Por Eliana Moraes – MG
naopalavra@gmail.com
Um dos temas que mais me mobilizarou
ao longo de 2022 girou em torno das relações humanas. Este é um tema sempre
presente na minha escuta clínica, ao longo dos meus quinze anos de prática
profissional. Entretanto, acredito que nesse último ano, essa temática ganhou
novos contornos devido aos movimentos coletivos que atravessamos. Minhas observações
têm sido aquecidas por reportagens, entrevistas e podcasts que tenho pesquisado, e é possível observar um consenso de
que o fenômeno de um país divido transborda para a divisão de casais, famílias,
amigos e redes afetivas. Consequentemente, muitas das demandas terapêuticas da
atualidade envolvem as relações humanas.
Ao longo de todo o ano, estimulei que
os arteterapeutas da minha rede trabalhassem as relações humanas em suas
práticas, muito embasada pelas palavras de Beatriz Cardella:
Os sofrimentos humanos acontecem no entre,
nos encontros e desencontros vividos ou nos
encontros não acontecidos. A cura é também fenômeno do entre,
concebida em Gestalt Terapia como a restauração da abertura, do ritmo, do
fluxo, do diálogo, da criatividade, e dos laços que nos unem/diferenciam do
outro, processo de crescimento, atualização e realização da singularidade.
A relação terapêutica pode ser a experiência matriz da abertura...
(CARDELLA, 2020, p 103)
A cura em Gestalt Terapia, está intimamente
ligada com relação, com restauração ou constituição do Diálogo.
É o que chamamos de cura pelo Encontro...
O que cura na terapia é a relação em si, é o entre. É o “sou
amado, logo existo”. (CARDELLA, 2020, p 119)
Conforme já
compartilhado em texto anterior, no segundo semestre de 2022 elegi um livro
para estudo e produção de conteúdo teóricos e práticos juntamente com a minha
parceira, Vera de Freitas. Em “Ser Criativo: o poder da improvisação na vida e na arte”, Stephen
Nachmanovitch reflete sobre diversos aspectos que envolvem a criatividade
humana. E um de seus capítulos, denominado “A prática compartilhada”, muito me
embasou para pensar como a Arteterapia pode contribuir de forma salutar frente
ao fenômeno coletivo atual.
No dia vinte e um de outubro de 2022, Vera e eu realizamos uma oficina
no Instituto Venha Conosco – RJ, em duas turmas, que trazia para o campo
vivencial a reflexão sobre o indivíduo e o coletivo. Vera compartilhou um
registro desta experiência em texto anterior no blog (em 07/11/22) e no texto de hoje trago um fragmento de nosso
embasamento teórico e reflexões inspiradoras.
Contribuições da
Arteterapia: a prática compartilhada
Já no início do capítulo, o autor nos descreve
a beleza de dois músicos que se propõem a tocar juntos:
“A beleza de tocar junto com alguém é a
possibilidade de encontrar a unidade...
Toco com um parceiro; ouvimos um ao outro,
espelhamos um ao outro, estamos conectados com aquilo que ouvimos...
Um abre a mente do outro como uma série infinita de caixas chinesas. Uma misteriosa
comunicação flui de um para o outro com maior rapidez do que qualquer sinal que
pudéssemos passar através do olhar ou do som. A música não nasce de um ou de
outro, embora nossas idiossincrasias e nossos estilos, os sintomas de nossa
natureza original, continuem exercendo a sua influência. A música também não
nasce de um compromisso entre nós ou de um meio-termo (a média é sempre uma
coisa tediosa!), mas de um terceiro elemento, que não é necessariamente igual
ao que um ou outro de nós faria individualmente. O que brota é uma revelação
para nós dois. Um terceiro estilo, totalmente novo, nos supera. É como se
tivéssemos nos tornando um organismo grupal que tem uma natureza própria e
um peculiar modo de ser, um elemento único e imprevisível, que é a personalidade
ou o cérebro grupal.” (NACHMANOVITCH, 1990, 91)
Para além da música, aqui o autor nos inspira sobre a beleza de criar
com um outro, criar em parceria, o que gera uma nova consciênia e identidade
grupal. Vale ressaltar que a dinâmica descrita pelo autor, através da qual nasce-se
um elemento terceiro entre os sujeitos, dialoga com o conceito junguiano de
função transcendente:
Esse é... o mais
importante estágio do processo, a união dos opostos para a produção de um
terceiro: a função transcendente...
“Da atividade do inconsciente, emerge, agora
um novo conteúdo, constelado pela tese e pela antítese [a
síntese] em igual medida, e que está em relação compensatória com ambas.
Ela forma assim, um termo médio, no qual os opostos podem se unir.” (JUNG)
A função transcendente é, em sua essência, um aspecto da autorregulação
da psique. Manifesta-se, tipicamente, de modo simbólico, e é experimentada como
uma nova atitude em face a si mesmo e da vida. (SHARP, 1991, 75)
Os processos criativos compartilhados, em sua beleza e profundidade, não
se dão facilmente ou instantaneamente. Muita das vezes é um desafio, fonte de
resistências, incômodos ou, na palavra utilizada por Nachmanovtch, irritação.
Entretanto, esta seria, em contrapartida, uma fonte de inspiração:
Alguns trabalhos são grandes demais para que possamos dar conta
deles sozinhos, ou simplesmente é mais divertido realizá-los com amigos.
Qualquer que seja o caso, isso nos leva ao fértil e desafiador campo da
colaboração. Quando trabalham juntos, os artistas exploram um outro
aspecto do poder dos limites. Existe uma outra personalidade e um outro
estilo que precisam ser absorvidos e contidos. Cada colaborador traz para o
trabalho um conjunto diferente de forças e resistências. Cada um proporciona
ao outro irritação e inspiração - o grão de areia com que ambos produzirão
uma pérola.
