Por
Eliana Moraes – MG
naopalavra@gmail.com
Este
texto é a continuidade da série iniciada há algumas semanas, com o intuito de
buscar articulações entre o movimento cubista e a Arteterapia. No primeiro
texto o enfoque se deu na fase do Cubismo Analítico (CLIQUE AQUI) e o texto de
hoje, refletiremos sobre o Cubismo Sintético.
Rememorando
a proposta desta série, não tenho
como pretensão esgotar a tamanha proporção do movimento cubista apenas em dois
textos, mas fazer uma leitura geral de sua marca na história e seus
simbolismos, e em especial abordar algumas possíveis articulações do movimento com
meu campo de estudo e atuação, a Arteterapia.
Cubismo
sintético (1912-1919):
Desde 1907 Georges Braque e Pablo Picasso firmaram
uma profunda amizade na vida e um “casamento” na arte. Debatiam, teorizavam, experimentavam,
criavam, gerando assim o Cubismo Analítico, e no decorrer da caminhada, em
torno de 1912, foram encontrando novas possibilidades:
Nas fases iniciais do cubismo, os
pintores começaram com uma imagem mais ou menos naturalista que depois era
fragmentada e analisada (e assim, numa certa medida resumida) à luz dos novos
conceitos de espaço e forma. Os processos foram agora invertidos: começando com
a abstração, os artistas trabalharam na direção da representação. Estava
consumada a transformação de um procedimento “analítico” em outro, “sintético”.
Sob muitos aspectos, a colagem
foi a conclusão lógica da estética cubista. (GOLDIND,
2000, 58)
Tudo começou quando Braque e Picasso passaram a
incorporar tiras de papel e outros fragmentos de materiais às suas pinturas e
desenhos. Braque foi o inventor do papier collé, uma forma particular
de colagem, em que tiras ou fragmentos de papel são aplicadas à superfície da
pintura ou desenho:
... como experimentos de escultura em papel... tinham o objetivo de encontrar um meio de se obter uma sensação de relevo sem recorrer às formas tradicionais de ilusionismo pictórico. Assim, um pedaço de papel recortado na forma de uma guitarra, fixado em sua base a um pedaço de papel de parede e inclinado para fora, destacar-se-á deste e evitará o uso de uma sombra pintada. (GOLDING, 2000, 56)
Através
do papier collé os artistas
encontraram a solução para a reintrodução da cor na pintura cubista. Enquanto
manipulavam tiras de papel colorido e outros elementos de colagem, eles
conceberam um procedimento totalmente novo. E em decorrência destas
experimentações, Picasso foi mais além, tornando-se o artista considerado:
... o descobridor da colagem, a
qual pode ser descrita como a incorporação de qualquer material estranho à
superfície do quadro... Picasso delicia-se em usá-los de maneira paradoxal,
convertendo uma substância em outra e extraindo significados inesperados da
combinação de outras de um modo original. Picasso converte um pedaço de papel
de parede florido numa toalha de mesa, e um fragmento de jornal num violino.
(GOLDING, 2000, 54-55)
De fato, Braque e Picasso provocaram uma grande
revolução nas categorias de arte e nos materiais considerados materiais de
arte:
Esses dois
grandes pioneiros da arte haviam mais uma vez triunfado: tinham inventado
a colagem...
Parecia tão óbvio, tão fácil; tão
infantil. Mas antes de Braque e Picasso ninguém, absolutamente ninguém, tinha
pensado nisso como uma forma de arte. Sim, as pessoas já tinham feito recortes
e os prendido em alguma outra coisa – coleções de lembranças num livro de
recortes por exemplo. Os antigos chegavam até a decorar suas pinturas com
joias, e Degas enrolou um pedaço de musselina e seda no corpo de sua escultura
Bailarina de 14 anos (1880-81). Mas a
ideia de que materiais corriqueiros e ordinários podiam ser usados no altar
sagrado do cavalete do artista era totalmente nova. (GOMPERTZ,
152)
Podemos compreender que os caminhos de experimentação
de Braque e Picasso estavam inseridos em uma busca da Arte Moderna rumo à
reaproximação entre a arte e a vida, iniciada com os impressionistas:
Em 1912 as pessoas já tinham se
acostumado a ver artistas representando a vida cotidiana: temas do mundo real
convertidos em arte através de pincelada e tinta. Não estavam, contudo,
acostumadas a ver artistas apropriando-se de elementos reais da vida
cotidiana e incorporando-os a suas pinturas: uma ação que reescrevia
totalmente o livro de regras sobre a relação da arte com a vida... (GOMPERTZ,
151-152)
Fragmentos de jornais, maços de
cigarro, papéis de parede e tecidos estão relacionados com a nossa vida
cotidiana; identificamo-los sem esforço e... formam parte de nossa experiência
no mundo material que nos cerca... (GOLDING, 2000, p
54)
O papel de parede de Braque e o oleado
de Picasso podiam ser materiais vulgares sem valor, mas em termos da história
da arte foram como bananas de dinamite... Eles não estavam copiando a vida real:
estavam se apropriando dela. (GOMPERTZ, 151-152)
"Natureza morta com cadeira de palha" Picasso
Os cubistas como “antenas
da raça”
É, de fato, essencial que possamos contextualizar as
experimentações do cubismo sintético e simbolismos em seu momento histórico.
