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segunda-feira, 28 de novembro de 2022

GRUPOS EM ARTETERAPIA E A PRÁTICA COMPARTILHADA



Por Eliana Moraes – MG

naopalavra@gmail.com 

Um dos temas que mais me mobilizarou ao longo de 2022 girou em torno das relações humanas. Este é um tema sempre presente na minha escuta clínica, ao longo dos meus quinze anos de prática profissional. Entretanto, acredito que nesse último ano, essa temática ganhou novos contornos devido aos movimentos coletivos que atravessamos. Minhas observações têm sido aquecidas por reportagens, entrevistas e podcasts que tenho pesquisado, e é possível observar um consenso de que o fenômeno de um país divido transborda para a divisão de casais, famílias, amigos e redes afetivas. Consequentemente, muitas das demandas terapêuticas da atualidade envolvem as relações humanas. 

Ao longo de todo o ano, estimulei que os arteterapeutas da minha rede trabalhassem as relações humanas em suas práticas, muito embasada pelas palavras de Beatriz Cardella:

 

Os sofrimentos humanos acontecem no entre, nos encontros e desencontros vividos ou nos encontros não acontecidos. A cura é também fenômeno do entre, concebida em Gestalt Terapia como a restauração da abertura, do ritmo, do fluxo, do diálogo, da criatividade, e dos laços que nos unem/diferenciam do outro, processo de crescimento, atualização e realização da singularidade.

A relação terapêutica pode ser a experiência matriz da abertura... (CARDELLA, 2020, p 103)

 

A cura em Gestalt Terapia, está intimamente ligada com relação, com restauração ou constituição do Diálogo. É o que chamamos de cura pelo Encontro...

O que cura na terapia é a relação em si, é o entre. É o “sou amado, logo existo”. (CARDELLA, 2020, p 119)

 

Conforme já compartilhado em texto anterior, no segundo semestre de 2022 elegi um livro para estudo e produção de conteúdo teóricos e práticos juntamente com a minha parceira, Vera de Freitas. Em “Ser Criativo: o poder da improvisação na vida e na arte”, Stephen Nachmanovitch reflete sobre diversos aspectos que envolvem a criatividade humana. E um de seus capítulos, denominado “A prática compartilhada”, muito me embasou para pensar como a Arteterapia pode contribuir de forma salutar frente ao fenômeno coletivo atual. 

No dia vinte e um de outubro de 2022, Vera e eu realizamos uma oficina no Instituto Venha Conosco – RJ, em duas turmas, que trazia para o campo vivencial a reflexão sobre o indivíduo e o coletivo. Vera compartilhou um registro desta experiência em texto anterior no blog (em 07/11/22) e no texto de hoje trago um fragmento de nosso embasamento teórico e reflexões inspiradoras. 


Contribuições da Arteterapia: a prática compartilhada
 

Já no início do capítulo, o autor nos descreve a beleza de dois músicos que se propõem a tocar juntos:

 

“A beleza de tocar junto com alguém é a possibilidade de encontrar a unidade...

Toco com um parceiro; ouvimos um ao outro, espelhamos um ao outro, estamos conectados com aquilo que ouvimos... Um abre a mente do outro como uma série infinita de caixas chinesas. Uma misteriosa comunicação flui de um para o outro com maior rapidez do que qualquer sinal que pudéssemos passar através do olhar ou do som. A música não nasce de um ou de outro, embora nossas idiossincrasias e nossos estilos, os sintomas de nossa natureza original, continuem exercendo a sua influência. A música também não nasce de um compromisso entre nós ou de um meio-termo (a média é sempre uma coisa tediosa!), mas de um terceiro elemento, que não é necessariamente igual ao que um ou outro de nós faria individualmente. O que brota é uma revelação para nós dois. Um terceiro estilo, totalmente novo, nos supera. É como se tivéssemos nos tornando um organismo grupal que tem uma natureza própria e um peculiar modo de ser, um elemento único e imprevisível, que é a personalidade ou o cérebro grupal.” (NACHMANOVITCH, 1990, 91) 

Para além da música, aqui o autor nos inspira sobre a beleza de criar com um outro, criar em parceria, o que gera uma nova consciênia e identidade grupal. Vale ressaltar que a dinâmica descrita pelo autor, através da qual nasce-se um elemento terceiro entre os sujeitos, dialoga com o conceito junguiano de função transcendente:

 

Esse é... o mais importante estágio do processo, a união dos opostos para a produção de um terceiro: a função transcendente...

 

“Da atividade do inconsciente, emerge, agora um novo conteúdo, constelado pela tese e pela antítese [a síntese] em igual medida, e que está em relação compensatória com ambas. Ela forma assim, um termo médio, no qual os opostos podem se unir.” (JUNG)

 

A função transcendente é, em sua essência, um aspecto da autorregulação da psique. Manifesta-se, tipicamente, de modo simbólico, e é experimentada como uma nova atitude em face a si mesmo e da vida. (SHARP, 1991, 75) 

Os processos criativos compartilhados, em sua beleza e profundidade, não se dão facilmente ou instantaneamente. Muita das vezes é um desafio, fonte de resistências, incômodos ou, na palavra utilizada por Nachmanovtch, irritação. Entretanto, esta seria, em contrapartida, uma fonte de inspiração:

 

Alguns trabalhos são grandes demais para que possamos dar conta deles sozinhos, ou simplesmente é mais divertido realizá-los com amigos. Qualquer que seja o caso, isso nos leva ao fértil e desafiador campo da colaboração. Quando trabalham juntos, os artistas exploram um outro aspecto do poder dos limites. Existe uma outra personalidade e um outro estilo que precisam ser absorvidos e contidos. Cada colaborador traz para o trabalho um conjunto diferente de forças e resistências. Cada um proporciona ao outro irritação e inspiração - o grão de areia com que ambos produzirão uma pérola.

