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segunda-feira, 2 de agosto de 2021

DIÁLOGOS ENTRE ARTE, TERAPIA E TARÔ: A PAPISA, HILMA AF KLINT E AS RELAÇÕES DE GÊNERO

 Por Mercedes Duarte - RJ

duarte.mercedes@gmail.com

Dando sequência às reflexões acerca dos 22 arcanos maiores do tarô, associados a aspectos da arte que possam nos aproximar desses arquétipos, trago hoje o Arcano II, a Papisa, em diálogo com uma artista plástica que manteve em segredo durante a sua vida, e vinte anos após a sua morte, boa parte de sua obra: Hilma af Klint.  

O intuito desse diálogo, entre arte e tarô, é o de proporcionar reflexões propositivas, possibilidades terapêuticas - experimentadas na Jornada Arteterapêutica Arte e Tarô[1] - que permeiam esses elementos em diálogo, inspirando assim uma possível ampliação do repertório arteterapêutico. 

A Papisa e o mergulho em si 

Quando nada acontece há um milagre que não estamos vendo

Guimarães Rosa

 

A medida que com minhas palavras tiro das coisas o véu que as cobre, me pasmo ao avisar que fui capaz de observar infinitamente mais do que posso dizer

 Virginia Woolf

 

A Papisa está ancorada no número 2. Enquanto o Mago, número 1, representa a ação, o movimento consciente, o elemento fogo e o princípio yang primário, a Papisa expressa sua contraparte, seu desdobramento, o outro de si, considerada a anima do Mago (NICHOLS, 1997), o primeiro elemento feminino dos arcanos maiores do tarô. Ela está associada ao elemento água, à polaridade yin, ao princípio feminino que se liga à receptividade, aceitação e não-ação. 

A Papisa, entronada, é guardiã de um templo, onde reside uma sabedoria oculta, interna, e o próprio inconsciente coletivo. Sua missão é a de ser um portal do espírito, um veículo por onde a divindade é recebida, entretanto ela não a controla. Assim como a Lei, materializada no livro, ou papiro, encontrada em suas mãos, não foi produzida por ela, mas é ela que a recebe e guarda. 

Em muitas de suas representações ela possui véus que representam o conhecimento velado, o lado misterioso da lua, que guarda sentimentos profundos e sabedoria ancestral. Seus dons se relacionam ao conhecimento interior, à introspecção, ao silêncio da mente, e à intuição. Se se quer conhecê-la há que calar e voltar-se para dentro, compreendendo um tempo que extrapola nosso ritmo imediatista. Desse modo, a paciência é uma de suas artes, assim como a aceitação. A aceitação, não enquanto submissão, mas como acolhimento das sombras, pois para integrá-las é necessário primeiramente conhecê-las e aceitá-las (NICHOLS, 1997).

Diferentemente da magia do Mago - que através da manipulação dos elementos manifesta no mundo material, de modo consciente, sua criação - a magia da Papisa faz parte do mundo dos sonhos, da imaginação, das imagens internas, espirituais e inspiradoras.           

O Mago, número Um, como supramencionado, marca o princípio ativo, consciente, relacionado ao masculino, e a Papisa, número Dois, o princípio receptivo, inconsciente, associado ao feminino. Por motivos óbvios, relativos às desigualdades de gênero e desvalorização do feminino ao longo da história, é possível recebermos essas associações com alguma resistência e desconfiança. A própria autora do livro Jung e o Tarô: uma Jornada Arquetípica (1997), Sallie Nichols, das referências desse texto, ao apresentar a Papisa, desenvolve reflexões nesse sentido, e busca, de algum modo, apresentar compensações a respeito desse arquétipo ocupar o segundo lugar na ordem dos arcanos. Desenvolve, nesse sentido, a ideia da consciência, princípio yang, emergir do inconsciente, princípio yin. Enfatiza, desse modo, uma espécie de anterioridade desse princípio que rege a Papisa, baseada nos mitos da criação: 

O elemento que se liga a ela [Papisa] é a água. Na maioria dos mitos da criação, a água é descrita com o poder original receptivo, produtivo e construtor de forma. Das profundezas do oceano, do berço eternamente balouçante, se ergueu toda a criação – todas as formas de vida. Das profundezas do inconsciente se ergueu a própria consciência. Pois assim como o embrião individual está contido e alimentado no líquido amniótico, assim cada identidade individual está contida e é alimentada no profundo inconsciente de todo recém-nascido. Assim sendo, é do inconsciente que nasce a consciência (1997, p.89). 

