Por Isabel Pires - RJ
bel.antigin@gmail.com
No
trabalho do arteterapeuta, o conhecimento sobre arte e sobre os artistas é
fundamental para que se amplie o repertório de atividades e de técnicas a serem
usadas com o paciente.
No estudo da história da arte, o conceito de
arte nos diferentes movimentos artísticos ao longo do tempo, pode ser adaptado para
uma atividade dentro do setting arteterapêutico. Assim, por exemplo, a
arte conceitual, surgida nos anos 60 nos EUA, entendia que a atitude mental era
mais relevante na expressão artística do que a técnica e o resultado visual. A partir dessa concepção, podemos liberar um
paciente muito exigente de sua autocrítica negativa em relação às suas criações
artísticas e lembrá-lo da importância da mensagem da obra. Além disso, é
possível usar a própria forma de trabalho dos artistas como ideia para a
expressão artística de nossos pacientes, como o paint dripping de
Pollock, só para citar um exemplo. Também costumo usar a biografia dos artistas
quando o tema da sessão é a história de vida do paciente, para que crie uma
identificação positiva com algum momento da vida de determinado artista ou como
ilustração de algo que está sendo trabalhado na sessão.
No trabalho com as obras dos grandes artistas da História, uma técnica bastante utilizada e simples, mas não menos relevante, é o estímulo projetivo, associado a uma consigna que inclua outras materialidades, como, por exemplo, a escrita criativa e a releitura de obra com desenho, pintura ou colagem. Nesse caso, a obra transforma-se na materialização de algo que o paciente está vivendo ou sentindo, um canal de projeção de suas questões internas.
Hoje, trago a vida e obra da artista espanhola Remedios Varo. Segundo Catherine Garcia (2007), a vida de Varo pode ser dividida em dois grandes momentos: o primeiro, que vai do seu nascimento até 1941, período em que viveu na Espanha e enfrentou mudanças geográficas, políticas, familiares, amorosas e internas. Nesta etapa de sua vida, Remedios Varo envolveu-se menos na criação e mais na exploração, estudando e aprendendo técnicas de desenho e pintura e viajando por locais que a levaram para a criação posterior de um caminho próprio, original, tanto estético quanto ético. No segundo momento de sua vida, passado no México, entre 1941 até sua morte em 1963, Varo encontrou estabilidade artística, geográfica, financeira e afetiva. Nesta etapa, sua criação foi prolífera, e a artista encontrou seu estilo próprio, singular.
O texto de hoje faz parte de um seminário que
apresentei na aula de arte contemporânea da Universidade Paris Nanterre, onde
estou fazendo mestrado em História da Arte. Nele, abordarei a primeira fase da
vida de Remedios Varo e falarei de um de seus quadros, que costumo usar como
estímulo projetivo.
Remedios Varo foi uma artista surrealista,
contemporânea de Breton, que nasceu em 1908, em Anglés, província de Gerona, na
Espanha. Seus pais, Rodrigo Varo Cejalvo e Ignacia Uranga Bergareche,
chamaram-na de María de los Remedios Varo Urange. Seu pai, de origem andaluza,
era engenheiro hidráulico e liberal e deu à filha uma educação artística. De
fato, foi ele quem lhe apresentou a arte do desenho. Já a mãe, de origem basca,
deu uma educação religiosa a Remedios Varo e matriculou-a num internato de
meninas. Assim, sua infância e posteriormente seu trabalho será marcado pelo
dinamismo de seu pai, que lhe estimulou a imaginação, e pela espiritualidade de
sua mãe, o que conduzirá Remedios Varo em suas buscas místicas.
Por volta de 1917, os pais da artista mudam-se
para Madrid, onde ela experimenta, no colégio religioso, o peso da tradição e a
severidade da educação espanhola da época. Na capital espanhola, Remedios Varo
estudou na Escola de Artes e Ofícios de Madrid e, após dois anos, ingressou na
Academia de Belas Artes de San Fernando, também em Madrid, em 1924, onde
aprendeu uma cultura pictórica clássica e, ao mesmo tempo, entrou em contato
com o surrealismo. Assim, durante esses anos de aprendizado, Varo combina classicismo
e vanguarda. Reconhecendo a possibilidade de escapar à sua educação rígida,
Remedios Varo volta seu interesse para o projeto surrealista, onde havia a
esperança de existir de forma diferente através do poder do desejo e da
imaginação.
Em 1931, quando nasce a segunda república na
Espanha e uma reação da direita incita um clima de violência no país, Remedios
Varo vai para Paris, para beber da fonte dos surrealistas. Na Cidade Luz, ela
leva uma vida boêmia e, um ano depois, volta a Barcelona, onde estabelece
contato com os avant-gardes catalãos e passa a viver com Esteban
Francés, um jovem artista catalão.
Seus primeiros trabalhos de inspiração
surrealista surgem em 1935: desenhos, colagens e cadavres exquis. Nesta
época, acompanhada por Marcel Jean, Gerardo Lizarraga e Oscar Dominguez, Varo
se junta aos grupos mais inovadores da avant-garde Catalunha.
Em maio de 1936, Remedios Varo participa, com
algumas obras, de uma exposição organizada pela ADLAN (Amics de Les Arts Nous),
associação que se interessava pelas expressões espontâneas da criação humana,
pelas artes ditas primitivas, pelos desenhos das crianças e dos loucos e pelas
formas artísticas do movimento vanguardista.
