Por Mercedes Duarte - RJ
duarte.mercedes@gmail.com
Dando sequência
às reflexões acerca dos 22 arcanos maiores do tarô, associados a aspectos da
arte que possam nos aproximar desses arquétipos, trago hoje o Arcano II, a
Papisa, em diálogo com uma artista plástica que manteve em segredo durante a sua
vida, e vinte anos após a sua morte, boa parte de sua obra: Hilma af
Klint.
O intuito desse
diálogo, entre arte e tarô, é o de proporcionar reflexões propositivas,
possibilidades terapêuticas - experimentadas na Jornada Arteterapêutica Arte e
Tarô - que
permeiam esses elementos em diálogo, inspirando assim uma possível ampliação do
repertório arteterapêutico.
A
Papisa e o mergulho em si
Quando nada acontece há um milagre que não estamos vendo
Guimarães
Rosa
A
medida que com minhas palavras tiro das coisas o véu que as cobre, me pasmo ao
avisar que fui capaz de observar infinitamente mais do que posso dizer
Virginia Woolf
A Papisa está
ancorada no número 2. Enquanto o Mago, número 1, representa a ação, o movimento
consciente, o elemento fogo e o princípio yang
primário, a Papisa expressa sua contraparte, seu desdobramento, o outro de si,
considerada a anima do Mago (NICHOLS,
1997), o primeiro elemento feminino dos arcanos maiores do tarô. Ela está
associada ao elemento água, à polaridade yin,
ao princípio feminino que se liga à receptividade, aceitação e não-ação.
A Papisa,
entronada, é guardiã de um templo, onde reside uma sabedoria oculta, interna, e
o próprio inconsciente coletivo. Sua missão é a de ser um portal do espírito,
um veículo por onde a divindade é recebida, entretanto ela não a controla.
Assim como a Lei, materializada no livro, ou papiro, encontrada em suas mãos,
não foi produzida por ela, mas é ela que a recebe e guarda.
Em muitas de suas
representações ela possui véus que representam o conhecimento velado, o lado
misterioso da lua, que guarda sentimentos profundos e sabedoria ancestral. Seus
dons se relacionam ao conhecimento interior, à introspecção, ao silêncio da
mente, e à intuição. Se se quer conhecê-la há que calar e voltar-se para
dentro, compreendendo um tempo que extrapola nosso ritmo imediatista. Desse
modo, a paciência é uma de suas artes, assim como a aceitação. A aceitação, não
enquanto submissão, mas como acolhimento das sombras, pois para integrá-las é
necessário primeiramente conhecê-las e aceitá-las (NICHOLS, 1997).
Diferentemente da
magia do Mago - que através da manipulação dos elementos manifesta no mundo
material, de modo consciente, sua criação - a magia da Papisa faz parte do
mundo dos sonhos, da imaginação, das imagens internas, espirituais e
inspiradoras.
O Mago, número
Um, como supramencionado, marca o princípio ativo, consciente, relacionado ao
masculino, e a Papisa, número Dois, o princípio receptivo, inconsciente,
associado ao feminino. Por motivos óbvios, relativos às desigualdades de gênero
e desvalorização do feminino ao longo da história, é possível recebermos essas
associações com alguma resistência e desconfiança. A própria autora do livro
Jung e o Tarô: uma Jornada Arquetípica (1997), Sallie Nichols, das referências
desse texto, ao apresentar a Papisa, desenvolve reflexões nesse sentido, e busca,
de algum modo, apresentar compensações a respeito desse arquétipo ocupar o segundo
lugar na ordem dos arcanos. Desenvolve, nesse sentido, a ideia da consciência,
princípio yang, emergir do inconsciente,
princípio yin. Enfatiza, desse modo, uma
espécie de anterioridade desse princípio que rege a Papisa, baseada nos mitos
da criação:
O
elemento que se liga a ela [Papisa] é a água. Na maioria dos mitos da criação,
a água é descrita com o poder original receptivo, produtivo e construtor de
forma. Das profundezas do oceano, do berço eternamente balouçante, se ergueu
toda a criação – todas as formas de vida. Das profundezas do inconsciente se
ergueu a própria consciência. Pois assim como o embrião individual está contido
e alimentado no líquido amniótico, assim cada identidade individual está
contida e é alimentada no profundo inconsciente de todo recém-nascido. Assim
sendo, é do inconsciente que nasce a consciência (1997, p.89).
Portanto, em
conversa com a Papisa através de uma meditação, a autora é convencida de que a
sequência numérica não indica a preeminência de um arcano sobre o outro. Ambos
são fundamentais. A disparidade entre eles, portanto, marca diferença e não
importância. E a ordem dependeria então da direção que se lê. Entretanto, ainda
que possamos concluir que é do inconsciente que a consciência surge, a
discussão se torna estéril diante da grandeza simbólica, complementar e, ao
mesmo tempo, autônoma de cada arquétipo, e de sua importância simbólica na vida
de todo ser humano, sejam eles considerados mulheres ou homens.
