctônico. Esses deuses são deuses que residem na escuridão, no subterrâneo. Não
se tem certeza de como eram o rosto desses deuses, uma vez que, o que está
debaixo dos nossos pés, além da terra, não passa pelo nosso campo de visão, não
sabemos o que jaz nessa escuridão desconhecida.
Hades
é “(...) o escuro reverso não só de Zeus, mas também de Hélio.” (KERÉNYI, 2015,
p. 208). Esses dois últimos deuses estão associados com a luz e o reino celeste
e Hades, no entanto, nos puxa para seu reino sombrio de escuridão, para baixo.
Vemos no rapto de Perséfone exatamente essa dinâmica. Resumidamente, Core,
filha de Deméter, estava colhendo flores quando de repente a terra se abriu e
dela se irrompeu Hades em sua carruagem com seus corcéis negros. Hades a raptou
e a levou para seu reino ctônico. Core a princípio, tentou lutar contra o
raptor, mas foi levada à força. Deméter ficou desesperada pelo sumiço da filha,
até que descobriu, por Hélio - aquele que tudo vê - que foi Hades quem a
raptou. Ao tentar resgatar sua filha, viu que esta se tornara a rainha do
submundo, Perséfone, esposa do deus temível. E constatou também que esta comera
sementes de romã e que quem come no Hades não sai mais de lá. Porém, a
insistente Deméter reivindicou a Zeus o retorno de sua filha junto a ela,
alegando que se isso não acontecesse a terra não ia mais prosperar, já que ela
era a deusa da vegetação e fertilidade. Zeus conseguiu negociar com seu irmão
Hades de que Perséfone ficaria com ele um terço do ano e o resto com sua mãe.
Fazendo a terra florescer quando as duas se encontram.
Esse
rapto por Hades, ou seja, esse puxar para baixo é exatamente a experiência da
depressão. Estamos como Core, colhendo flores nas pradarias da vida, quando, de
repente, o chão se abre para o caminho das profundezas. Descemos aos ínferos,
ou seja, a energia psíquica cai nas trevas. Os gregos chamavam essa queda de katabasys.
Vemos esse motivo da queda em muitos mitos e contos, e como sendo uma
experiência arquetípica, sofremos ou sofreremos essa experiência. Por isso
podemos dizer que a depressão é uma das katabasys da mitologia atual.
Frases tais como “estou no fundo do poço”, “estou caindo num abismo”, “perdi o
chão”, “me sinto fraco e impotente”, revelam que a experiência do rapto de
Hades ao reino da morte é o começo de um processo de morte propriamente dito.
O
REINO DE HADES
Ao
chegar no reino dos mortos, forçadamente, nós nos defrontamos com o desespero e
o tédio. Como afirmam CHEVALIER & GHEERBRANT (2009) o reino de Hades é
"(...) lugar invisível, eternamente sem saída (salvo para os que
acreditava nas reencarnações), perdido nas trevas e no frio, assombrado por
monstros e demônios, que atormentam os defuntos."(p. 505). É a escuridão
total! De nada adianta puxar o indivíduo para a luz, pois ele já está
mergulhado nesse reino de trevas. Aqui, quando vemos pela perspectiva da
clínica, é imperativo que o terapeuta abrace a experiência do rapto de Hades.
Ficar erguendo seu paciente para a direção da luz em tentativas de tirá-lo do
reino da morte é perder o processo que alma pede daquele paciente. Ao invés de
se perguntar “como faço para tirá-lo dessa condição sombria?” se propor fazer a
pergunta “o que a alma quer com essa experiência sombria?”.
Por
estar no reino da morte, uma das respostas para essa pergunta é justamente a
morte. Ela tem que se apresentar para ambos envolvidos no processo – o paciente
e o terapeuta. Fugir dela é não permitir que Core se transforme em Perséfone.
Como diz HILLMAN (2011) “(...)cada morte é a nossa própria criação.” (p.
73-74). No entanto, a tendência é que sintamos uma angústia demasiada na
presença dela e que, assim, queiramos acelerar o processo. Dessa forma, é
importante salientar aqui que no reino de Hades não existe tempo, o deus Cronos
(cronológico) que estamos acostumados no mundo “de cima” não existe aqui
embaixo. Por isso que o depressivo entra em outro estado de tempo, bem mais
vagaroso e pesado, se culpando, inclusive, por não conseguir fazer as coisas no
tempo em que as outras pessoas estão. Exigir essa aceleração do depressivo é
praticamente deixá-lo mais culpado no mundo de Hades.
