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segunda-feira, 16 de agosto de 2021

ENTRE OS MÓBILES E STÁBILES DE CALDER – LIDANDO COM A DOR NA ARTETERAPIA

 


Por Tania Salete (RJ) CE

@caminhartes.arteterapia

Desde que fomos imersos neste fenômeno chamado pandemia do coronavírus, em março de 2020, temos, de certa forma, convivido com outro fenômeno que veio a reboque: o luto coletivo. 

Desde então, de uma maneira ou de outra, fomos convivendo com as perdas: de espaços físicos, restrição da nossa fala (pelo uso constante e obrigatório das máscaras), do contato pessoal, emprego, projetos, familiares, amigos, milhares de vidas. Foram e ainda são tantas perdas que ficaremos muito tempo tentando entender o que aconteceu de verdade. Porém, como a vida transita nas oposições, temos luz e sombra, positivo e negativo, em cima e embaixo, percebemos inúmeros   avanços neste tempo. A Arteterapia, por exemplo, se reinventou, se ressignificou e o que parecia improvável e até inadmissível, agora é a nossa mais interessante e significativa ferramenta de trabalho: atendimentos online. E como tem sido incrível para aqueles que corajosamente decidiram atravessar este portal para uma nova realidade. 

Dentre as possibilidades de autocuidado, enquanto arteterapeuta, participo do Grupo Quiron¹ desde o início da proposta. A cada encontro e através das propostas vivenciais, os participantes têm a possibilidade de fazer contato consigo mesmos, com suas almas e, através de seus processos criativos e produção de imagens, nutrirem-se e reenergizarem-se. É como quem chega a um oásis, depois de caminhar por terrenos tão áridos e difíceis, poder descansar, receber acolhimento, compartilhar seu percurso e sentir-se fazendo parte de algo maior. Beber da própria fonte (a arte) é um exercício saudável, necessário e importante para os Arteterapeutas. 

No final de junho participei da palestra sobre Alexandre Calder na prática da Arteterapia, oferecida pela Eliana Moraes. As obras de Calder são instigantes justamente pela alternância entre a leveza e flexibilidade dos móbiles e a densidade e peso dos stábiles, que são obras grandiosas. 

Como proposta prática, tivemos oportunidade de, assim como Calder, experimentar desenhar com arames, percebendo suas gramaturas, espessuras e as diferentes possibilidades de criação, pois a ideia inicial era construir um móbile com arame e algumas peças que julgássemos necessárias para compor a obra. Ou seja, partir do desenho bi para o tridimensional, criando uma escultura em arame. 

            Segundo Moraes (2018), “a escultura é uma técnica construtora, estruturante. No diálogo com a imagem coloca o autor prioritariamente em relação com o volume, o tridimensional”. 

Para Calder, construir esculturas com arame era uma espécie de paixão. O famoso Circo   Calder, composto por várias esculturas de personagens, como acrobatas, palhaços,   animais,  feitos com fios, arames,  madeira, metal, pano, papel, papelão, couro, tubos de borracha, rolhas, botões, strass, limpadores de cachimbo e tampas de garrafa. Parece até que Calder tinha alguma semelhança com os Arteterapeutas na arte de juntar sucatas. 

Embora a proposta fosse animadora, estava vivendo um momento de profunda tristeza, pois no dia anterior havia perdido uma grande amiga para a Covid. Estava emocionalmente abalada e até preocupada se conseguiria chegar ao final da palestra. Mas, confiando mais uma vez na potência e ação da Arteterapia, deixei que a intuição me guiasse e simplesmente fui dando voltas no arame mais maleável (aquele momento já era suficientemente duro para lidar com um material resistente ao manuseio). Porém, ao final, foi solicitado que o trabalho tivesse estabilidade, ou seja, precisaria de uma base mais firme. Tentei vários objetos e não conseguia mantê-lo em pé tempo suficiente. Até corporalmente, minha postura não era de ficar “em pé”.  Enfim, usando pedaços de placas de isopor, consegui estabilizar a peça. Minha intenção inicial foi que aquelas voltas simbolizassem os mistérios da vida e o quão impotente ficamos diante, por exemplo, da morte repentina de alguém. Entretanto, durante a confecção, a peça foi se transformando num ramo de árvore, bem leve, balançando ao vento. Enfeitei-a com flores brancas feitas com EVA e na base, colei dois corações vermelhos (também de EVA), com algumas flores que caíram do cacho. Coloquei a peça em pé e logo pensei que assim como a árvore, precisaria equilibrar também minhas emoções, por maior que fosse a tristeza. Respirei fundo e quando vi a peça pronta, equilibrada, decidi que seria minha homenagem para minha amiga querida. Fui tomada por uma sensação de completude, de acomodação e paz. Era como se a dor tivesse tomado assento no meu coração e se acomodasse num lugar seguro. Foi algo revelador e muito emocionante. Citando Moraes: “Colocar o sujeito na experiência com o material significa colocá-lo para agir sobre ele em suas questões psíquicas”. (MORAES, 2019, 72)

  Ainda segundo Carrano:

 

