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segunda-feira, 5 de novembro de 2018

O PROCESSO DE CRIAÇÃO




Laila Alves de Souza - Curitiba/Rio de Janeiro
lai_ajt@hotmail.com

“A criatividade é a capacidade de ser sensível a tudo que nos cerca, a escolher em meio às centenas de possibilidades de pensamento, sentimento, ação e reação, e a reunir tudo isso numa mensagem, expressão ou reação inigualável que transmite ímpeto, paixão e determinação.
Clarissa Pinkola Estés

Acredito que todo o ser humano carrega uma capacidade que, na maioria das vezes, não tem consciência ou não tem força para desenvolver tal capacidade. A capacidade de criar. Ter uma vida criativa é pegar a rotina e o sentido de sobrevivência e transformá-los em algo a mais, colocar alma, colocar sabor. Percebemos que a criatividade pode aparecer em momentos oportunos e instantâneos, são aqueles momentos pontuais que chamamos de inspiração. É como se a ideia viesse do nada e iluminasse a consciência. A sensação é tão gostosa que podemos afirmar que entramos em contato com outras camadas, o que, na psicologia junguiana, designamos de conexão do eixo ego-Self (arquétipo da totalidade). Contudo, essa inspiração pode aparecer num lampejo e sumir logo em seguida, sem que possamos alimentar todo o processo da criação. Desse modo, toda a potência emergida e a sensação que se traz disso se perdem no nada e a pessoa volta para o mesmo, ou pior, retorna para o empobrecimento de ideias e/ou para o tédio.    
A vida criativa nos apresenta de forma cíclica. Por mais que sempre queiramos estar na ativa e criando, ela, como qualquer condição da natureza e psíquica, tem seus momentos de incubação e baixa. Respeitar isso é essencial para a saúde psíquica. Vemos, hoje em dia, uma dificuldade na aceitação desses pontos baixos. Como diz HILLMAN, no ego heroico há uma exaltação da atividade (HILLMAN, 2013). Essa exaltação, ou melhor, forçar constantemente essa atividade, nos cansa tanto que chegamos a largar a mão de todo o processo. 
São alguns desses aspectos que acabam por minar a nossa vida criativa, tornando-a estéril. Clarissa Pinkola Estés, no livro Mulheres que correm com os lobos, menciona, em um dos capítulos sobre a vida criativa, cinco fases da criação.  São fases que, além da inspiração, nos ajudam a materializar as ideias e nos manter ativos no processo de criar.  A autora não desenvolve profundamente cada fase, abordando outros pontos pertinentes, mas esse texto vem com a tentativa de refletir sobre possíveis desdobramentos que cada fase pode ter.
São essas as fases: a inspiração, a concentração, a organização, a implementação e a manutenção.
Antes de começar a descrever cada fase é importante citar Henri Matisse: “a criatividade exige coragem”.  Assim, de acordo com essa citação, observamos que por mais que a inspiração para um projeto possa surgir, como de uma intuição que vem do nada, o que promove o ato de criatividade é toda a energia, tempo e confiança que é investido no ato de criar. E é aí que começamos a nos defrontar com as dificuldades, e disso começamos a acumular diversos projetos inacabados e ou até mesmo nem começamos a planejá-lo. É um trabalho, uma opus alquímica, que exige toda uma elaboração e demanda tempo, por isso concordo com que Matisse diz.
A fase de inspiração é algo delicado de descrever. Como já foi dito acima, às vezes, pode surgir de um lampejo proveniente de outras camadas, sem qualquer conhecimento ou autorização da consciência. Porém, lembro de assistir uma palestra em que o palestrante jogava a pergunta: “De onde nasce a ideia?” E respondia: “Ora, como qualquer outro nascimento, de uma ideia mãe e uma ideia pai.” Desse modo, podemos acessar muitas ideias que já passaram por nossas mentes e juntar com outras novas e assim podemos desencadear inúmeras possibilidades. Isso é criatividade! A criatividade é a capacidade de ser sensível a tudo que nos cerca, a escolher em meio às centenas de possibilidades de pensamento, sentimento(...)” (ESTÉS, 1994, p. 395) 
