Laila Alves de Souza - Curitiba/Rio de Janeiro
lai_ajt@hotmail.com
“A criatividade é a capacidade de ser sensível a
tudo que nos cerca, a escolher em meio às centenas de possibilidades de
pensamento, sentimento, ação e reação, e a reunir tudo isso numa mensagem,
expressão ou reação inigualável que transmite ímpeto, paixão e determinação.”
Clarissa Pinkola Estés
Acredito
que todo o ser humano carrega uma capacidade que, na maioria das vezes, não tem
consciência ou não tem força para desenvolver tal capacidade. A capacidade de
criar. Ter uma vida criativa é pegar a rotina e o sentido de sobrevivência e
transformá-los em algo a mais, colocar alma, colocar sabor. Percebemos que a
criatividade pode aparecer em momentos oportunos e instantâneos, são aqueles
momentos pontuais que chamamos de inspiração. É como se a ideia viesse do nada
e iluminasse a consciência. A sensação é tão gostosa que podemos afirmar que
entramos em contato com outras camadas, o que, na psicologia junguiana,
designamos de conexão do eixo ego-Self (arquétipo da totalidade).
Contudo, essa inspiração pode aparecer num lampejo e sumir logo em seguida, sem
que possamos alimentar todo o processo da criação. Desse modo, toda a potência
emergida e a sensação que se traz disso se perdem no nada e a pessoa volta para
o mesmo, ou pior, retorna para o empobrecimento de ideias e/ou para o
tédio.
A
vida criativa nos apresenta de forma cíclica. Por mais que sempre queiramos
estar na ativa e criando, ela, como qualquer condição da natureza e psíquica,
tem seus momentos de incubação e baixa. Respeitar isso é essencial para a saúde
psíquica. Vemos, hoje em dia, uma dificuldade na aceitação desses pontos
baixos. Como diz HILLMAN, no ego heroico há uma exaltação da atividade
(HILLMAN, 2013). Essa exaltação, ou melhor, forçar constantemente essa
atividade, nos cansa tanto que chegamos a largar a mão de todo o processo.
São
alguns desses aspectos que acabam por minar a nossa vida criativa, tornando-a
estéril. Clarissa Pinkola Estés, no livro Mulheres que correm com os lobos,
menciona, em um dos capítulos sobre a vida criativa, cinco fases da
criação. São fases que, além da
inspiração, nos ajudam a materializar as ideias e nos manter ativos no processo
de criar. A autora não desenvolve
profundamente cada fase, abordando outros pontos pertinentes, mas esse texto
vem com a tentativa de refletir sobre possíveis desdobramentos que cada fase
pode ter.
São
essas as fases: a inspiração, a concentração, a organização, a implementação e
a manutenção.
Antes
de começar a descrever cada fase é importante citar Henri Matisse: “a
criatividade exige coragem”. Assim, de
acordo com essa citação, observamos que por mais que a inspiração para um
projeto possa surgir, como de uma intuição que vem do nada, o que promove o ato
de criatividade é toda a energia, tempo e confiança que é investido no ato de
criar. E é aí que começamos a nos defrontar com as dificuldades, e disso
começamos a acumular diversos projetos inacabados e ou até mesmo nem começamos
a planejá-lo. É um trabalho, uma opus alquímica, que exige toda uma
elaboração e demanda tempo, por isso concordo com que Matisse diz.
A
fase de inspiração é algo delicado de descrever. Como já foi dito acima, às
vezes, pode surgir de um lampejo proveniente de outras camadas, sem qualquer
conhecimento ou autorização da consciência. Porém, lembro de assistir uma
palestra em que o palestrante jogava a pergunta: “De onde nasce a ideia?” E
respondia: “Ora, como qualquer outro nascimento, de uma ideia mãe e uma ideia
pai.” Desse modo, podemos acessar muitas ideias que já passaram por nossas
mentes e juntar com outras novas e assim podemos desencadear inúmeras
possibilidades. Isso é criatividade! “A criatividade é a capacidade de
ser sensível a tudo que nos cerca, a escolher em meio às centenas de
possibilidades de pensamento, sentimento(...)” (ESTÉS, 1994, p. 395)
Uma
das dificuldades que é possível já na fase da inspiração é que as pessoas
possuem a crença de que elas não têm ideias boas. Inventamos qualquer tipo de
desculpa para confirmar que nós não somos criativos e que esse empreendimento
se restringe aos artistas. As nossas são ideias ridículas ou não tão boas. Para
essa questão recomendo a leitura do capítulo 10 do livro Mulheres que correm
com os lobos, em que a escritora discorre sobre as desculpas que nos damos.
Contudo,
a inspiração permanece num campo sem profundidade. Muitas pessoas abandonam
justamente nesse ponto. Elas se empolgam com suas ideias, mas não sabem o que
fazer com elas, ou seja, elas têm dificuldades de passar a ideia do mundo
invisível para o mundo físico. Para dar profundidade ao ato de criar, seguimos
para a próxima fase, a concentração. A ideia ou a intuição podem até vir com a
ajuda da fonte inconsciente, mas essa fase seguinte requer a capacidade
exclusiva da consciência do ego.