Hilma
af Klint
The Swan, No. 12, Group IX SUW, 1915
Imagem
retirada de https://arthistoryproject.com/artists/hilma-af-klint/group-ix-swan-no-12/
Para
me acercar da Papisa, a partir do contato com elementos de natureza artística,
por recomendação de minha terapeuta, mergulhei no universo de Hilma af Klint.
Hilma poderia representar quase que fielmente o universo da Papisa. Quanto mais
conhecia sua história e seu trabalho, mais me sentia próxima ao arquétipo em
questão. Hilma af Klint foi uma artista plástica sueca que viveu entre o
período de 1862 a 1944. A artista, “talentosa, enigmática e atemporal,
conciliou sua intensa vida religiosa e artística como propósito único de sua
existência” (CRUZ, 2019, p.44). Klint produziu mais de 124 cadernos com mais de
26.000 páginas de manuscritos e 1.200 pinturas, tanto de caráter figurativo,
quanto abstrato de cunho esotérico. Formada na Real Academia de Belas Artes de
Estocolmo, em 1887, se tornou uma artista retratista, mas ocultamente elaborava
suas obras abstratas.
Klint
estudou muitos movimentos religiosos, mas manteve maior envolvimento com a
Teosofia de Helena Blavatsky (1831-1891) e
de Rudolf Steiner (1861-1925). É com essa inclinação aos estudos esotéricos e
às experiências mediúnicas que Klint, em 1896, passa a se encontrar com mais
cinco artistas mulheres para estabelecerem contato com o plano espiritual.
Funda então o grupo De Fem, ou “As
Cinco”, onde, nas sessões regulares realizadas por mais de dez anos, expressam
o contato com entidades espirituais através da escrita automática e de desenhos
de caráter mediúnico. Klint, dez anos mais tarde, em 1906, recebe uma proposta
de um dos mestres espirituais e a aceita. Consistia em uma “Encomenda para o
Templo”, que pretendia a produção oculta de um número volumoso de obras. Klint
realizou essa missão entre os anos de 1906 e 1915, seguindo, especialmente no
início desse período, a orientação minuciosa do mestre na construção de cada
imagem de seu trabalho.
Em
1909, Klint se aproxima de Rudolf Steiner,
teósofo e posteriormente fundador da Antroposofia. Steiner dirige algumas
orientações a Klint, com a permissão dos mestres espirituais. A partir de então
a artista passa, pouco a pouco, a se apropriar de sua obra, construindo as
imagens de modo mais autônomo, baseada em seus estudos espiritualistas. Ambos
compreenderam, e também fora orientada pelos mestres, que sua produção estava
muito à frente de seu tempo, e que a sociedade da época não estava preparada
para recebê-la. Portanto, Klint continuou a produzir em segredo. As pessoas não
podiam ter contato com sua obra, exceto Rudolf Steiner - que chegou a ter
contato, ao menos uma vez, com sua obra - e as outras mulheres da De Fem que pouco a pouco desfizeram o
grupo, deixando Klint sozinha em sua missão. Assim, Klint solicitou que a
divulgação de sua produção fosse realizada somente vinte anos após a sua morte.
Klint,
portanto, tinha vidas paralelas. Ao longo do dia trabalhava como retratista, e
à noite pintava em segredo as obras encomendadas. Somente em 1964¸ exatamente após vinte anos de sua
morte, sua obra começa a ser divulgada. Entretanto, apenas em 1986 suas
pinturas ganham uma primeira exposição.
A
produção de Klint é extremamente relevante para a história da arte. Ela pintara
imagens abstratas anos antes de Wassily Kandinsky (1939-1944), considerado
precursor da arte abstrata. Desse modo, hoje em dia, seu lugar de precursora do
abstracionismo é reivindicado. Em Estocolmo suas obras são expostas fazendo
menção a seu pioneirismo. Entretanto, não existe um consenso sobre sua
classificação. Luciana Pinheiro, escritora e pesquisadora brasileira da obra de
Klint, em entrevista
sobre a publicação de seu livro “As Cores da Alma” (2018), considera que Hilma
estaria mais associada ao Simbolismo que ao Abstracionismo, já que na época não
estava inserida nesse movimento, e seu trabalho traz muitos símbolos relativos à
sua “canalização” e a seus estudos espiritualistas.
Entretanto,
é interessante notar que os artistas abstracionistas dessa época, Wassily
Kandinsky e Pieter Mondrian (1872-1944) também estavam associados à Teosofia de
Helena Blavatsky, assim como Klint. Encontravam-se em uma sociedade em pleno
desenvolvimento material e buscavam, portanto, espiritualizar a arte através de
suas obras de cunho abstrato e espiritualista.
