Por Eliana Moraes (MG) RJ
naopalavra@gmail.com
Há algumas semanas iniciei uma série de dois textos pelos quais sigo compartilhando fragmentos da minha pesquisa sobre as aplicabilidades da História da Arte na Arteterapia. Nestes textos em específico, trago algumas contribuições da Arte Moderna à Arteterapia para seu surgimento e prática. Para resgatar o início desta série CLIQUE AQUI
No texto de hoje nos aprofundaremos em quebras de paradigmas tradicionais quanto aos materiais e categorias de arte além da concepção da figura do artista. Quebras estas que abriram portas para a maneira que compreendemos e atuamos na Arteterapia em nossos dias.
f) Sobre os materiais
Até meados do século XIX, na arte tradicional, havia um rigoroso cânone do que era considerado arte tanto em temáticas quanto em materiais e técnicas. Pintura, desenho e escultura com seus devidos materiais, tinta a óleo, carvão e mármore, são alguns exemplos.
Até que no início do século XX, dois artistas revolucionários se atreveram a inserir alguns materiais ordinários à superfície de suas telas. Georges Braque experimentou adicionar fragmentos de papéis de parede ou jornal inventando a técnica do papier collé. Seu amigo Pablo Picasso ampliou este processo, caminhando por seu ateliê e buscando outros materiais possíveis a serem utilizados. Assim, através da adição de materiais “estranhos” à superfície do quadro, Picasso é considerado:
... o descobridor da colagem, a qual pode ser descrita como a incorporação de qualquer material estranho à superfície do quadro... Fragmentos de jornais, maços de cigarro, papéis de parede e tecidos estão relacionados com a nossa vida cotidiana; identificamo-los sem esforço e... formam parte de nossa experiência no mundo material que nos cerca... (GOLDING, 2000, p 54)
A abertura para a percepção de que todo e qualquer material pode ser considerado material de arte é um dos grandes legados de Picasso à Arte Moderna e consequentemente à Arteterapia. Ao ampliarmos o olhar para além dos materiais tradicionais (e técnicos) de arte, abrimos possibilidades ao infinito sobre o que pode ser utilizado em práticas artísticas, colaborando para a riqueza de possibilidades em propostas arteterapêuticas com materiais de fácil acesso e manejo.
Outro artista deste período ao qual bebemos da fonte é Marcel Duchamp que propunha a descentralização do meio (o material e a técnica) para a priorização da ideia:
Duchamp argumentava que até aquele momento o meio – a
tela, mármore, madeira ou pedra – havia ditado o modo como o artista iria ou
poderia abordar a feitura de uma obra. O meio sempre vinha primeiro, e só
depois era permitido ao artista projetar suas ideias sobre ele com pintura,
escultura ou desenho. Duchamp queria inverter isso. Considerava o meio
secundário, o primordial era a ideia. Só depois de ter escolhido e
desenvolvido um conceito o artista estava em condições de escolher um meio, e o
meio deveria ser aquele que permitisse expressar a ideia da maneira mais
bem-sucedida. E se isso significasse usar um mictório de porcelana, que
fosse. Em essência, arte podia ser qualquer coisa desde que o artista dissesse
que sim. (GOMPERTZ, 2013, 24)
Em Arteterapia, os conteúdos a serem expressados, sejam eles a ideia ou os sentimentos, é o que orienta a escolha do material a ser utilizado - podendo ser qualquer material. Esta inversão de olhar, abre espaço inclusive para algo que é específico da teoria da Arteterapia: o estudo das linguagens dos materiais, pois através deste conhecimento o arteterapeuta oferecerá ao experienciador os materiais pertinentes que irão colaborar para sua melhor expressão.
g) O rompimento com as categorias tradicionais de arte
Em decorrência destas quebras de paradigmas quanto aos materiais, naturalmente entrou em xeque a rigidez quanto às categorias tradicionais de arte. A quebra de uma visão enrijecida destas categorias é mais um legado da Arte Moderna. Conforme já mencionado, uma contribuição riquíssima para a arte vindoura e para a Arteterapia é a inserção da colagem como nova categoria de arte. Braque e Picasso, grandes artistas fundadores do movimento cubista revolucionaram as artes visuais do século XX em diante:
Esses dois grandes pioneiros da arte haviam mais uma
vez triunfado: tinham inventado a colagem...
