Por Eliana Moraes – MG
naopalavra@gmail.com
Cada vez mais o Não Palavra vem se estabelecendo como um
espaço de colaboração à formação continunada do arteterapeuta. Tomamos como
inspiração para a produção de conteúdos o tripé que sustenta um bom terapeuta –
terapia pessoal, supervisão e grupo de
estudos -, mas acrescentamos para a Arteterapia uma quarta perna: a prática
criativa continuada.
O exercício contínuo de uma experiência pessoal com os
materiais artísticos, com o processo
criativo e a própria produção de imagens sustenta um arteterapeuta em sua
atuação de forma consistente. O caminho de contato pessoal com a prática
criativa se inicia no curso de formação, mas na realidade se estende a todo o
tempo da formação continuada do arteterapeuta, ou seja, enquanto o este se
mantiver ativo em seu estudo e práticas. É essencial que ele conheça e
experimente por si mesmo os potenciais e as propriedades da grande variedade de
materiais possíveis a serem usados em um setting arteterapêutico, em
cada uma de suas singularidades. É importante que vivencie os processos de
estímulos, resistências, enfrentamentos, desbloqueios, busca e encontro de
soluções, encantamentos, mas sobretudo, a criação de intimidade com as
materialidades para que possa dar a sustentação necessária para os futuros
experienciadores da Arteterapia, que a seu tempo viverão estes enfrentamentos
na condição de pacientes/clientes.
Eleger um espaço de experimentação e criação de intimidade
com os materiais arteterapêuticos compõe a quarta perna que sustenta o
arteterapeuta, alcançando aqueles que não possuem experiência anterior com as
materialidades e práticas artísticas, mas também aqueles que possuem essa
experiência, porém necessitam vivenciar uma experimentação mais intuitiva,
sensível e emocional para o criar.
Estas reflexões foram geradas e aquecidas a partir de minha
experiência pessoal (uma arteterapeuta advinda da psicologia), das minhas
observações como supervisora de arteterapeutas em atuação, mas também pela
oportunidade de lecionar em cursos de pós graduação em Arteterapia e observar,
de forma geral, alguma carência de intimidade com os materiais e processo
criativo dos estudantes e profissionais. Tenho me motivado a gerar espaços de
ateliês arteterapêuticos destinados à arteterapeutas por acreditar que desta
forma os alunos e profissionais estarão mais sustentados e instrumentalizados
para uma prática arteterapêutica rica, consistente e potente.
Um embasamento teórico
Para o segundo semestre de 2022, adotei como leitura base o
livro “Ser Criativo: o poder da improvisação na vida e na arte” de
Stephen Nachmanovitch. Tenho o estudado em conjunto com minha grande parceira,
Vera de Freitas, e a partir dele tenho produzido diversos conteúdos para o Não
Palavra e para os cursos de formação que leciono.
No texto presente, trago fragmentos do precioso capítulo “Prática”,
através do qual o autor discorre sobre a importância de uma prática criativa
continuada:
Qualquer pessoa que pratique um
esporte, um instrumento ou qualquer forma de arte tem que se exercitar,
experimentar, treinar. Só se aprende fazendo. Existe uma enorme diferença
entre os projetos que imaginamos e os que realmente colocamos em prática. É
como a diferença entre um romance de ficção e um encontro real de dois seres
humanos, com todas as suas complexidades. Todos sabemos disso, embora
inevitavelmente nos deixemos abater diante do esforço e da paciência
necessários à realização de um projeto. Uma pessoa pode ter fortes tendências
criativas, gloriosas inspirações e elevados sentimentos, mas sem criações
concretas não há criatividade...
A fórmula estereotipada que diz que “a
prática leva à perfeição” traz consigo alguns sérios e sutis problemas.
Imaginamos que a prática seja uma atividade executada em preparação para uma
performance “de verdade”...
A prática não é só necessária à arte,
ela é arte.
(NACHMANOVITCH, 1993, 69-70)
Nachmanovitch descreve com destreza sobre um ponto de equilíbrio
que um artista precisa encontrar, em relação à sua técnica. Penso que este
ponto de equilíbrio deve servir em muito de inspiração para o arteterapeuta em
sua formação. Por um lado, temos o arteterapeuta que não possui profundo conhecimento
prévio sobre a utilização dos materiais:
O aspecto mais frustrante e aflitivo
do trabalho criativo, um aspecto que enfrentamos na prática diária, é a
descoberta de um abismo entre o que sentimos e o que somos capazes de
expressar. “Falta alguma coisa”...
A técnica pode transpor esse abismo... Se improvisamos com um
instrumento, uma ferramenta ou uma ideia que conhecemos bem, possuímos uma
sólida técnica para nos expressarmos. (NACHMANOVITCH, 1990, 70)
Para criar, é preciso ter técnica e
libertar-se da técnica. Para isso, precisamos praticar até que a técnica se torne inconsciente...