Uma das dificuldades que é possível já na fase da inspiração é que as pessoas possuem a crença de que elas não têm ideias boas. Inventamos qualquer tipo de desculpa para confirmar que nós não somos criativos e que esse empreendimento se restringe aos artistas. As nossas são ideias ridículas ou não tão boas. Para essa questão recomendo a leitura do capítulo 10 do livro Mulheres que correm com os lobos, em que a escritora discorre sobre as desculpas que nos damos.
Contudo, a inspiração permanece num campo sem profundidade. Muitas pessoas abandonam justamente nesse ponto. Elas se empolgam com suas ideias, mas não sabem o que fazer com elas, ou seja, elas têm dificuldades de passar a ideia do mundo invisível para o mundo físico. Para dar profundidade ao ato de criar, seguimos para a próxima fase, a concentração. A ideia ou a intuição podem até vir com a ajuda da fonte inconsciente, mas essa fase seguinte requer a capacidade exclusiva da consciência do ego.
Na concentração elementos práticos são essenciais. Tempo, espaço, energia são pilares para essa fase. O tempo, por exemplo, é um forte aliado no processo de criação. Diz ESTÉS: “É uma enorme crueldade regá-los (os projetos) apenas uma vez por semana, uma vez por mês, ou menos uma vez por ano” (ESTÉS, 1994, p. 397). Para que possamos realizar nossa criatividade é preciso investir tempo, como qualquer outra coisa que está sob os nossos cuidados. Além do que, para fazer arte é necessário disciplina e para a disciplina ficar leve é necessário fazer as coisas com arte, e toda essa dinâmica só dá certo com uma boa relação com o tempo. 
Encontrar um lugar propício para desenvolver a criação é de suma importância. O espaço favorece a concentração. Dessa forma, se o ambiente for promissor, é possível empregar uma energia ativa no processo de criação. Tais questões parecem ser óbvias, mas podemos perguntar: “Quantas pessoas que conhecemos (ou até nós mesmos) que desistem de dar forma às suas ideias porque não levam a sério esses três pilares?” 
Antes de passar para a próxima fase, em que parte para a ação, é essencial dar ênfase a essa fase da concentração. Essa fase significa um preparo, um momento em que se assenta, que respira, que se conecta para a próxima fase. Na nossa percepção de “ego heroico” como Hillman designou, temos uma forte ânsia de colocar rapidamente a ideia em prática para não deixar escapar, e na ansiedade acabamos, muitas vezes, por queimar a largada. A energia que podia ser conscientemente empreendida, sem a concentração, pode ser facilmente desperdiçada. Esse momento de preparação é como uma iniciação ou um aquecimento, no intuito de conectar com aquilo que está borbulhando no mundo das ideias. Em qualquer atividade hindu ou budista, seja ela uma vivência ou até uma palestra, a atividade é iniciada por um mantra. Uma das funções do mantra é se conectar e fazer com que a pessoa se concentre para a etapa que está por vir, ou seja, sair do mundo lá de fora e entrar para o mundo aqui de dentro.       
Seguindo de fase, já preparado e aquecido, entramos efetivamente na ação. Aqui entra a organização. A ideia, que ainda se encontra no mundo invisível, se encontra em um formato fantasioso e absolutamente abstrata. É necessário a organização para ela ir adentrando ao mundo físico e material. Como já mencionado anteriormente, a sensação de ser inspirado é uma sensação gostosa e muitas vezes quando chegamos à fase de organizar deparamos com um outro tipo de sensação. Muitas pessoas acham chato organizar e por esse motivo largam o processo de criação porque já não sentem o mesmo prazer da fase da inspiração.  Outro ponto que surge é a consciência de que a imagem que pertencia ao mundo da fantasia não será a mesma que se apresentará na realidade, e é aqui que os perfeccionistas caem em uma armadilha muito perigosa. A fantasia toma proporções que nos distraem na hora de agir. 