Portanto, em conversa com a Papisa através de uma meditação, a autora é convencida de que a sequência numérica não indica a preeminência de um arcano sobre o outro. Ambos são fundamentais. A disparidade entre eles, portanto, marca diferença e não importância. E a ordem dependeria então da direção que se lê. Entretanto, ainda que possamos concluir que é do inconsciente que a consciência surge, a discussão se torna estéril diante da grandeza simbólica, complementar e, ao mesmo tempo, autônoma de cada arquétipo, e de sua importância simbólica na vida de todo ser humano, sejam eles considerados mulheres ou homens. 

Hilma af Klint 


The Swan, No. 12, Group IX SUW, 1915

Imagem retirada de https://arthistoryproject.com/artists/hilma-af-klint/group-ix-swan-no-12/ 

Para me acercar da Papisa, a partir do contato com elementos de natureza artística, por recomendação de minha terapeuta, mergulhei no universo de Hilma af Klint. Hilma poderia representar quase que fielmente o universo da Papisa. Quanto mais conhecia sua história e seu trabalho, mais me sentia próxima ao arquétipo em questão. Hilma af Klint foi uma artista plástica sueca que viveu entre o período de 1862 a 1944. A artista, “talentosa, enigmática e atemporal, conciliou sua intensa vida religiosa e artística como propósito único de sua existência” (CRUZ, 2019, p.44). Klint produziu mais de 124 cadernos com mais de 26.000 páginas de manuscritos e 1.200 pinturas, tanto de caráter figurativo, quanto abstrato de cunho esotérico. Formada na Real Academia de Belas Artes de Estocolmo, em 1887, se tornou uma artista retratista, mas ocultamente elaborava suas obras abstratas. 

Klint estudou muitos movimentos religiosos, mas manteve maior envolvimento com a Teosofia de Helena Blavatsky (1831-1891)[2] e de Rudolf Steiner (1861-1925). É com essa inclinação aos estudos esotéricos e às experiências mediúnicas que Klint, em 1896, passa a se encontrar com mais cinco artistas mulheres para estabelecerem contato com o plano espiritual. Funda então o grupo De Fem, ou “As Cinco”, onde, nas sessões regulares realizadas por mais de dez anos, expressam o contato com entidades espirituais através da escrita automática e de desenhos de caráter mediúnico. Klint, dez anos mais tarde, em 1906, recebe uma proposta de um dos mestres espirituais e a aceita. Consistia em uma “Encomenda para o Templo”, que pretendia a produção oculta de um número volumoso de obras. Klint realizou essa missão entre os anos de 1906 e 1915, seguindo, especialmente no início desse período, a orientação minuciosa do mestre na construção de cada imagem de seu trabalho. 

Em 1909, Klint se aproxima de Rudolf Steiner, teósofo e posteriormente fundador da Antroposofia. Steiner dirige algumas orientações a Klint, com a permissão dos mestres espirituais. A partir de então a artista passa, pouco a pouco, a se apropriar de sua obra, construindo as imagens de modo mais autônomo, baseada em seus estudos espiritualistas. Ambos compreenderam, e também fora orientada pelos mestres, que sua produção estava muito à frente de seu tempo, e que a sociedade da época não estava preparada para recebê-la. Portanto, Klint continuou a produzir em segredo. As pessoas não podiam ter contato com sua obra, exceto Rudolf Steiner - que chegou a ter contato, ao menos uma vez, com sua obra - e as outras mulheres da De Fem que pouco a pouco desfizeram o grupo, deixando Klint sozinha em sua missão. Assim, Klint solicitou que a divulgação de sua produção fosse realizada somente vinte anos após a sua morte. 