Parecia tão óbvio, tão fácil; tão infantil. Mas antes
de Braque e Picasso ninguém, absolutamente ninguém, tinha pensado nisso como
uma forma de arte. Sim, as pessoas já tinham feito recortes e os prendido em
alguma outra coisa – coleções de lembranças num livro de recortes por exemplo.
Os antigos chegavam até a decorar suas pinturas com joias, e Degas enrolou um
pedaço de musselina e seda no corpo de sua escultura Bailarina de 14 anos
(1880-81). Mas a ideia de que materiais corriqueiros e ordinários podiam ser
usados no altar sagrado do cavalete do artista era totalmente nova. (GOMPERTZ,
152)
Como podemos observar, a colagem nasceu com o que hoje chamamos de técnica mista, inserindo materiais ordinários nas telas de pintura ou desenho. Com seus desdobramentos, ganhou protagonismo em outras experimentações como por exemplo nas colagens dadaístas.
Neste contexto, vale observar também outra novidade, a possibilidade de se experimentar a interseção das categorias de arte, como por exemplo vimos no cubismo: uma pintura, que utilizou a colagem com o objetivo de acessar o tridimensional, a escultura.
Em Arteterapia nos apropriamos desta liberdade no ato de criar, deixando com que nossa intuição e criatividade sejam os norteadores dos processos criativos e acessando os materiais e as categorias de arte sem uma preocupação com o rigor técnico e delimitador do que chamamos de arte e suas categorias.
h) A concepção do artista
Mas talvez, uma das maiores contribuições
da Arte Moderna para nós arteterapeutas seja a quebra de paradigma quanto a
figura do artista estimulada por Marcel Duchamp e o movimento dadaísta:
Havia uma outra opinião muito disseminada que Duchamp
queria desmascarar como falsa: a de que artistas são de certo modo uma forma
mais elevada de vida humana. Que merecem o status elevado que a sociedade lhes
confere por supostamente possuírem inteligência, perspicácia [técnica] e
sabedoria excepcionais. Duchamp considerava isso um disparate...
É Duchamp que devemos culpar por todo o debate ‘isso é
arte?’... A seu ver, o papel do artista na sociedade era semelhante ao de um
filósofo; não importava sequer se ele sabia pintar ou desenhar. (GOMPERTZ,
2013, p24-27)
... As verdadeiras obras de arte modernas não são feitas por artistas, mas, muito simplesmente por homens. A não-superioridade do artista como criador era uma das preocupações fundamentais do Dadá... Poesia e pintura podem ser produzidas por qualquer um... (ADES, 2000, p 105)
Em Arteterapia bebemos desta fonte que defende que não é necessário conhecimento técnico prévio para se expressar através das linguagens da arte e que artistas somos todos os que têm algo a dizer e através dela, expressar-se.
Da Arte Moderna para a Arteterapia:
Através destes dois textos pude compartilhar o que até aqui observei como contribuições da Arte Moderna para a Arteterapia como saber, prática e profissão. Como uma pesquisa continuada, ela continua em aberto e passível de acréscimos ou retificações ao longo da jornada.
Por hora, meu desejo é que este compartilhamento possa colaborar para a percepção do arteterapeuta quanto à importância de se estudar as teorias da arte bem como nossos fundamentos históricos para que assim se embase e se empodere para suas práticas.
Bibliografia:
ADES, Dawn. Dadá e Surrealismo in STANGOS,
Nikos (org) Conceitos da Arte Moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2000.
GOLDING, John Cubismo. in STANGOS, Nikos (org) Conceitos
de Arte Moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.
Muito boa sua caminhada através da História da Arte para um mergulho no universal humano. Gostei da frase: Todo artista é Filósofo. Acho que vai de mãos dadas com esta outra ideia: Todo Homem é Filósofo. Para tais percursos é só preciso sair da superfície, furar o senso-comum, Não é? Obrigada Eliana!
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