Como
foi mencionado acima, estar preso a esse reino é ser assombrado por monstros e
demônios. Nessa experiência, como o ego não tem energia psíquica pois essa
regrediu, esse é um momento precioso para a alma. Quando o eu está em “bom
estado e funcionamento”, as resistências estão em dia e são facilmente
consteladas, além do que, as personas estão firmemente encaixadas com as
propostas do ego. Porém, sem a força usual desse, somos obrigados a ver o que
jaz nas nossas profundezas, aspectos esses bem escondidos pelos mecanismos do
bom funcionamento. Nossos monstros e demônios já são da casa de Hades e são
eles, justamente, o alimento que necessitamos para essa experiência, como são
as sementes de romã ingeridas por Perséfone. São monstros que viram valiosos
materiais psíquicos.
Hades
também é chamado de Plutão que significa “o rico”. "Então Plutão refere-se
às riquezas escondidas ou às riquezas do invisível." (HILLMAN, 2013, p.
53). Portanto, por mais temível e perturbador que possa ser o caminho ao passar
por essa experiência em que reina a morte, só se possibilita dar esse mergulho
nas riquezas escondidas quando o ego não está em seu trono na luz.
Assim
podemos perceber que algo tão ameaçadoramente desestruturador, cujo nome damos
de patologia (relacionando-a com termos tais como desordem, doença e desvio),
mostra-se, no final das contas, como uma criação feita pela alma. Olhar a
depressão pela ótica do trono na luz é olhá-la por esse perfil negativo e tomar
todas as providências para tirar a pessoa do reino das trevas. Quando Hillman
afirma que a alma patologiza, ele quer dizer que a é através de manifestações
“não normais e sadias” que o indivíduo é forçado a olhar para sua
individualidade; individualidade esta que está além desses termos: normal e
adequado. Pelo contrário, a alma que se individua tem que ir além do que o
coletivo afirma como sujeito adaptado, para assim poder se diferenciar como
indivíduo. Um indivíduo, portanto, a serviço de seu Self e não das personas
coletivas. Esse é o processo de individuação.
A subida então, como Perséfone faz para
encontro de sua mãe, a terra, é o percurso de saída do estado depressivo. O
mundo é outro porque se adquire uma nova percepção do mesmo: “Não sou mais
aquele que foi raptado”, uma amiga um dia me afirmou: “Aquilo foi em outra
existência.” Passado pela morte, agora o indivíduo se vê mais “psiquizado”, ou
seja, muitas coisas se tornaram psíquicas; as cascas que antes eram sustentadas
pelo ego foram derrubadas e as essências foram reveladas. O olhar de Perséfone
é justamente o olhar para essência das coisas, diz BERRY (1997):
Com isso entendo que a percepção das diferenças
no reino da natureza de Deméter é também uma percepção de essências no reino de
Perséfone - onde essência é o “Não-visto”, a semente oculta da romã, ou o
“invisível”. Desse modo, notar as diferenças do mundo da superfície é ter, ao
mesmo tempo, uma percepção através de uma consciência dos invisíveis do mundo
inferior.” (p. 89)
É
olhar as coisas e as situações pela perspectiva da alma. Esse olhar de
Perséfone para as essências é imprescindível aos terapeutas, pois enxergar
através do aparente, seja ele um sintoma ou o discurso literal, é poder
enxergar o que a alma pede. Além do que, a Perséfone tem uma função psicopompa,
ou seja, ela é a guia que tem familiaridade com os dois reinos, o terrestre e o
submundo; o material e o psíquico. Assim, o terapeuta é o guia que ajuda a
travessia do paciente, permitindo e vivenciando a experiência do reino da
morte, mas não se dissolvendo junto com o paciente. A Arteterapia é o campo que
também proporciona uma atitude de Perséfone, que no manuseio do material
(Perséfone com Deméter), traz o reino das essências (Perséfone com Hades).
Portanto,
o olhar para o mito, na sua própria linguagem, nos permite o aprofundamento
naquilo que se apresenta. Temos uma psicologia muito voltada para as histórias
de caso, onde a percepção e a abordagem para a depressão pegam um outro rumo.
No entanto, quando nos voltamos para aquele indivíduo e paramos para escutar
(com Eros) seu rapto, sua katabasys, sua estadia no mundo de Hades e sua
subida, de forma que nenhuma outra pessoa terá igual, estamos pegando o rumo da
psicologia da alma.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
BERRY, Patricia. Encarando
os Deuses (org. James Hillman). São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1997.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT,
Alain. Dicionário de Símbolos. RJ: José Olympio, 2009.
HILLMAN , James. Sonho e o
mundo das trevas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
_______________. Suicídio e Alma.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
KERÉYNI, Karl. A mitologia
dos gregos: vol I: A história dos deuses e dos homens. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2015
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Sobre a autora: Laila Alves de Souza
Psicóloga
Pós- graduada em psicologia clínica na abordagem da Psicologia Analítica.
Atendimentos clínicos pela abordagem da Psicologia Analítica no Rio de Janeiro.
Atualmente compõe a Equipe Não Palavra na gestão dos projetos.
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