Por Dani Lyrio
– SP
@acordar.arteterapia
"A morte também é uma terrível brutalidade – nenhum engodo é
possível! – não apenas enquanto acontecimento físico, mas ainda mais como um
acontecimento psíquico: um ser humano é arrancado da vida e o que permanece é
um silêncio mortal e gelado. Não há mais esperança de estabelecer qualquer
relação: todas as pontes estão cortadas." – JUNG, 1988, pp. 272-273).
Todos nós viveremos algum tipo de luto um dia, isso é fato. Mas, estamos
preparados para esse momento? A ideia de quebra da ponte, de não esperança de
relação com a pessoa e/ou coisa perdida, como cita Jung, e um fato desolador.
Quando falamos
a palavra "luto", todo mundo entende o que isso significa, mas cada
um de nós, em nossa singularidade, enfrenta o luto à sua maneira. Isso pode ser
observado no seio familiar: quando ocorre a morte de um ente querido, todos
sofrem e vivem o luto, mas cada um sente e vive essa dor de maneira diferente.
Esse raciocínio vale para o enfrentamento de todo e qualquer tipo de luto.
Afinal, a dor é pessoal e intransferível.
Em 1995, Margaret Stroebe e Henk Schut introduziram o Modelo de Duplo
Processamento do Luto. Este modelo propõe que os indivíduos enlutados alternam
entre dois tipos principais de estressores: os estressores de perda e os
estressores de restauração.
Estressores de Perda:
·
Foco na Perda: Envolve enfrentar diretamente os sentimentos e pensamentos relacionados
à perda. Isso inclui sentir a dor da perda, reviver memórias do falecido e
experimentar emoções intensas como tristeza, saudade e desespero.
·
Expressão de Emoções: Processar as emoções dolorosas é uma parte essencial do enfrentamento
dos estressores de perda, permitindo que a pessoa reconheça e valide sua dor.
Estressores de Restauração:
·
Foco na Restauração: Envolve lidar com as mudanças práticas e cotidianas que ocorrem após a
perda. Isso inclui assumir novas responsabilidades, adaptar-se a um novo estilo
de vida e redefinir papéis e identidades.
·
Distração e Recuperação: Engajar-se em atividades que proporcionam uma pausa da dor do luto e
que ajudam a restabelecer uma sensação de normalidade e bem-estar.
O modelo enfatiza que os
indivíduos não enfrentam o luto de uma maneira linear ou fixa. Em vez disso,
eles oscilam entre enfrentar estressores de perda e estressores de restauração.
Este movimento dinâmico permite que as pessoas processem a dor da perda ao
mesmo tempo em que se adaptam às novas circunstâncias de vida. A oscilação
entre esses estressores é vista como uma forma saudável de lidar com o luto,
permitindo que os indivíduos alternem entre momentos de enfrentamento direto da
perda e momentos de recuperação e adaptação.
Embora cada vínculo seja único e insubstituível,
a capacidade de uma pessoa de se “recuperar” do luto não advém da sua
habilidade de esquecer a pessoa perdida, mas de construir e remodelar seu mundo
presumido de modo que inclua e redesenhe o tesouro do passado. (PARKES, 2009,
p. 239)
Meu Processo de
Luto
Falarei do meu processo de luto,
vivido com a morte do meu pai. A morte de meu pai foi repentina. Apesar da
idade, a ligação no final de uma sexta-feira trazia a mensagem que ainda ouço
na minha cabeça: "O papai morreu." Era minha mãe, que chamava meu pai
carinhosamente de "pai/papai". O momento tão temido chegou, e agora?
Passados o velório e o enterro, e após aquele período em que a atenção se volta
para nós em uma situação dessas, chega a hora de lidar com a nova realidade que
a vida nos apresenta. Como será viver a falta de alguém que amamos tão profunda
e verdadeiramente?