A organização é começar colocar na concretude, aquilo que na alquimia se refere ao processo de coagulatio. Diz EDINGER:
 “Em termos essenciais, a coagulatio é o processo que transforma as coisas em terra. ‘Terra’ é, por conseguinte, um dos sinônimos de coagulatio. Pesada e permanente, a terra tem forma e posições fixas. (...) Sua forma e localização são fixas; assim, para um conteúdo psíquico, tornar-se terra significa concretizar-se numa forma localizada particular (...).” (EDINGER, 2006, p. 101)
Para se efetivar uma opus alquímica tem que existir a parte “densa” dessa operação. Na prática consiste em colocar no papel, dar voz, procurar contatos, fazer o balanço financeiro, administrar o tempo e metas. Estes são modos de coagular e, por isso, é a parte do processo que fica denso. Porém, nos tratados alquímicos vemos alguns pontos que mantinham os alquimistas persistindo em sua Arte. Os alquimistas entregavam sua alma para o trabalho e esta, por sua vez, era transformada pelo processo. Isso gerava ingredientes como alegria e êxtase. Segue um trecho do tratado de Lambspring: “O tempo e o esforço devem ser oferecidos com ‘alegria’ e não como sacrifício(...)” e “Por conseguinte, esteja seguro do seu coração.” (LAMBSPRING apud FIERZ, 1997, p. 336- 337). São esses ingredientes que podem nos segurar no momento denso da criação.
A próxima fase é a de implementação. Se o processo não teve um adequado investimento de energia na fase da organização, se torna muito difícil e pesado ir para essa fase. É o momento da ação plena do processo. Talvez não seja tão chata como a anterior, mas é a mais trabalhosa. É onde se focaliza a atenção e a disciplina. É o pôr as mãos à obra. No entanto, alguns pontos têm que ser levados em consideração. Existe uma ânsia de que nossa atenção e disciplina tenha que se manter constante, mas não é o que ocorre muitas vezes. Existem, por exemplo, os ciclos internos, externos, os imprevistos, o cansaço, etc... De certa forma, aqui temos que despertar uma certa disciplina, como um chefe interno, porém, temos que ter um chefe que também desenvolva paciência e cuidado com nós próprios. Um chefe interno tirânico que cobra a atenção constante, e que nos culpa de não termos energia naquele momento específico, faz com que a nossa vontade de abandonar a criação seja maior. Um chefe bondoso, por sua vez, que mantém o incentivo do fazer e respeita o ritmo próprio, faz com que, pacientemente, nós consigamos seguir passo a passo, dia após dia, no processo de criação. Em outro tratado alquímico citado por EDINGER diz: “Todos os que buscamos seguir essa Arte não podemos atingir resultados úteis senão com uma alma paciente, laboriosa e solícita, com uma coragem perseverante e com uma dedicação contínua.” (EDINGER, 2006, p. 25).
A coragem e a confiança são aspectos nossos que temos que acessar para colocarmos as duas últimas fases em prática. Clarissa Pinkola Estés, no capítulo já sugerido acima, debruça sobre esses aspectos. Muitos são os projetos que, for falta de confiança, por medo ou por complexos negativos são deixados de lado. Temos inúmeras justificativas, mas por trás delas estão estes complexos e medos que nos paralisam.
Depois de implementar, ainda temos que ter uma energia guardada para a manutenção. É preciso cuidar do que foi gerido, senão todo esforço é em vão.  
A empreitada de criar não é tarefa fácil. Mas como citado anteriormente, os alquimistas, em seus tratados, sempre transcreviam essa empreitada com muito amor e cuidado, tanto que eles chamavam a obra de Arte (com A maiúsculo). A vida criativa vale a pena e depois que se pega o jeito fica mais fácil de realizar o processo, mas claro, respeitando os momentos de baixa do ciclo criativo.
Existe um ingrediente, no entanto, que parece manchar toda a nossa empolgação e impulso de criar, que é o fracasso. Às vezes, o medo de fracassar é tão grande que nem começamos nossos projetos para não vivenciá-lo. Diz ESTÉS: “Não é o fracasso que nos detém, mas é a relutância em recomeçar que nos faz estagnar.” (ESTÉS, 1994, p. 396).  Para se ter uma vida criativa, no entanto, é preciso suportar os muitos recomeços. Além do mais, é através dos recomeços que podemos costurar uma vida mais criativa.
Sobre o fracasso CAROTENUTO afirma: "Quando nos sentimos 'aniquilados' por um fracasso, quer dizer que nos identificamos completamente com aquele empenho determinado e prefixado, descuidando o fato de que a nossa existência é muito mais rica do que os atos realizados ou realizáveis." (CAROTENUTO, 1994, p.197)
O medo e a dúvida sempre vão permear cada etapa do processo de criação. Nunca teremos certeza se essa ideia ou projeto dará certo. Esse mesmo autor fala: “As nossas histórias podemos construir, mas somente no início, e não poderemos jamais saber como iremos terminar.” (CAROTENUTO, 1994, p. 130) Dessa forma, criar uma obra, seja ela grande ou pequena, é um trabalho de fazer alma.
Coragem e mãos à obra!   
 Caso você tenha se identificado com a proposta do “Não palavra abre as portas” e se sinta motivado a aceitar o nosso convite, escreva para naopalavra@gmail.com
Assim poderemos iniciar nosso contato para maiores esclarecimentos quanto à proposta, ao formato do texto e quem sabe para um amadurecimento da sua ideia.

A Equipe Não Palavra te aguarda!

Referências Bibliográficas:

CAROTENUTO, Aldo. Eros e Pathos: amor e sofrimento. São Paulo: Paulus, 1994.
EDINGER, Edward. Anatomia da Psique. SP: Cultrix, 2006.
ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos. Rio de Janeiro, Rocco, 1994.
FIERZ, K. Heinrich. Psiquiatria Junguiana. São Paulo: Paulus, 1997.
HILLMAN, J. O sonho e o mundo das trevas. Petrópolis. RJ: Vozes, 2013 
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Sobre a Autora: Laila Alves de Souza
Psicóloga

Pós- graduada em psicologia clínica na abordagem da Psicologia Analítica.
Atendimentos clínicos pela abordagem da Psicologia Analítica no Rio de Janeiro.
Atualmente compõe a Equipe Não Palavra na gestão dos projetos.

Um comentário:

  1. O texto da Laila inspira e nos previne: não temer recomeçar! Coragem, sejamos criativos... o mundo será certamente melhor! Obrigada!

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