Por Isabel Cristina Carvalho Pires (RJ)
bel.antigin@gmail.com
“O significado é um tijolo na parede dos
sentidos.” (Vygotsky)
Em textos anteriores aqui do blog, escrevi sobre
a abordagem de Lev Vygotsky, psicólogo russo do início do século XX.
Recentemente, descobri uma profissional que trabalha com essa abordagem em sua
clínica psicoterápica e arteterapêutica. Lara Scalise, pedagoga, psicóloga e
arteterapeuta de Mato Grosso do Sul estuda a obra de Vygotsky com o grupo de
pesquisa de Fernando Gonzalez-Rey, que criou a Teoria da Subjetividade a partir
da leitura dos textos de Lev Vygotsky. Além disso, Lara é coordenadora de um curso
de formação de Arteterapia de Mato Grosso do Sul, na Faculdade Insted.
Em conversas longas sobre o tema, Lara Scalise e
eu decidimos fazer uma live no Instagram sobre a abordagem desse gênio
nascido na Bielorrússia em 1896. Sugeri que Lara não apenas falasse da
abordagem vygotskyana, mas que também fizesse uma curta demonstração com alguma
rápida atividade arteterapêutica. Achando que seria insuficiente essa
“amostra”, Lara sugeriu oferecer uma vivência online e gratuita pelo Zoom, uma
semana após a nossa live. Ajudei na
administração dos contatos com os interessados, e essa experiência incrível
aconteceu no dia 23 de novembro de 2020, com a presença de praticamente cem por
cento dos inscritos.
Após se apresentar, Lara esclareceu que faria um
breve apanhado dos princípios de Vygotsky antes e ao longo da vivência e, para
a minha grata surpresa, buscaria, também, correlacionar alguns pontos da
abordagem vygotskyana com conceitos da teoria de Jung – um presente de Lara
para mim, já que eu havia comentado com ela que queria fazer, em minha próxima
monografia, a correlação entre esses dois gênios da psicologia, os quais amo de
paixão.
Jung, nascido na Suíça em 1875, criou a
Psicologia Analítica, muito divulgada no Brasil entre os arteterapeutas do
país. Acho que Jung e Vygotsky nunca se encontraram, embora fossem
contemporâneos. Enquanto o psicólogo bielorusso se formava em Direito na então
União Soviética, no ano mesmo da revolução bolchevique no país (1917), Jung já
havia trabalhado com Freud e dele se afastado nessa época, voltando-se para a
sua Psicologia Complexa. O trabalho de Vygotsky permaneceu fechado na Rússia
ditatorial de Stalin, enquanto o de Jung se espalhou pelo mundo. Mas agora a
obra desses dois gênios da psicologia pode realmente ser compreendida e obter a
relevância merecida.
Lara começa sua vivência lembrando-nos que tanto
Vygotsky quanto Jung trabalharam com processos criativos e abordaram o
desenvolvimento do sujeito a partir desses processos. Ambos, também, defendem a
importância da experiência, que conduz o sujeito à evolução psíquica. Mas,
enquanto Vygotsky aborda o processo de transformação para a singularidade, Jung
trata de um autoconhecimento que busca a totalidade. Só que, na verdade, ambos
estão falando de unir as contradições (no caso de Vygotsky) e os polos opostos
(no caso de Jung). Apesar de terem valores heurísticos diversos, os dois
ocupam-se desse processo de desenvolvimento do ser humano. Por isso, suas
teorias podem nos ajudar muito no nosso trabalho arteterapêutico.
Para que pudéssemos vivenciar, na prática, o
valor da experiência, Lara nos propôs, como primeira atividade, escrever num
papel, durante um minuto, todos os usos possíveis para um tijolo. Depois, os
participantes comentaram suas respostas, que foram as mais variadas e algumas
incomuns, como objeto de agressão ou prendedor de porta. Algumas pessoas
trouxeram lembranças antigas, às vezes da infância, do uso do tijolo. O fato de
trocarmos diferentes visões de um mesmo objeto ampliou nossas perspectivas; o
sentido dado ao tijolo foi diferente para cada pessoa de acordo com a
experiência de vida de cada um. Embora o signo – tijolo – fosse comum a todos
(porque os signos são socialmente desenvolvidos), os sentidos vêm da
singularidade do indivíduo. A partir da experiência pessoal daquilo que vem de
uma construção social (a herança histórico-cultural, em Vygotsky, ou o
inconsciente coletivo, segundo Jung), cada sujeito lhe dá um sentido próprio,
pessoal, singular. Nesse momento, Lara nos coloca que, se ela voltasse a solicitar
a feitura da mesma atividade, nossas respostas já seriam diferentes, pois
incorporariam os usos mencionados por nossos colegas de grupo, o que representa
uma ampliação de consciência, ocasionada pelo experimentar e pelo compartilhar
na coletividade, que conduzem a um desenvolvimento criativo. É dessa forma que
a aprendizagem leva ao desenvolvimento.