Precisamos lembrar uma coisa óbvia, que no entanto nunca é demais
reafirmar: personalidades diferentes têm estilos criativos diferentes.
Não existe uma única ideia de criatividade capaz de descrevê-la na sua
totalidade. Portanto, como em qualquer relacionamento, quando colaboramos com
outros construímos um ser maior, uma criatividade mais versátil. (NACHMANOVITCH, 1990, 92)
Em um capítulo anterior, chamado “O poder dos erros”, Nachmanovitch já
havia utilizado como metáfora o grão de areia e a peróla para descrever a
potente relação entre a irritação e a inspiração:
Todos sabemos como
nascem as pérolas… Se a ostra tivesse mãos, não haveria pérolas. Como ela é
obrigada a conviver com a irritação por um longo período de tempo, a pérola se forma… Os erros e
acidentes [o não controle] podem ser grãos de areia que se transformarão em
pérolas; elas nos oferecem oportunidades imprevistas, são em si mesmos fontes
frescas de inspiração. Aprendemos a considerer nossos obstáculos como
ornamentos, oportunidades a serem aproveitadas e exploradas. (NACHMANOVITCH,
1990, 87)
Neste sentido, o autor amplia sua percepção
sobre os possíveis “obstáculos” que podem atravessar um processo criativo. Em
“Prática Compartilhada”, ele defende que o outro pode servir como um grão de
areia que poderá causar tamanha irritação, mas que obrigará o sujeito a sair de
sua zona de conforto e desenvolver algo muito mais belo e valioso do que seria
se pudesse se livrar de seu desconforto.
Para o autor, a prática compartilhada tem o
potencial de nos presentear com surpresas advindas do inconsciente, mas para
isso, é necessário que o sujeito abra mão de seu controle e desenvolva a diciplina
de uma escuta sutil e atenta ao seu parceiro de criação:
A realidade compartilhada que criamos nos oferece mais surpresas
do que nosso trabalho individual. Quando
tocamos com outras pessoas, existe um risco real de cacofonia, cujo antídoto é
a disciplina. Mas não precisa ser a disciplina do “vamos estabelecer uma
estrutura de antemão”. Trata-se da disciplina da mútua consideração, da
consciência do outro, de saber ouvir o outro e da disposição para a sutileza...
Desistir de algum controle em favor de outra pessoa nos ensina a desistir de
algum controle em favor do inconsciente. (NACHMANOVITCH, 1990, 93)
Propostas arteterapêuticas grupais que
envolvem práticas compartilhadas colocam os sujeitos em ato para que possam se deixar
atravessar pela interferência/contribuição do outro. Mas, antes disso, mesmo em
práticas individuais, mas vivenciadas na presença do outro, já torna-se
possível a abertura de um campo para que haja uma troca e mobilização mútua
entre os sujeitos:
Podemos experimentar
esse fenômeno mesmo sem estarmos tocando, dançando ou representando em grupo.
Para um escritor, por exemplo, as bibliotecas são ótimos lugares para se trabalhar,
porque, embora as pessoas que nos cercam sejam totalmente estranhas e cada uma
esteja fazendo o seu trabalho, o ritmo silencioso de pessoas trabalhando juntas
aumenta a energia de cada uma para o trabalho. Sentimos que o sincronismo
reforça nossa concentração e nosso compromisso de estar no trabalho…
Nossas mentes e nossos
corações vibram no mesmo ritmo. (NACHMANOVITCH, 1990, 96)
Concluindo
As considerações tecidas por
Nachmanovitch nos inspira à uma modalidade terapêutica tão própria da Arteterapia:
a sustentação de grupos arteterapêuticos que, em especial, vivenciam práticas criativas
compartilhadas, que possam lhe espelhar e desenvolver relacionamentos humanos
mais salutares. Pois, segundo o autor:
O fazer artístico compartilhado é, em e por si
mesmo, a expressão, o veículo e a força motriz dos relacionamentos humanos.
Na expressão conjunta, os participantes constroem uma sociedade à parte e toda
própria. Proporcionando um relacionamento direto ente as pessoas, sem qualquer
outro intermediário a não ser a imaginação de cada um, a improvisação em
grupo atua como um catalizador de amizades fortes e especiais. (NACHMANOVITCH, 1990, 95)
O autor ainda defende que “Uma vantagem na
colaboração é que é muito mais fácil aprender com alguém do que sozinho.” (NACHMANOVITCH, 1990, 91-92). Ampliando essa
percpectiva, podemos pensar que se estamos em tempos de (re)aprender a nos
relacionarmos de forma ampla e saudável, só é possível fazê-lo na experiência
com o outro. Em territórios arteterapêuticos, constatamos que a prática
compartilhada se faz um potente recurso para o estímulo a esse aprendizado.
Referências
Bibliográficas:
CARDELLA,
Beatriz Helena Paranhos. De volta para casa: ética e poética na clínica
gestáltica Contemporânea. Editora Amparo, SP. 2020
NACHMANOVITCH,
Stephen. Ser Criativo: o poder da improvisação na vida e na arte. Summus
Editorial, SP. 1993.
SHARP,
Daryl. Léxico Junguiano, Ed Cultrix, SP. 1991.
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Sobre a autora: Eliana Moraes
Arteterapeuta e Psicóloga
Pós graduada em História da Arte
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
Cursando MBA em Logoterapia e Desenvolvimento Humano
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia.
Dá aula em cursos de formação em Arteterapia em SP e MS.
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia online, sediada em Belo Horizonte, MG.
Autora dos livros "Pensando a Arteterapia" Vol 1 e 2
Organizadora do livro "Escritos em Arteterapia - Coletivo Não Palavra"