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segunda-feira, 19 de julho de 2021

DO CUBISMO À ARTETERAPIA: O CUBISMO SINTÉTICO

 


"Nature Morte sur une Table" Braque

Por Eliana Moraes – MG

naopalavra@gmail.com

Este texto é a continuidade da série iniciada há algumas semanas, com o intuito de buscar articulações entre o movimento cubista e a Arteterapia. No primeiro texto o enfoque se deu na fase do Cubismo Analítico (CLIQUE AQUI) e o texto de hoje, refletiremos sobre o Cubismo Sintético.

Rememorando a proposta desta série, não tenho como pretensão esgotar a tamanha proporção do movimento cubista apenas em dois textos, mas fazer uma leitura geral de sua marca na história e seus simbolismos, e em especial abordar algumas possíveis articulações do movimento com meu campo de estudo e atuação, a Arteterapia.

Cubismo sintético (1912-1919):

Desde 1907 Georges Braque e Pablo Picasso firmaram uma profunda amizade na vida e um “casamento” na arte.  Debatiam, teorizavam, experimentavam, criavam, gerando assim o Cubismo Analítico, e no decorrer da caminhada, em torno de 1912, foram encontrando novas possibilidades:

Nas fases iniciais do cubismo, os pintores começaram com uma imagem mais ou menos naturalista que depois era fragmentada e analisada (e assim, numa certa medida resumida) à luz dos novos conceitos de espaço e forma. Os processos foram agora invertidos: começando com a abstração, os artistas trabalharam na direção da representação. Estava consumada a transformação de um procedimento “analítico” em outro, “sintético”.

Sob muitos aspectos, a colagem foi a conclusão lógica da estética cubista. (GOLDIND, 2000, 58)

Tudo começou quando Braque e Picasso passaram a incorporar tiras de papel e outros fragmentos de materiais às suas pinturas e desenhos. Braque foi o inventor do papier collé, uma forma particular de colagem, em que tiras ou fragmentos de papel são aplicadas à superfície da pintura ou desenho:

... como experimentos de escultura em papel... tinham o objetivo de encontrar um meio de se obter uma sensação de relevo sem recorrer às formas tradicionais de ilusionismo pictórico. Assim, um pedaço de papel recortado na forma de uma guitarra, fixado em sua base a um pedaço de papel de parede e inclinado para fora, destacar-se-á deste e evitará o uso de uma sombra pintada. (GOLDING, 2000, 56)

Através do papier collé os artistas encontraram a solução para a reintrodução da cor na pintura cubista. Enquanto manipulavam tiras de papel colorido e outros elementos de colagem, eles conceberam um procedimento totalmente novo. E em decorrência destas experimentações, Picasso foi mais além, tornando-se o artista considerado:

... o descobridor da colagem, a qual pode ser descrita como a incorporação de qualquer material estranho à superfície do quadro... Picasso delicia-se em usá-los de maneira paradoxal, convertendo uma substância em outra e extraindo significados inesperados da combinação de outras de um modo original. Picasso converte um pedaço de papel de parede florido numa toalha de mesa, e um fragmento de jornal num violino. (GOLDING, 2000, 54-55)

De fato, Braque e Picasso provocaram uma grande revolução nas categorias de arte e nos materiais considerados materiais de arte:

Esses dois grandes  pioneiros da arte haviam mais uma vez triunfado: tinham inventado a colagem...

Parecia tão óbvio, tão fácil; tão infantil. Mas antes de Braque e Picasso ninguém, absolutamente ninguém, tinha pensado nisso como uma forma de arte. Sim, as pessoas já tinham feito recortes e os prendido em alguma outra coisa – coleções de lembranças num livro de recortes por exemplo. Os antigos chegavam até a decorar suas pinturas com joias, e Degas enrolou um pedaço de musselina e seda no corpo de sua escultura Bailarina de 14 anos (1880-81). Mas a ideia de que materiais corriqueiros e ordinários podiam ser usados no altar sagrado do cavalete do artista era totalmente nova. (GOMPERTZ, 152)

Podemos compreender que os caminhos de experimentação de Braque e Picasso estavam inseridos em uma busca da Arte Moderna rumo à reaproximação entre a arte e a vida, iniciada com os impressionistas:

Em 1912 as pessoas já tinham se acostumado a ver artistas representando a vida cotidiana: temas do mundo real convertidos em arte através de pincelada e tinta. Não estavam, contudo, acostumadas a ver artistas apropriando-se de elementos reais da vida cotidiana e incorporando-os a suas pinturas: uma ação que reescrevia totalmente o livro de regras sobre a relação da arte com a vida... (GOMPERTZ, 151-152)

Fragmentos de jornais, maços de cigarro, papéis de parede e tecidos estão relacionados com a nossa vida cotidiana; identificamo-los sem esforço e... formam parte de nossa experiência no mundo material que nos cerca... (GOLDING, 2000, p 54)

O papel de parede de Braque e o oleado de Picasso podiam ser materiais vulgares sem valor, mas em termos da história da arte foram como bananas de dinamite... Eles não estavam copiando a vida real: estavam se apropriando dela. (GOMPERTZ, 151-152)