Precisamos lembrar uma coisa óbvia, que no entanto nunca é demais reafirmar: personalidades diferentes têm estilos criativos diferentes. Não existe uma única ideia de criatividade capaz de descrevê-la na sua totalidade. Portanto, como em qualquer relacionamento, quando colaboramos com outros construímos um ser maior, uma criatividade mais versátil. (NACHMANOVITCH, 1990, 92) 

Em um capítulo anterior, chamado “O poder dos erros”, Nachmanovitch já havia utilizado como metáfora o grão de areia e a peróla para descrever a potente relação entre a irritação e a inspiração:

 

Todos sabemos como nascem as pérolas… Se a ostra tivesse mãos, não haveria pérolas. Como ela é obrigada a conviver com a irritação por um longo período de  tempo, a pérola se forma… Os erros e acidentes [o não controle] podem ser grãos de areia que se transformarão em pérolas; elas nos oferecem oportunidades imprevistas, são em si mesmos fontes frescas de inspiração. Aprendemos a considerer nossos obstáculos como ornamentos, oportunidades a serem aproveitadas e exploradas. (NACHMANOVITCH, 1990, 87) 

Neste sentido, o autor amplia sua percepção sobre os possíveis “obstáculos” que podem atravessar um processo criativo. Em “Prática Compartilhada”, ele defende que o outro pode servir como um grão de areia que poderá causar tamanha irritação, mas que obrigará o sujeito a sair de sua zona de conforto e desenvolver algo muito mais belo e valioso do que seria se pudesse se livrar de seu desconforto. 

Para o autor, a prática compartilhada tem o potencial de nos presentear com surpresas advindas do inconsciente, mas para isso, é necessário que o sujeito abra mão de seu controle e desenvolva a diciplina de uma escuta sutil e atenta ao seu parceiro de criação:

 

A realidade compartilhada que criamos nos oferece mais surpresas do que nosso trabalho individual.  Quando tocamos com outras pessoas, existe um risco real de cacofonia, cujo antídoto é a disciplina. Mas não precisa ser a disciplina do “vamos estabelecer uma estrutura de antemão”. Trata-se da disciplina da mútua consideração, da consciência do outro, de saber ouvir o outro e da disposição para a sutileza... Desistir de algum controle em favor de outra pessoa nos ensina a desistir de algum controle em favor do inconsciente. (NACHMANOVITCH, 1990, 93) 

Propostas arteterapêuticas grupais que envolvem práticas compartilhadas colocam os sujeitos em ato para que possam se deixar atravessar pela interferência/contribuição do outro. Mas, antes disso, mesmo em práticas individuais, mas vivenciadas na presença do outro, já torna-se possível a abertura de um campo para que haja uma troca e mobilização mútua entre os sujeitos:

 

Podemos experimentar esse fenômeno mesmo sem estarmos tocando, dançando ou representando em grupo. Para um escritor, por exemplo, as bibliotecas são ótimos lugares para se trabalhar, porque, embora as pessoas que nos cercam sejam totalmente estranhas e cada uma esteja fazendo o seu trabalho, o ritmo silencioso de pessoas trabalhando juntas aumenta a energia de cada uma para o trabalho. Sentimos que o sincronismo reforça nossa concentração e nosso compromisso de estar no trabalho…

Nossas mentes e nossos corações vibram no mesmo ritmo. (NACHMANOVITCH, 1990, 96) 




Concluindo 

As considerações tecidas por Nachmanovitch nos inspira à uma modalidade terapêutica tão própria da Arteterapia: a sustentação de grupos arteterapêuticos que, em especial, vivenciam práticas criativas compartilhadas, que possam lhe espelhar e desenvolver relacionamentos humanos mais salutares. Pois, segundo o autor:

 

O fazer artístico compartilhado é, em e por si mesmo, a expressão, o veículo e a força motriz dos relacionamentos humanos. Na expressão conjunta, os participantes constroem uma sociedade à parte e toda própria. Proporcionando um relacionamento direto ente as pessoas, sem qualquer outro intermediário a não ser a imaginação de cada um, a improvisação em grupo atua como um catalizador de amizades fortes e especiais. (NACHMANOVITCH, 1990, 95)

 

O autor ainda defende que “Uma vantagem na colaboração é que é muito mais fácil aprender com alguém do que sozinho.” (NACHMANOVITCH, 1990, 91-92). Ampliando essa percpectiva, podemos pensar que se estamos em tempos de (re)aprender a nos relacionarmos de forma ampla e saudável, só é possível fazê-lo na experiência com o outro. Em territórios arteterapêuticos, constatamos que a prática compartilhada se faz um potente recurso para o estímulo a esse aprendizado. 

Referências Bibliográficas:

CARDELLA, Beatriz Helena Paranhos. De volta para casa: ética e poética na clínica gestáltica Contemporânea. Editora Amparo, SP. 2020

NACHMANOVITCH, Stephen. Ser Criativo: o poder da improvisação na vida e na arte. Summus Editorial, SP. 1993.

SHARP, Daryl. Léxico Junguiano, Ed Cultrix, SP. 1991.


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Sobre a autora: Eliana Moraes




Arteterapeuta e Psicóloga
Pós graduada em História da Arte
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
Cursando MBA em Logoterapia e Desenvolvimento Humano
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Dá aula em cursos de formação em Arteterapia em SP e MS. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia online, sediada em Belo Horizonte, MG. 

Autora dos livros "Pensando a Arteterapia" Vol 1 e 2

Organizadora do livro "Escritos em Arteterapia - Coletivo Não Palavra"

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