Um outro ponto de semelhança entre Jung e
Vygotsky que Lara Scalise nos traz é o
inconsciente. Para Vygotsky, o que está no inconsciente é aquilo que não tem
sentido para o sujeito, aquilo que está dentro dele mas ele não reconhece. Além
disso, é o que se manifesta nas ações do sujeito quando ele está em desconexão
com o seu agir, quando tem dificuldades de lidar com os conflitos, entre outras
coisas. E, para Jung, o inconsciente também é responsável pelo que chamamos de
“destino”, controlando muitas de nossas ações por falta de consciência de
alguns aspectos internos nossos na psique.
O segundo exercício proposto por Lara foi a
tarefa de desenhar um animal muito peculiar, seguindo instruções precisas que
ela nos ofereceu (como orelhas de elefante, corpo de cachorro peludo, asas
pequenas de morcego, etc). Quando acabamos a atividade, comparamos nossos
desenhos uns com os outros e vimos que, embora com as mesmas instruções, bem
precisas, cada trabalho ficou bem diferente um do outro. O que é uma cabeça de
cavalo grande para um é diferente do que é uma cabeça de cavalo para o outro,
de acordo com a singularidade de cada um. Analogamente, para se chegar à casa
de alguém, cada pessoa sairá de um ponto diferente da cidade e terá que
percorrer caminhos diversos. É o mesmo no caminho de desenvolvimento psíquico
do sujeito, tanto para Vygotsky em seu processo de singularização, quanto para
Jung e seu processo de individuação.
Em seguida, fizemos uma vivência para
experienciarmos os conceitos abordados até então. Assim, primeiro, Lara nos
solicitou que pegássemos uma folha de sulfite e um lápis grafite e listássemos,
no papel, todas as dificuldades que temos em nossas vidas no momento (etapa:
“encontrando dificuldades”). Depois, pediu-nos que escolhêssemos uma dessas
dificuldades e nos concentrássemos nela. Em seguida, deveríamos pegar outra
folha sulfite e pintá-la totalmente com o lápis, como se colocássemos a
dificuldade selecionada dentro da sombra (conceito de Jung, para aquilo que em
nós não enxergamos sobre nós mesmos). Ao mesmo tempo em que cobríamos a folha
com o grafite, deveríamos pensar nesse problema, como ele nos afeta, como nos
cria novas dificuldades. Depois disso, tivemos que relacionar vários fatores
que levavam a essa dificuldade, os motivos desse problema existir. Após isso,
foi preciso escolher um dos fatos, o mais significativo, aquele que provocava
mais sentido para a existência dessa dificuldade. Então, Lara nos explicou que,
para Vygotsky, o que fica inconsciente, como já foi falado, é aquilo a que não
demos sentido (a mancha preta, a folha preta). Assim, é necessário trazer à
consciência novos sentidos, pelo processo criativo e pela ampliação da possibilidade
de resolução de problemas. Para Jung, essa mancha escura é a sombra, cujos
conteúdos precisam, ao longo da vida, ser levados à consciência e nela ser
integrados. Por isso, na etapa seguinte da vivência, Lara nos solicitou que, na
folha pintada de grafite, fizéssemos, com a borracha, um desenho, trazendo luz
a esse espaço escuro. A borracha abre caminhos, possibilidades de ideias,
percursos diversos. Por isso, pode-se fazer esta atividade com o uso de
borrachas de tamanhos e formas variadas, configurando, no desenho, formas
diferentes de lidar com a sombra e de criar novos sentidos. Por isso, ao mesmo
tempo em que abríamos caminho na sombra com a borracha, deveríamos pensar em
possibilidades para lidar com o nosso problema.