Quando a técnica se oculta no
inconsciente, revela esse mesmo inconsciente. A técnica é o veículo capaz de
trazer à tona o material inconsciente contido no mundo onírico e mítico para
que ele possa ser visto, falado ou cantado. (NACHMANOVITCH, 1993, 75)
Neste trecho, o autor nos inspira sobre a importância do
arteterapeuta, pouco a pouco, se dedicar a conhecer mais profundamente as
técnicas e materiais que oferece em seu setting. Não para “dar aula de
artes”, mas para instrumentalizar o seu paciente para começar a se expressar em
outra linguagem e sustentar o campo de enfrentamento do “novo” ao
experienciador da Arteterapia.
Aqui reside também um desafio específico para alunos que se
formaram em tempo de cursos online, modalidade que muito nos surpreendeu
positivamente, mas que como qualquer fenômeno humano, possui suas sombras e
pontos cegos. O desafio desta geração de arteterapeutas se faz em buscar de
forma mais assertiva espaços em que possam se dedicar à “mão na massa” em
experimentação à riqueza e pluralidade de materiais possíveis a serem usados na
Arteterapia.
Se por um lado temos arteterapeutas que não possuem tanta
intimidade com os materiais, por outro, temos os que vêm da arte e trazem em sua
bagagem uma sólida relação com a técnica. Entretanto, segundo o autor:
A técnica pode transpor esse abismo.
Mas também pode alargá-lo... a técnica pode se tornar sólida demais –
sabemos tão bem o que deve ser feito que nos distanciamos ao frescor da
situação presente. Esse é o perigo inerente à competência que se adquire pela
prática. A competência que perde suas raízes de diversão se transforma em
rígido profissionalismo...
Por maior que seja a técnica
adquirida, precisamos reaprender continuamente a tocar como um principiante, com o toque de um principiante, com
o sopro de um principiante, com o corpo de um principiante. Só assim poderemos recuperar
a inocência, a curiosidade, o desejo que nos impeliu a tocar. Só assim
poderemos encontrar a necessária unidade entre prática e performance.
(NACHMANOVITCH, 1993, 70)
Aqui está o desafio de arteterapeutas que já possuem uma
relação com a arte e a técnica: vivenciar o processo criativo não por meio de
um registro racional e extrovertido, mas um registro intuitivo, emocional e
introvertido. Para se encontrar esse registro interno realmente propício para a
criação é um processo de (re)construção.
Assim entendemos que o ponto de equilíbrio da técnica na arte
e na Arteterapia, só é possível a partir de uma exposição ao exercício contínuo
de experimentação:
O exercício, a experimentação, deve
estar totalmente livre de julgamento, brotar diretamente do coração...
Quando nos exercitamos, trabalhamos
num contexto seguro em que podemos experimentar não apenas o que sabemos fazer,
mas também o que ainda não podemos fazer...
A prática dá ao processo criativo um
momento de calma, de modo que, quando as surpresas ocorrem (quando elas chegam
a nós por acaso ou trazidas do inconsciente), possam ser incorporadas ao
organismo vivo da nossa imaginação. Aqui nós realizamos a síntese essencial –
alongar os momentos de inspiração até transformá-los em fluxo contínuo...
A perícia nasce da prática; a prática
nasce da experimentação compulsiva mas prazerosa... E de uma sensação de deslumbramento... (NACHMANOVITCH, 1993, 73-74)
Torna-se responsabilidade do arteterapeuta eleger um tempo e
um espaço propício para que possa manter a chama da sua criatividade sempre
ativa. Esse “espaço sagrado” é chamado de “temenos”:
... aprendi que grande parte da
eficácia da prática reside na preparação...
Minha preparação específica começa
quando entro no temenos. Na Grécia antiga, o temenos era
um círculo mágico, um espaço sagrado dentro do qual a atividade estava sujeita
a regras especiais e acontecimentos podiam ocorrer livremente. Meu estúdio, ou
seja, qual for o lugar onde eu trabalho, é um laboratório onde realizo
experimentos com minha própria consciência...
Prepare suas ferramentas de trabalho.
Crie e desenvolva um relacionamento íntimo, vivo e duradouro com suas
ferramentas: desde sua escolha até a limpeza, a manutenção e o reparo...
Quando faço uma apresentação ao vivo,
o palco e todo o teatro se tornam o temenos...
Com o tempo aprendi a tratar cada
sessão solitária em casa da mesma maneira como trato uma apresentação pública.
Em outras palavras, aprendi a dedicar a mim mesmo o cuidado e respeito que
dedico ao público. E não foi uma lição sem importância. (NACHMANOVITCH, 1993, 75-77)
Considero este um belo e precioso conselho do autor ao
arteterapeuta: viva sua experimentação pessoal com a arte e a Arteterapia com o
mesmo cuidado e respeito que você as oferece em seu setting. Experiencie
um têmenos da mesma forma que você o sustenta. Beba da fonte que você
distribui. Alimente-se da nutrição que você disponibiliza.
Referência Bibliográfica:
NACHMANOVITCH, Stephen. Ser Criativo: o poder da improvisação
na vida e na arte. Summus Editorial, SP. 1993.
________________________________________________________________________________
Sobre a autora: Eliana Moraes