"Natureza morta com cadeira de palha" Picasso

Os cubistas como “antenas da raça”  

É, de fato, essencial que possamos contextualizar as experimentações do cubismo sintético e simbolismos em seu momento histórico. Estamos falando das vésperas da Primeira Guerra Mundial, um período em que os potenciais de “estranheza” e “horror” humano vieram a tona em seu máximo grau de destruição. Picasso, intuitivamente, dava forma a esta estranheza em suas obras:

... Se um pedaço de jornal pode converter-se numa garrafa, isso também nos dá algo para pensar a respeito de jornais e garrafas. Este objeto deslocado ingressou num universo para o qual não foi feito e onde, em certa medida, conserva sua estranheza. E foi justamente sobre essa estranheza que quisemos fazer com que as pessoas pensassem, pois tínhamos perfeita consciência de que o nosso mundo estava ficando muito estranho e não exatamente tranquilizador. (PICASSO in GOLDING, 2000, 55)

Neste sentido, faz-se bastante simbólico compreendermos que este foi o contexto em que a colagem efetivamente adentrou às categorias da arte e se inscreveu na história da arte ocidental: em meio à destruição e às inúmeras fragmentações literais e simbólicas de uma grande guerra. O que restaria ao ser humano como caminho possível e necessário senão o recompor e o colar? Este foi um processo criativo também bastante explorado pelos dadaístas, contemporâneos dos cubistas, ao qual podemos fazer uma leitura interpretativa:

Vejo aqui um simbolismo muito interessante a ser pensado, pois a partir do processo criativo da colagem, que tanto ganhou força nesse período... Os artistas intuitivamente começavam, através da  arte, a gerar movimentos que reverberariam no coletivo. Buscando algum possível, os artistas através da colagem fracionavam, selecionavam elementos fragmentados, rejuntavam, recompunham, reinventavam, ressignificavam. Processo que instiga a resiliência, individual e coletiva, movimentos que seres humanos abalados pelas destruições das guerras, mais do que nunca necessitavam acessar. (MORAES, 2019, 144)

Legados para a Arteterapia

Podemos concluir que a abertura para que todo e qualquer material seja considerado material de arte é um dos grandes legados que o Cubismo Sintético pôde deixar para a Arteterapia.  Ao ampliarmos o olhar para além dos materiais tradicionais e técnicos de arte, abrimos possibilidades ao infinito sobre o que pode ser utilizado em práticas artísticas, colaborando para a riqueza de possibilidades em propostas arteterapêuticas com materiais de fácil acesso e manejo. Esta percepção se faz interessante principalmente em tempos de atendimento online ao qual precisamos estimular que o paciente leigo busque em sua própria casa possíveis materiais a serem utilizados em processos criativos dentro da sessão arteteapêutica. Desta forma, podemos estimulá-lo à luz de Pablo Picasso que introduzia diversos materiais “estranhos” em suas obras.  

A colagem como linguagem da arte também se faz um grande legado do Cubismo Sintético à Arteterapia, sendo uma das propostas mais exploradas nas práticas arteterapêuticas, em sua riqueza de possibilidades e aplicabilidades. Somos gratos à Georges Braque e Pablo Picasso que nos abriram as portas para ela.

Prática arteterapêutica: Cubismo Sintético


No Cubismo Sintético, os elementos abstratos são ligados para formar um todo representacional do qual eles passam a ser indissolúveis. (GOLDING, 2000, p 59)

Podemos propor que o experienciador da Arteterapia passeie pelo seu ambiente (se for em um atendimento online, pela sua casa, o que faz com que estes materiais tragam ainda uma carga de memória afetiva) assim como Picasso passeava pelo seu ateliê em busca de “materiais estranhos”, que possam ser integrados na superfície de uma tela ou papel canson A3. Após encontrá-los, estimulamos que passe um tempo contemplando aquelas partes como formas abstratas que poderão ser integradas em um todo, seja ele figurativo ou abstrato. Para colaborar com a formação desta unidade, em um segundo momento, poderá utilizar material de desenho ou pintura como forma de integrá-los. Esta experiência pode ser bastante reveladora!


Referências Bibliográficas: 

GOMPERTZ, Will. Isso é arte? 150 anos de arte moderna do Impressionismo até hoje. Rio de Janeiro, Zahar, 2013.

GOLDING, John in STANGOS, Nikos (org). Conceitos da arte moderna, Jorge Zahar Ed, RJ, 2000.

MORAES, Eliana. Pensando a Arteterapia Vol 2. Semente Editorial, ES. 2019.

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Sobre a autora: Eliana Moraes


Arteterapeuta e Psicóloga.


Pós graduada em História da Arte
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Dá aula em cursos de formação em Arteterapia em SP e MS. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia. Nascida em Minas Gerais, coordena o Espaço Não Palavra no Rio de Janeiro.

Autora dos livros "Pensando a Arteterapia" Vol 1 e 2

Organizadora do livro "Escritos em Arteterapia - Coletivo Não Palavra"

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