Hilma af Klint e a Papisa
Hilma
af Klint nos oferece um universo muito próximo ao da Papisa. A artista foi
escolhida para ser a guardiã dos segredos, símbolos, imagens do Espírito, que a
ela lhe foram confiados. Recebeu a tarefa de canalizá-los, vela-los e não
revelá-los. Klint, como a Papisa que é a guardiã do templo dos conhecimentos
místicos, profundos e ocultos, recebe a missão e a ela se mantém fiel até o fim
de sua vida. Especialmente até a primeira metade de sua missão, Hilma tem papel
passivo, de canalizadora das imagens, não possuindo entendimento dos símbolos que
recebia (CRUZ, 2019). Para ela as imagens surgiam de algum lugar que não o da
consciência. Desse modo, podemos considerar, sem que seja necessário
desconsiderar o lugar da espiritualidade, que o inconsciente, pessoal e coletivo,
fora fundamental no papel que aceitou desempenhar. Esse modus operandis nos aproxima ainda mais da Papisa, de sua
associação à imaginação, aos sonhos e ao inconsciente coletivo.
Klint
precisou guardar segredo de sua missão e de sua obra. Portanto, durante
cinquenta e oito anos manteve as centenas de pinturas que havia produzido no
subsolo do conhecimento coletivo. Em consonância com a artista, a Papisa, por
excelência, sabe calar e velar os segredos do templo, ocultando da consciência
as imagens com seus véus. Ambas, desse modo, possuem uma profundidade e
densidade associadas à espiritualidade e ao inconsciente.
É
interessante notar, levando em consideração as relações de gênero, que Klint
não foi reconhecida em vida. Mesmo que o quisesse, muito provavelmente
encontraria resistências. Como sabemos, os nomes de artistas mulheres não foram
inseridos na história da arte ocidental, cabendo algumas poucas exceções. Com
isso, quero chamar atenção ao fato de que no tarô a Papisa, apesar de possuir
uma classificação feminina do Papa, não possui um lugar institucionalizado no
mundo, até porque é um cargo inexistente. Preenche, portanto, um lugar oculto.
É o Papa, não por acaso, que possui a visibilidade institucional,
recorrentemente associada ao princípio masculino, ao sol que ilumina e que traz
à luz.
Tratamos
de símbolos e princípios constitutivos de mulheres e homens que se expressam na
vida prática. As características do yin,
associado ao feminino e às mulheres, em geral, são menos valorizadas
socialmente, que as do princípio yang,
vinculado ao masculino e aos homens. Não por acaso, quem se institucionaliza e
ganha lugar como precursor do abstracionismo é um homem e
não uma mulher.
No
entanto, sua obra veio à luz. Hoje conhecemos Hilma af Klint e podemos conhecer
sua obra. Talvez o lugar da Papisa também esteja se transformando. Quem sabe,
algum dia, as características yin se
tornem, em nossa sociedade, tão valorizadas quanto as características yang, e as palavras homens e mulheres
possam expressar diferenças e não preeminência de uma sobre a outra.
Proposta Terapêutica
A
proposta terapêutica, aplicada na Jornada Arteterapêutica Arte e Tarô, ao facilitar
a aproximação com o arquétipo da Papisa e com obra e vida de Hilma af Klint,
era o de possibilitar o contato com o inconsciente coletivo e com a intuição no
processo de desenvolvimento de um símbolo próprio. As obras de Klint possuem um
material simbólico riquíssimo e inspirador. A proposta para a produção do
trabalho plástico então consistia em compor um desenho retirando de cada obra
de Klint apresentada um elemento que chamasse atenção, o integrando
posteriormente através da pintura.
O
trabalho que trago abaixo, de uma das participantes da oficina, é bem
representativo da possibilidade de acesso às imagens do inconsciente coletivo.
A autora desconhecia o símbolo da Sociedade Teosófica, que Klint fazia parte, o
qual não foi apresentado na vivência. Entretanto, a participante retirou
elementos de cada obra e ao final os integrou compondo uma imagem bastante
similar ao símbolo da Sociedade Teosófica. Abaixo apresento ambas imagens:
Título: Proteção
Símbolo da Sociedade Teosófica
Nesse
processo, assim como Klint, a participante canalizou um símbolo, expressando a
possiblidade de acesso ao inconsciente coletivo mediante a todo um processo de
estímulo e preparação que envolveu visualização dirigida, contato com o
arquétipo e vida da artista em questão, bem como a observação de imagens
simbólicas.
Referências Bibliográficas
CRUZ, A. C. C. (2019). Hilma af Klint: Do espírito à matéria. Palíndromo, v. 11, n. 24, p. 42-58, maio.
NICHOLS, Sallie (1997). Jung e o Tarô: Uma Jornada Arquetípica. Trad. Laurens Van Der Post. Editora Cultrix: São Paulo.
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Sobre a autora: Mercedes Duarte
Arteterapeuta, Mestre em Ciências Sociais, pesquisadora autônoma de arte, terapia e oráculos