segunda-feira, 26 de agosto de 2019

EXPRESSÕES ARTÍSTICAS E AS QUESTÕES TERAPÊUTICAS



Por Eliana Moraes
naopalavra@gmail.com
Instagram @naopalavra

Sabemos que o artista é aquele que tem o dom de fazer um mergulho até as funduras do inconsciente e traduzir na linguagem de seu tempo os conteúdos mais profundos da alma e da humanidade, dando-lhes uma forma. Esta forma é variada a partir da pluralidade das linguagens artísticas, não apenas as artes visuais, mas também as imateriais como a música ou a poesia, além da dança e performances.

Desta maneira, podemos entender que as expressões artísticas são a constelação de questões humanas que não raramente comparecem como angústias em um setting terapêutico. Assim, em minha prática como arteterapeuta, tenho investido em criar meu repertório de obras artísticas que possam dialogar com as questões terapêuticas recorrentes na escuta clínica e assim servir de instrumento como estímulos projetivos e disparadores de reflexões e processos criativos.    

Como técnica arteterapêutica, com este recurso estamos explorando o fenômeno da projeção, que se dá como um processo inconsciente automático, pelo qual um conteúdo inconsciente para o sujeito é transferido para um objeto, fazendo com que este conteúdo pareça pertencer a este. Segundo Jung, "a razão geral e psicológica das projeções é sempre um inconsciente ativado que busca expressão.” (SHARP) e é este conteúdo inconsciente ativado que precisamos ouvir.  

As técnicas projetivas são todas aquelas às quais o cliente/paciente recebe um estímulo direcionado a algum dos cinco sentidos, e a partir dele fala o que percebe, o que sente, o que pensa. Na sensação de estar falando de algo terceiro, o experienciador naturalmente está projetando de si e assim falando de si mesmo.

Dando continuidade à reflexão sobre as contribuições do Surrealismo para a Arteterapia, iniciado no texto de 12 de agosto de 2019, hoje destaco a utilização das imagens oníricas como grande recurso para estímulos projetivos nas práticas da Arteterapia.

As imagens oníricas e as questões terapêuticas

Conforme dito anteriormente, minha porta de entrada para o estudo da História da Arte em diálogo com a Arteterapia se deu a partir do movimento Surrealista: movimento artístico que buscava alcançar expressões do inconsciente através de processos criativos que fugiam da razão.

As imagens oníricas são a produção mais marcante do Surrealismo nos anos 30. Têm como fonte de inspiração os sonhos, cujo interesse dos artistas estava fortemente ligado a pesquisa de Freud e a psicanálise. São aquelas pintadas por Salvador Dali, René Magritte, Max Ernst, Yves Tanguy, (embora não se reconhecesse uma surrealista) Frida Khalo e outros.

Estas imagens têm o efeito de impactar o espectador com a sensação de que são ao mesmo tempo familiares porém estranhas:

“... familiar em razão do estilo minuciosamente realista que permite ao espectador o reconhecimento dos objetos pintados; desconhecido, por causa da estranheza dos contextos em que eles aparecem...” (BRADLEY, 2004)

Se atentarmos bem, esta é uma descrição que também se encaixa aos sonhos, por isto estas imagens se tornam tão provocadoras e desafiadoras. São imagens não óbvias, não literais, ricas em simbolismos, metáforas, paradoxos -  características tão presentes e ao mesmo tempo tão desestabilizadoras da vida. Carregam em si um grande potencial de identificação pelo espectador, provocando projeções capazes de auxiliar ao cliente/paciente de Arteterapia a espelhar-se, (re)conhecer-se e falar-se.

A prática nos mostra que as imagens oníricas surrealistas são um potente instrumento de estímulo projetivo interessante a ser acessado, por exemplo, nos primeiros contatos do experimentador da Arteterapia com o mundo das imagens e sua subjetividade. Faz-se assim uma abertura psíquica e cognitiva para uma leitura mais abstrata, poética, metafórica, simbólica das imagens e da vida (em oposição ao pensamento concreto e racional que muitas vezes comparece no início de um processo arteterapêutico).

A imagem afeta o cliente/paciente e serve para aquecer o diálogo interno, trazendo subsídios para grandes reflexões e elaborações. Pode ser oferecida uma obra a partir da fala do experienciador, proporcionando um “encontro” entre a demanda terapêutica e a imagem. Ou podem ser oferecidas diversas imagens para que o experienciador sinta e escolha aquela que lhe toca naquele momento.

Aqueles que me conhecem de perto, sabem que tenho uma relação especial com René Magritte, homenageado inclusive ao nomear meu gato Renê. Em dois textos de 2015 que foram compilados no livro “Pensando a Arteterapia” exploro um pouco mais sobre as obras deste artista verdadeiramente instigante!

Neste texto vamos dialogar com o grande surrealista Salvador Dali, as quais fazem parte do meu repertório como arteterapeuta.

Dali e a jornada terapêutica

Anteriormente escrevi um texto sobre uma obra de Dali, que muito marcou meu processo analítico pessoal e posteriormente profissional. A obra “Batalha nas nuvens” inspirou o texto “Dali e a jornada terapêutica” de 2015, também inserido no livro “Pensando a Arteterapia”.

Hoje desdobraremos este título utilizando mais duas de suas obras tão ricas em simbolismos, mas que podemos aplicá-las ao percurso de um sujeito em sua terapia.



Em “Girafas em chamas” Dali traz a imagem sombria de um corpo que dele se abrem algumas gavetas. Tenho usado esta obra com os que estão iniciando o processo arteterapêutico. Este é um momento delicado, de enfrentamento, em que estamos abrindo nossas “gavetas” há muito tempo fechadas: “o que contém em minhas gavetas? o que guardei tanto tempo que agora preciso olhar? como eu me sinto abrindo estas gavetas? o que preciso limpar e jogar fora? o que preciso ressignificar e transformar?”


.;Já a obra “Criança geopolítica assistindo o nascimento do novo homem”, tenho usado com os experienciadores do processo arteterapêutico que já estejam produzindo movimentos de mudança em seu processo de individuação, não sem grande investimento de energia psíquica, força e dores de crescimento. Esta imagem se faz bastante impactante para os que estão (não apenas assistindo, mas) produzindo o nascimento de um “novo homem”. 

A partir destas imagens podemos propor uma escrita criativa ou mesmo a produção de uma releitura da obra, a partir da perspectiva do espectador. As possibilidades de processos criativos a partir de uma obra fica a critério do arteterapeuta e sua criatividade. O ponto pacífico é a potência que estas imagens carregam em si e desperta em cada um de nós.   

Referências Bibliográficas:
SHARP, Daryl. Léxico Junguiano. Ed Cultrix, SP, 1991.
BRADLEY, Fiona. Surrealismo – Movimentos da Arte Moderna. Ed Companhia das l etras, São Paulo. 1992.

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Sobre a autora: Eliana Moraes


Arteterapeuta e Psicóloga.
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso e cursando MBA em História da Arte.


Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia. Nascida em Minas Gerais, coordena o Espaço Não Palavra no Rio de Janeiro.

Autora do livro "Pensando a Arteterapia" CLIQUE AQUI

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