Klint, portanto, tinha vidas paralelas. Ao longo do dia trabalhava como retratista, e à noite pintava em segredo as obras encomendadas. Somente em 1964¸ exatamente após vinte anos de sua morte, sua obra começa a ser divulgada. Entretanto, apenas em 1986 suas pinturas ganham uma primeira exposição.[3] 

A produção de Klint é extremamente relevante para a história da arte. Ela pintara imagens abstratas anos antes de Wassily Kandinsky (1939-1944), considerado precursor da arte abstrata. Desse modo, hoje em dia, seu lugar de precursora do abstracionismo é reivindicado. Em Estocolmo suas obras são expostas fazendo menção a seu pioneirismo. Entretanto, não existe um consenso sobre sua classificação. Luciana Pinheiro, escritora e pesquisadora brasileira da obra de Klint, em entrevista[4] sobre a publicação de seu livro “As Cores da Alma” (2018), considera que Hilma estaria mais associada ao Simbolismo que ao Abstracionismo, já que na época não estava inserida nesse movimento, e seu trabalho traz muitos símbolos relativos à sua “canalização” e a seus estudos espiritualistas. 

Entretanto, é interessante notar que os artistas abstracionistas dessa época, Wassily Kandinsky e Pieter Mondrian (1872-1944) também estavam associados à Teosofia de Helena Blavatsky, assim como Klint. Encontravam-se em uma sociedade em pleno desenvolvimento material e buscavam, portanto, espiritualizar a arte através de suas obras de cunho abstrato e espiritualista. 

Hilma af Klint e a Papisa 

Hilma af Klint nos oferece um universo muito próximo ao da Papisa. A artista foi escolhida para ser a guardiã dos segredos, símbolos, imagens do Espírito, que a ela lhe foram confiados. Recebeu a tarefa de canalizá-los, vela-los e não revelá-los. Klint, como a Papisa que é a guardiã do templo dos conhecimentos místicos, profundos e ocultos, recebe a missão e a ela se mantém fiel até o fim de sua vida. Especialmente até a primeira metade de sua missão, Hilma tem papel passivo, de canalizadora das imagens, não possuindo entendimento dos símbolos que recebia (CRUZ, 2019). Para ela as imagens surgiam de algum lugar que não o da consciência. Desse modo, podemos considerar, sem que seja necessário desconsiderar o lugar da espiritualidade, que o inconsciente, pessoal e coletivo, fora fundamental no papel que aceitou desempenhar. Esse modus operandis nos aproxima ainda mais da Papisa, de sua associação à imaginação, aos sonhos e ao inconsciente coletivo.

Klint precisou guardar segredo de sua missão e de sua obra. Portanto, durante cinquenta e oito anos manteve as centenas de pinturas que havia produzido no subsolo do conhecimento coletivo. Em consonância com a artista, a Papisa, por excelência, sabe calar e velar os segredos do templo, ocultando da consciência as imagens com seus véus. Ambas, desse modo, possuem uma profundidade e densidade associadas à espiritualidade e ao inconsciente.

É interessante notar, levando em consideração as relações de gênero, que Klint não foi reconhecida em vida. Mesmo que o quisesse, muito provavelmente encontraria resistências. Como sabemos, os nomes de artistas mulheres não foram inseridos na história da arte ocidental, cabendo algumas poucas exceções. Com isso, quero chamar atenção ao fato de que no tarô a Papisa, apesar de possuir uma classificação feminina do Papa, não possui um lugar institucionalizado no mundo, até porque é um cargo inexistente. Preenche, portanto, um lugar oculto. É o Papa, não por acaso, que possui a visibilidade institucional, recorrentemente associada ao princípio masculino, ao sol que ilumina e que traz à luz.