Estamos falando das vésperas da Primeira Guerra Mundial, um período em que os
potenciais de “estranheza” e “horror” humano vieram a tona em seu máximo grau
de destruição. Picasso, intuitivamente, dava forma a esta estranheza em suas
obras:
... Se um pedaço de jornal pode
converter-se numa garrafa, isso também nos dá algo para pensar a respeito de
jornais e garrafas. Este objeto deslocado ingressou num universo para o qual
não foi feito e onde, em certa medida, conserva sua estranheza. E foi
justamente sobre essa estranheza que quisemos fazer com que as pessoas
pensassem, pois tínhamos perfeita consciência de que o nosso mundo estava
ficando muito estranho e não exatamente tranquilizador. (PICASSO
in GOLDING, 2000, 55)
Neste
sentido, faz-se bastante simbólico compreendermos que este foi o contexto em
que a colagem efetivamente adentrou às categorias da arte e se inscreveu na
história da arte ocidental: em meio à destruição e às inúmeras fragmentações
literais e simbólicas de uma grande guerra. O que restaria ao ser humano como
caminho possível e necessário senão o recompor e o colar? Este foi um processo
criativo também bastante explorado pelos dadaístas, contemporâneos dos cubistas,
ao qual podemos fazer uma leitura interpretativa:
Vejo aqui um simbolismo muito
interessante a ser pensado, pois a partir do processo criativo da colagem, que
tanto ganhou força nesse período... Os artistas intuitivamente começavam,
através da arte, a gerar movimentos que
reverberariam no coletivo. Buscando algum possível, os artistas através da
colagem fracionavam, selecionavam elementos fragmentados, rejuntavam,
recompunham, reinventavam, ressignificavam. Processo que instiga a resiliência,
individual e coletiva, movimentos que seres humanos abalados pelas destruições
das guerras, mais do que nunca necessitavam acessar. (MORAES,
2019, 144)
Legados para a Arteterapia
Podemos
concluir que a abertura para que todo e qualquer material seja considerado
material de arte é um dos grandes legados que o Cubismo Sintético pôde deixar
para a Arteterapia. Ao ampliarmos o
olhar para além dos materiais tradicionais e técnicos de arte, abrimos possibilidades
ao infinito sobre o que pode ser utilizado em práticas artísticas, colaborando
para a riqueza de possibilidades em propostas arteterapêuticas com materiais de
fácil acesso e manejo. Esta percepção se faz interessante principalmente em
tempos de atendimento online ao qual
precisamos estimular que o paciente leigo busque em sua própria casa possíveis
materiais a serem utilizados em processos criativos dentro da sessão
arteteapêutica. Desta forma, podemos estimulá-lo à luz de Pablo Picasso que
introduzia diversos materiais “estranhos” em suas obras.
A
colagem como linguagem da arte também se faz um grande legado do Cubismo
Sintético à Arteterapia, sendo uma das propostas mais exploradas nas práticas
arteterapêuticas, em sua riqueza de possibilidades e aplicabilidades. Somos
gratos à Georges Braque e Pablo Picasso que nos abriram as portas para ela.
Prática arteterapêutica: Cubismo
Sintético
No Cubismo Sintético, os
elementos abstratos são ligados para formar um todo representacional do
qual eles passam a ser indissolúveis. (GOLDING, 2000, p 59)
Podemos
propor que o experienciador da Arteterapia passeie pelo seu ambiente (se for em
um atendimento online, pela sua casa,
o que faz com que estes materiais tragam ainda uma carga de memória afetiva)
assim como Picasso passeava pelo seu ateliê em busca de “materiais estranhos”,
que possam ser integrados na superfície de uma tela ou papel canson A3. Após
encontrá-los, estimulamos que passe um tempo contemplando aquelas partes como
formas abstratas que poderão ser integradas em um todo, seja ele figurativo ou
abstrato. Para colaborar com a formação desta unidade, em um segundo momento,
poderá utilizar material de desenho ou pintura como forma de integrá-los. Esta
experiência pode ser bastante reveladora!
Referências
Bibliográficas:
GOMPERTZ, Will. Isso é arte? 150 anos de arte moderna do Impressionismo
até hoje. Rio de Janeiro, Zahar, 2013.
GOLDING,
John in STANGOS, Nikos (org).
Conceitos da arte moderna, Jorge Zahar Ed, RJ, 2000.
MORAES, Eliana. Pensando a Arteterapia Vol 2. Semente Editorial, ES.
2019.
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Sobre a autora: Eliana Moraes
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