Na etapa seguinte, “encontrando ideias”, Lara
solicitou que pensássemos e escrevêssemos o maior número de ideias para a
solução desta dificuldade, sem racionalizar neste momento. Em seguida,
deveríamos tentar identificar as melhores possibilidades e alternativas, dentre
as que foram listadas espontaneamente. Este passo, segundo a teoria de
Vygotsky, possibilita-nos buscar novas configurações de sentido. Nossa
personalidade, explica Lara, “nada mais é do que uma configuração de
configurações de sentidos”. Quando as crenças não foram adequadas ou as
experiências não foram vividas adequadamente, geram-nos conflitos. Mas, quando
essas crenças são confrontadas a partir de novas ideias e quando novos sentidos
subjetivos podem ser percebidos pelo sujeito, as configurações atuais são
modificadas. Assim, configurações inadequadas que, antes, geravam danos são,
agora, transformadas por situações possíveis de resolução de problemas, a
partir de novas crenças. Na psicoterapia vygotskyana, isso se chama “tensionar
para a reflexão”. O psicoterapeuta, através do diálogo, tensiona o sujeito para
que, a partir dessa tensão, esse sujeito possa enxergar o que lhe gera danos,
causados por sentidos subjetivos inadequados, e para que crie novas
possibilidades e vislumbre formas de sentidos subjetivos mais adequados e,
consequentemente, possa mudar sua configuração subjetiva. Da mesma maneira,
para Jung, no momento em que o indivíduo começa a olhar a sua sombra, a partir
da reflexão, e, tirando as máscaras da persona, pode integrar aspectos antes
reprimidos pelo ego, há uma ampliação de consciência, e o ego pode se
estruturar saudavelmente. Nem para Jung nem para Vygotsky, o inconsciente deve
ficar isolado da consciência, pois os dois têm que ser integrados.
No último passo da vivência, Lara nos pede para
buscarmos soluções, através do desenho, trazendo as questões para a consciência
através da materialidade. Pegamos um lápis e, na mesma folha, começamos a
desenhar livremente, considerando a proposta de pensar soluções e organizá-las
para a solução do problema. Para isso, foi preciso imaginar possíveis fontes de
ajuda e formular um plano de ação detalhado sobre o problema inicial. Nesta
etapa, o movimento cinestésico criativo de desenhar cria sensações e conduz a
novas percepções a respeito da sombra. Do sensorial e do perceptivo, passamos
para o campo afetivo e, por fim, para o cognitivo, no momento em que tivemos
que pensar estrategicamente sobre a questão. Daí, passamos para o nível
simbólico, onde se criou sentido para aquilo que, antes, era um movimento simplesmente
amórfico, cinestésico, só do corpo, só do sentimento. A partir daí, um continuum expressivo para o problema foi
criado.
Ao final, Lara coloca que a
vivência buscou, através do processo criativo, mostrar aspectos teóricos de
Vygotsky e Jung e as conexões entre as vertentes psicológicas deles. Os
participantes elogiaram muito e descreveram suas experiências pessoais nas
atividades propostas. Houve relatos de pessoas que encontraram a solução
efetiva para o seu problema, ao final do processo. Então, Lara explica que as
várias fases da vivência permitem que essa solução vá tomando forma, aos
poucos, o que nos mostra que, na vida, também é preciso viver as etapas, sem a
precipitação de querer pular alguma(s) dela(s). Viver o processo, etapa por etapa, torna-nos serem ativos, ao invés de reativos às
situações que nos são apresentadas na vida, pois, assim nos apropriamos de nossas experiências, ao
lhes darmos sentido.
* Para assistir a live (teórica) de Isabel e Lara acesse pelo instagram @isabelpires.artepsi
* Se você se interessa em fazer o curso de formação em Arteterapia no estado de Mato Grosso do Sul, a qual Lara é coordenadora, acesse o site CLIQUE AQUI
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Sobre a autora: Isabel Cristina Carvalho Pires (RJ)
Isabel Cristina Carvalho Pires é jornalista,
professora de línguas, psicóloga e arteterapeuta. Possui formação em
Antiginástica ® Thérèse Bertherat, pós-graduação em Língua Portuguesa e Língua
Inglesa e cursa a Pós-Graduação em Psicologia Junguiana na Universidade Estácio
de Sá, sob a coordenação de Walter Boechat. Atende jovens e adultos presencialmente
e online, em sessões individuais ou em grupos, e mora no Rio de Janeiro. Adora
gatos.