Tratamos de símbolos e princípios constitutivos de mulheres e homens que se expressam na vida prática. As características do yin, associado ao feminino e às mulheres, em geral, são menos valorizadas socialmente, que as do princípio yang, vinculado ao masculino e aos homens. Não por acaso, quem se institucionaliza e ganha lugar como precursor do abstracionismo é um homem[5] e não uma mulher.

No entanto, sua obra veio à luz. Hoje conhecemos Hilma af Klint e podemos conhecer sua obra. Talvez o lugar da Papisa também esteja se transformando. Quem sabe, algum dia, as características yin se tornem, em nossa sociedade, tão valorizadas quanto as características yang, e as palavras homens e mulheres possam expressar diferenças e não preeminência de uma sobre a outra.

Proposta Terapêutica

A proposta terapêutica, aplicada na Jornada Arteterapêutica Arte e Tarô, ao facilitar a aproximação com o arquétipo da Papisa e com obra e vida de Hilma af Klint, era o de possibilitar o contato com o inconsciente coletivo e com a intuição no processo de desenvolvimento de um símbolo próprio. As obras de Klint possuem um material simbólico riquíssimo e inspirador. A proposta para a produção do trabalho plástico então consistia em compor um desenho retirando de cada obra de Klint apresentada um elemento que chamasse atenção, o integrando posteriormente através da pintura.

O trabalho que trago abaixo, de uma das participantes da oficina, é bem representativo da possibilidade de acesso às imagens do inconsciente coletivo. A autora desconhecia o símbolo da Sociedade Teosófica, que Klint fazia parte, o qual não foi apresentado na vivência. Entretanto, a participante retirou elementos de cada obra e ao final os integrou compondo uma imagem bastante similar ao símbolo da Sociedade Teosófica. Abaixo apresento ambas imagens:

 


                                                                     Título: Proteção

 


                                                        Símbolo da Sociedade Teosófica

Nesse processo, assim como Klint, a participante canalizou um símbolo, expressando a possiblidade de acesso ao inconsciente coletivo mediante a todo um processo de estímulo e preparação que envolveu visualização dirigida, contato com o arquétipo e vida da artista em questão, bem como a observação de imagens simbólicas.

 


[1] A Jornada Arteterapêutica Arte e Tarô consiste em oficinas quinzenais, facilitadas por mim, inspiradas nos arcanos maiores do tarô que são associados a determinados aspectos da arte.

[2]Co-fundadora da Sociedade Teosófica em 1875 e responsável pela sistematização e modernização da Teosofia.

[3] Sua primeira exposição aconteceu em 1986, na mostra “The Spiritual in Art: Abstract Paintings 1890–1985”, realizada no Los Angeles County Museum of Art. A circulação de seus trabalhos em alguns países europeus permitiram que sua produção fosse reconhecida internacionalmente. Em 2018, obteve a primeira passagem pela América Latina. No Brasil esteve na Pinacoteca de São Paulo, com a exposição “Hilma af Klint: Mundos Possíveis” (CRUZ, 2019, p.44).

[4] Disponível em https://youtu.be/IsxQUZOAB7A. Acesso em 04/11/2020.

[5] Vale a pena ressaltar que esse homem, Kandinsky, buscava espiritualizar a arte, enquanto Klint, servir ao Espírito (CRUZ, 2019), o que marca bem os papéis sociais associados aos gêneros.

 

Referências Bibliográficas

CRUZ, A. C. C. (2019). Hilma af Klint: Do espírito à matéria. Palíndromo, v. 11, n. 24, p. 42-58, maio.

NICHOLS, Sallie (1997). Jung e o Tarô: Uma Jornada Arquetípica. Trad. Laurens Van Der Post. Editora Cultrix: São Paulo.

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Sobre a autora: Mercedes Duarte

Arteterapeuta, Mestre em Ciências Sociais, pesquisadora autônoma de arte, terapia e oráculos

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