... manipular os materiais duros esculpindo-os pode ser um ato transformador, pois, no     decorrer do processo terapêutico, quando o homem interage com o material, ele é levado a perceber que, ao trabalhar sobre a matéria, esta ao mesmo tempo trabalhando seus conteúdos internos, ou seja, sobre si próprio, e , dessa relação, pode resultar em uma transformação tanto externa (expressa no resultado da obra) quanto interna (observadas nas modificações de        comportamento por meio de uma maior conscientização do mesmo e nas relações feitas durante o processo terapêutico). (CARRANO, 2013, p.164)

 



Em seguida, utilizando um material mais firme, grosso, como um papelão, por exemplo, deveríamos construir uma peça simbolicamente grande como um stábile, mas que trouxesse amparo, solidez, segurança, estabilidade. Em apenas três movimentos com papelão, surgiu uma casa, mas sem portas. Parecia um grande galpão que foi enfeitado com placas redondas de EVA e no “teto” uma espécie de móbile daqueles tipo cata-vento. Ao ser solicitado que ambos fossem colocados um ao lado do outro, pude perceber que se completavam, apesar das proporções bem diferentes, e até antagônicas. Simbolicamente representava um local de passagem, onde se entraria de uma forma, receberia acolhimento, teria possiblidade de através da arte e dos materiais disponíveis, houvesse uma transformação e saísse do outro lado, diferente e mais firme. Chamei de Casa da Arte. 

 Segundo  Carrano:

 

A arte é sensorial, pois no ato da criação, ela conecta o homem com seus sentidos, ao se                                                             relacionar com o material e é nessa manipulação que a percepção se manifesta agindo por meio do tato, da visão, da audição; despertando a imaginação, que é esculpida, lapidada e incentivada a cada momento. Ao atuar sobre as sensações mais viscerais, o ato de esculpir vai trabalhar a percepção, desenvolvendo a intuição, trazendo autoconfiança pelo fato de conseguir transformar, dando uma nova forma a uma matéria, que ao ser tocada e manuseada, é transformada, trazendo uma sensação de força e poder. (CARRANO 2013,p.164) 

Conclusão 

             O trabalho de Calder foi uma inspiração mais que apropriada, um disparador de processos muito reais e vividos naquele momento. É licito sentir dor, é humano chorar, mas a possibilidade de ressignificar a dor é importante e saudável para continuar sua caminhada.

            A fluidez delicada e flexível do móbile com a concretude, acolhimento e proteção do stábile que para mim se complementaram numa só imagem, foi um momento incrível e que mais uma vez, validou o quanto é bom praticar a Arteterapia e usufruir de sua potência, na vida e na arte.

 

1.      1- Um projeto oferecido pelo Não Palavra, da Eliana Moraes e em parceria com Espaço Crisântemo, da Arteterapeuta Regina Rasmussen

 

Bibliografia:

1. MORAES, Eliana. Pensando a Arteterapia Volume 2. Semente Editorial, ES. 2019. 

2. CARRANO, Eveline, REQUIÃO, Maria Helena. Materiais de Arte – Sua linguagem subjetiva para o trabalho terapêutico e pedagógico. WAK Editora, Rio de Janeiro, 2013. 

3. Biografia do escultor Alexander Calder - Disponível em: https://comjeitoearte.blogspot.com/2012/07/hoje-aconteceu-aniversario-do-escultor.html

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Sobre a autora: Tania Salete



Graduação em fonoaudiologia, pós graduação em psicopedagogia/UERJ.  Especialização em Arteterapia pela POMAR, Rio de Janeiro. Atuou com grupos terapêuticos e de apoio em casa de recuperação feminina e masculina. Atendimentos online - individuais e Grupos de Mulheres (REDE), crianças e adolescentes.   Atualmente residindo em Fortaleza/CE

Contatos: @caminhartes.arteterapia (Instagram e Facebook)


5 comentários:

  1. Agradeço à equipe do Não Palavra por disponibilizar este espaço para registrar nossa caminhada. Num tempo como hoje, experienciar da nossa própria fonte é algo revigorante e traz ainda mais validação ao processo arteterapeutico! Mais do que nunca a arte cura!

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  2. Tania,
    Parabéns por um texto tão atual e verdadeiro. As perdas durante a pandemia não foram e não estão sendo nada fáceis. As possibilidades que surgiram no online foram um conforto e um ponto de apoio para todos nós. Seu trabalho ficou lindo !
    Um forte abraço, Claudia Abe

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  3. Querida Tânea,
    Vivemos momentos difíceis mesmo e perdas irreparáveis que só o tempo e nossa força interna poderá nos curar. Parabéns pelo seu trabalho! Sua sensibilidade e amor fazem da ARTETERAPIA um caminho de luz ! Continue a iluminar !!! Bjs no ❤️

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    1. Obrigada, Elenice! A Arte é um refúgio importante neste tempo estranho!

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  4. Tânia..o quão profundo foi este momento para você e que bom dividir. Quanto você mostra que nos é licito a dor mas é um bálsamo poder ressignificá-la traz a esperança que parece morar longe, bem mais perto de nós. Parabéns!!!

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