Quando encontra o poeta surrealista Benjamin
Péret, recém-chegado a Barcelona, Varo fica fascinada por ele e por seus ideais
políticos trotskistas e poético-surrealistas. Assim, na primavera de 1937, Varo
e Péret partem juntos a Paris, para fugir dos horrores da guerra. É a época em
que a pintora aprende técnicas artísticas e teorias diversas, além de se nutrir
da influência de artistas como Chirico, Dali, Ernst, Tanguy, Magritte e outros,
mas, neste período, ainda não desenvolve seu estilo próprio.
Em 1937, a revista surrealista O Minotauro
publica a obra O Desejo, e Varo é mencionada em várias publicações
surrealistas importantes da época, tais como La Brèche, Surréalisme
Même, Dictionnaire Abrégé du Surréalisme. Mesmo assim, não é
reconhecida como membro oficial do grupo. No ano seguinte, encontra o pintor
romano Victor Brauner, que lhe apresenta à alquimia e à magia, temas que farão
parte de sua pintura.
Em 1939, por ser republicana e casada com um
trotskista, Varo é presa por muitos meses. Após sua libertação, parte para
Marseille em 1940 por causa da ocupação nazista em Paris. Assim, Varo e Péret
se instalam numa residência que Peggy Guggenheim disponibiliza para artistas e
intelectuais, local onde os surrealistas continuam a criar até 1942. É o
momento em que Varo fica imersa no círculo íntimo dos surrealistas, embora se
sinta apartada deles por sua imensa fascinação por esses artistas inovadores: “A
minha posição era a de um ouvinte tímido e humilde: não tinha idade nem força
para os enfrentar, nem a Paul Eluard, nem a Benjamin Péret, nem a André Breton;
fiquei boquiaberta perante este grupo de seres brilhantes e dotados” (GARCIA,
2007, p. 19). Quando Breton parte para os Estados Unidos, para fugir do
nazismo, Varo e Péret vão para o México, abrigados pelo governo de Cardenas,
que oferece refúgio aos espanhóis refugiados. A partir daí, Varo entra no
segundo momento de sua vida, que abordarei no próximo texto.
O véu azul desta Pandora moderna parece escapar
do baú e envolvê-la. Ou será o contrário? Será que a personagem de fora se
dissolve e, aos poucos, entra no baú? Nos quadros de Varo, muitas
interpretações são possíveis. Mas, de toda forma, parece que há uma busca pela
fusão das duas figuras femininas.
A leitura que se pode fazer aqui é a de que o
ser é prisioneiro de si mesmo, preso numa identidade que o restringe, que lhe
pesa ou que o sufoca. Por isso as cores frias, o espaço fechado, as paredes
opacas.
Segundo Carl Gustav Jung, psiquiatra suíço que
criou a Psicologia Analítica, o indivíduo se adapta ao meio social fazendo uso
de uma ou mais máscaras (persona, do latim). Assim, será que são essas
várias máscaras que estão guardadas nos baús expostos na estante ou serão as
partes do indivíduo que não são mostradas e que ficam escondidas por essas
máscaras?
Para Catherine Garcia (2007), o quadro Encuentro
é o reflexo de um ser dividido, fragmentado, incapaz de sair de si mesmo e de
suas contradições.
As possíveis interpretações desse quadro de
Remedios Varo nos indicam as situações em que é possível utilizá-lo como
estímulo projetivo para o paciente que estiver em um momento interno semelhante
ao da personagem da tela. A partir daí, pode-se pedir que escreva sobre o que
sente ao ver a obra ou para fazer uma releitura do quadro, com uma pintura ou
desenho dele, por exemplo.
Os quadros da artista Remedios Varo, influenciados
por sonhos e pela magia da alquimia, são excelentes fontes de estímulos para o setting
arteterapêutico. No próximo texto, trarei a segunda parte da biografia de Varo
e a análise de mais um de seus quadros surrealistas.
• Arteterapeuta
e psicóloga
• Mestranda
em História da Arte na Université Paris Nanterre
• Autora
do texto “Vygotsky e a arte”, no livro Escritos em Arteterapia: Coletivo Não
Palavra
• Autora
do artigo: “Havia uma menopausa no meio do caminho: a arteterapia na metanoia
da mulher de meia idade”, publicado na Revista da AATESP, V. 13, n. 02, 2022,
que foi tema de palestra homônima ministrada no 24o Congresso Português de
Arte-Terapia “Arte, Saúde e Educação”, em outubro de 2023.
• Nascida
no Rio de Janeiro, atualmente vive em Paris e realiza atendimentos clínicos
individuais online em Arteterapia e psicoterapia
Isabel, maravilhoso este relato sobre Varo! Concordo plenamente com sua posição sobre a necessidade do arteterapeuta ter conhecimento sobre os artistas, suas biografias, para além de suas obras , pois como seres humanos, também passaram por desafios e dificuldades que podem se assemelhar ao momento de vida de todos nós e servir claramente, como estímulo projetivo para expressão e ampliação no processo terapêutico. Tenho especial carinho pelas artistas que se exilaram no México e trouxeram consigo muitas contribuições e uma transformação qualitativa para o país! Que venham outros textos maravilhosos como este! Aliás, aguardando o próximo sobre a Varo! Saudades. Tânia Moreira
ResponderExcluirObrigada, Tânia querida! Saudades. Bjs
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