Arteterapia e Gratidão
Esse meu processo de luto
aconteceu durante a formação em Arteterapia. Apesar de toda a dor que o luto
nos faz sentir, consegui sentir uma gratidão muito grande por ter tido meu pai
ao meu lado por 43 anos. Durante esse meu processo, eu senti uma vontade/necessidade
de fazer uma representação da cadeira onde meu pai se sentava. Era o momento que estávamos
sentados em volta da mesa, contando histórias, contando causos, tomando nossa
cervejinha. Essa imagem sempre vem acompanhada da música "Naquela
Mesa":
Naquela mesa ele sentava sempre
E me dizia sempre o que é viver
melhor
Naquela mesa ele contava histórias
Que hoje na memória eu guardo e
sei de cor
Naquela mesa ele juntava gente
E contava contente o que fez de
manhã
E nos seus olhos era tanto brilho
Que mais que seu filho
Eu fiquei seu fã
Eu não sabia que doía tanto
Uma mesa num canto, uma casa e um
jardim
Se eu soubesse o quanto dói a vida
Essa dor tão doída não doía assim
Agora resta uma mesa na sala
E hoje ninguém mais fala do seu
bandolim
Naquela mesa 'tá faltando ele
E a saudade dele 'tá doendo em mim
Naquela mesa 'tá faltando ele
E a saudade dele tá doendo em mim
(Sérgio Bittencourt, 1972,
em homenagem a seu pai, Jacob do
Bandolim)
Passado um tempo após a produção
do desenho da cadeira, me veio a necessidade/vontade de fazer uma transposição
dessa imagem. Foi então que surgiu uma poesia:
A Cadeira do Siqueira
Se essa cadeira falasse
Ela contaria
Sobre uma
família
Sobre uma filha
Que não superou
a
Partida de seu
grande amor
Uma cadeira que
agora vazia
Antes sentia
O peso do amor
É, não tem
jeito
A dor no peito
Que sua
ausência deixou.
A transposição de imagem na arteterapia pode ser definida como um
processo de transformação visual e simbólica, no qual uma imagem original é
reinterpretada, deslocada ou reconstruída em um novo suporte, técnica ou
material, promovendo diferentes leituras e significados.
Esse conceito se fundamenta na ideia de que a imagem não é fixa, mas
dinâmica, permitindo múltiplas possibilidades expressivas e projetivas. A
transposição pode ocorrer por meio da mudança de material (exemplo: de desenho
para colagem), do redimensionamento (ampliação ou redução), da alteração do
contexto (inserção da imagem em um novo ambiente) ou da ressignificação
subjetiva do conteúdo original.
O texto que escrevo agora também é uma transposição da imagem,
auxiliando-me nesse enfrentamento. Ao expressar minha dor, a repito, mas faço
uso de diferentes linguagens que favorecem sua elaboração.
Na perspectiva arteterapêutica, a transposição de imagem favorece o
aprofundamento do processo criativo e terapêutico, permitindo ao sujeito
revisitar, ressignificar e integrar aspectos de sua produção simbólica de
maneira fluida e transformadora.
Lendo, estudando sobre enfrentamento do luto, hoje, consigo fazer uma
relação direta ao recurso que eu tinha disponível para aliviar a minha dor, a
arteterapia, ao Modelo de Duplo Processamento do Luto. Fiz uso dos estressores
de perda, focando na expressão de emoções, e dos estressores de restauração,
através da distração e recuperação.
Enfrentar o luto é todo dia, ele não passa, ele não acaba, por vezes,
ele se torna suportável, algo que aprendemos a lidar, tendo em mente que
existirão dias melhores e dias piores de enfrentamento.
Hoje, sinto que a saudade vem em ondas mais suaves, e, em sua maioria,
sem o desespero da ausência. O peito ainda aperta, a voz ainda embarga, as
lágrimas ainda caem, mas de uma maneira mais tranquila, sinto que ele agora
vive em mim.
Referências
Bibliográficas:
JUNG, C. G. Memórias, Sonhos, Reflexões. 11ª
Edição. Vozes, 1989.
https://repositorio.pucsp.br/jspui/bitstream/handle/24522/1/Fab%c3%adola%20Mancilha%20Junqueira.pdf
https://psycnet.apa.org/doiLanding?doi=10.1037%2F10397-003
https://blog.ijep.com.br/o-luto-e-o-silencio-da-morte/
https://www.enlutados.com.br/2024/11/modelo-de-processo-dual-de.html
https://novabrasilfm.com.br/notas-musicais/multiversos-naquela-mesa-de-sergio-bittencourt
PARKES, C. M. Amor e perda: as raízes do luto e
suas complicações. São Paulo: Summus, 2009.
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Sobre a autora: Dani Lyrio
Graduação em Administração de Empresas com Ênfase em Comércio Exterior. Especialização em Arteterapia pelo Nape, São Paulo.
Atendimentos on-line e presencial (Zona sul) na cidade de São Paulo.