Na
concentração elementos práticos são essenciais. Tempo, espaço, energia são
pilares para essa fase. O tempo, por exemplo, é um forte aliado no processo de
criação. Diz ESTÉS: “É uma enorme crueldade regá-los (os projetos) apenas uma
vez por semana, uma vez por mês, ou menos uma vez por ano” (ESTÉS, 1994, p.
397). Para que possamos realizar nossa criatividade é preciso investir tempo,
como qualquer outra coisa que está sob os nossos cuidados. Além do que, para
fazer arte é necessário disciplina e para a disciplina ficar leve é necessário
fazer as coisas com arte, e toda essa dinâmica só dá certo com uma boa relação
com o tempo.
Encontrar
um lugar propício para desenvolver a criação é de suma importância. O espaço
favorece a concentração. Dessa forma, se o ambiente for promissor, é possível
empregar uma energia ativa no processo de criação. Tais questões parecem ser
óbvias, mas podemos perguntar: “Quantas pessoas que conhecemos (ou até nós
mesmos) que desistem de dar forma às suas ideias porque não levam a sério esses
três pilares?”
Antes
de passar para a próxima fase, em que parte para a ação, é essencial dar ênfase
a essa fase da concentração. Essa fase significa um preparo, um momento em que
se assenta, que respira, que se conecta para a próxima fase. Na nossa percepção
de “ego heroico” como Hillman designou, temos uma forte ânsia de colocar
rapidamente a ideia em prática para não deixar escapar, e na ansiedade
acabamos, muitas vezes, por queimar a largada. A energia que podia ser
conscientemente empreendida, sem a concentração, pode ser facilmente
desperdiçada. Esse momento de preparação é como uma iniciação ou um
aquecimento, no intuito de conectar com aquilo que está borbulhando no mundo
das ideias. Em qualquer atividade hindu ou budista, seja ela uma vivência ou
até uma palestra, a atividade é iniciada por um mantra. Uma das funções do
mantra é se conectar e fazer com que a pessoa se concentre para a etapa que
está por vir, ou seja, sair do mundo lá de fora e entrar para o mundo aqui de
dentro.
Seguindo
de fase, já preparado e aquecido, entramos efetivamente na ação. Aqui entra a
organização. A ideia, que ainda se encontra no mundo invisível, se encontra em
um formato fantasioso e absolutamente abstrata. É necessário a organização para
ela ir adentrando ao mundo físico e material. Como já mencionado anteriormente,
a sensação de ser inspirado é uma sensação gostosa e muitas vezes quando
chegamos à fase de organizar deparamos com um outro tipo de sensação. Muitas
pessoas acham chato organizar e por esse motivo largam o processo de criação
porque já não sentem o mesmo prazer da fase da inspiração. Outro ponto que surge é a consciência de que
a imagem que pertencia ao mundo da fantasia não será a mesma que se apresentará
na realidade, e é aqui que os perfeccionistas caem em uma armadilha muito
perigosa. A fantasia toma proporções que nos distraem na hora de agir.
A
organização é começar colocar na concretude, aquilo que na alquimia se refere
ao processo de coagulatio. Diz EDINGER:
“Em
termos essenciais, a coagulatio é o processo que transforma as coisas em
terra. ‘Terra’ é, por conseguinte, um dos sinônimos de coagulatio. Pesada
e permanente, a terra tem forma e posições fixas. (...) Sua forma e localização
são fixas; assim, para um conteúdo psíquico, tornar-se terra significa
concretizar-se numa forma localizada particular (...).” (EDINGER, 2006, p. 101)
Para
se efetivar uma opus alquímica tem que existir a parte “densa” dessa
operação. Na prática consiste em colocar no papel, dar voz, procurar contatos,
fazer o balanço financeiro, administrar o tempo e metas. Estes são modos de
coagular e, por isso, é a parte do processo que fica denso. Porém, nos tratados
alquímicos vemos alguns pontos que mantinham os alquimistas persistindo em sua
Arte. Os alquimistas entregavam sua alma para o trabalho e esta, por sua vez,
era transformada pelo processo. Isso gerava ingredientes como alegria e êxtase.
Segue um trecho do tratado de Lambspring: “O tempo e o esforço devem ser
oferecidos com ‘alegria’ e não como sacrifício(...)” e “Por conseguinte, esteja
seguro do seu coração.” (LAMBSPRING apud FIERZ, 1997, p. 336- 337). São
esses ingredientes que podem nos segurar no momento denso da criação.
A
próxima fase é a de implementação. Se o processo não teve um adequado
investimento de energia na fase da organização, se torna muito difícil e pesado
ir para essa fase. É o momento da ação plena do processo. Talvez não seja tão
chata como a anterior, mas é a mais trabalhosa. É onde se focaliza a atenção e
a disciplina. É o pôr as mãos à obra. No entanto, alguns pontos têm que ser
levados em consideração. Existe uma ânsia de que nossa atenção e disciplina
tenha que se manter constante, mas não é o que ocorre muitas vezes. Existem,
por exemplo, os ciclos internos, externos, os imprevistos, o cansaço, etc... De
certa forma, aqui temos que despertar uma certa disciplina, como um chefe
interno, porém, temos que ter um chefe que também desenvolva paciência e
cuidado com nós próprios. Um chefe interno tirânico que cobra a atenção
constante, e que nos culpa de não termos energia naquele momento específico,
faz com que a nossa vontade de abandonar a criação seja maior. Um chefe
bondoso, por sua vez, que mantém o incentivo do fazer e respeita o ritmo
próprio, faz com que, pacientemente, nós consigamos seguir passo a passo, dia
após dia, no processo de criação. Em outro tratado alquímico citado por EDINGER
diz: “Todos os que buscamos seguir essa Arte não podemos atingir resultados
úteis senão com uma alma paciente, laboriosa e solícita, com uma coragem
perseverante e com uma dedicação contínua.” (EDINGER, 2006, p. 25).
A
coragem e a confiança são aspectos nossos que temos que acessar para colocarmos
as duas últimas fases em prática. Clarissa Pinkola Estés, no capítulo já
sugerido acima, debruça sobre esses aspectos. Muitos são os projetos que, for
falta de confiança, por medo ou por complexos negativos são deixados de lado.
Temos inúmeras justificativas, mas por trás delas estão estes complexos e medos
que nos paralisam.
Depois
de implementar, ainda temos que ter uma energia guardada para a manutenção. É
preciso cuidar do que foi gerido, senão todo esforço é em vão.
A
empreitada de criar não é tarefa fácil. Mas como citado anteriormente, os
alquimistas, em seus tratados, sempre transcreviam essa empreitada com muito
amor e cuidado, tanto que eles chamavam a obra de Arte (com A maiúsculo). A
vida criativa vale a pena e depois que se pega o jeito fica mais fácil de
realizar o processo, mas claro, respeitando os momentos de baixa do ciclo
criativo.
Existe
um ingrediente, no entanto, que parece manchar toda a nossa empolgação e
impulso de criar, que é o fracasso. Às vezes, o medo de fracassar é tão grande
que nem começamos nossos projetos para não vivenciá-lo. Diz ESTÉS: “Não é o
fracasso que nos detém, mas é a relutância em recomeçar que nos faz estagnar.”
(ESTÉS, 1994, p. 396). Para se ter uma
vida criativa, no entanto, é preciso suportar os muitos recomeços. Além do
mais, é através dos recomeços que podemos costurar uma vida mais criativa.
Sobre
o fracasso CAROTENUTO afirma: "Quando nos sentimos 'aniquilados' por um
fracasso, quer dizer que nos identificamos completamente com aquele empenho
determinado e prefixado, descuidando o fato de que a nossa existência é muito
mais rica do que os atos realizados ou realizáveis." (CAROTENUTO, 1994,
p.197)
O
medo e a dúvida sempre vão permear cada etapa do processo de criação. Nunca
teremos certeza se essa ideia ou projeto dará certo. Esse mesmo autor fala: “As
nossas histórias podemos construir, mas somente no início, e não poderemos
jamais saber como iremos terminar.” (CAROTENUTO, 1994, p. 130) Dessa forma,
criar uma obra, seja ela grande ou pequena, é um trabalho de fazer alma.
Coragem
e mãos à obra!
Caso você tenha se identificado com a proposta do “Não palavra abre as portas” e se sinta motivado a aceitar o nosso convite, escreva para naopalavra@gmail.com
Assim poderemos iniciar nosso contato para maiores esclarecimentos quanto à proposta, ao formato do texto e quem sabe para um amadurecimento da sua ideia.
A Equipe Não Palavra te aguarda!
Referências Bibliográficas:
CAROTENUTO, Aldo. Eros e
Pathos: amor e sofrimento. São Paulo: Paulus, 1994.
EDINGER, Edward. Anatomia
da Psique. SP: Cultrix, 2006.
ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres
que correm com os lobos. Rio de Janeiro, Rocco, 1994.
FIERZ, K. Heinrich. Psiquiatria
Junguiana. São Paulo: Paulus, 1997.
HILLMAN, J. O sonho e o
mundo das trevas. Petrópolis. RJ: Vozes, 2013
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Sobre a Autora: Laila Alves de Souza
Psicóloga
Pós- graduada em psicologia clínica na abordagem da Psicologia Analítica.
Atendimentos clínicos pela abordagem da Psicologia Analítica no Rio de Janeiro.
Atualmente compõe a Equipe Não Palavra na gestão dos projetos.