Por Clara Abdo - RJ
@claramariaabdo
Um dos
pressupostos da Arteterapia é que o processo terapêutico contribua para a
elaboração criativa do paciente/cliente. No entanto, muitas são as situações em
que nos deparamos com a rejeição, por parte da pessoa atendida, àquilo que se
cria, ou mesmo algumas resistências ao próprio ato de criar. Para Ostrower,
criatividade é “um potencial inerente ao homem, e a realização desse potencial uma de suas necessidades
(...). O criar só pode ser visto num sentido global, como um agir integrado em
um viver humano. De fato, criar e viver se interligam” (2007, p. 5)
Ao
tomarmos o que a autora aponta sobre o tema, é possível pensar que as dificuldades
do processo criativo traduzem de forma simbólica dificuldades experimentadas na
vida. Se o criar é uma forma de fazer contato com aquilo que nos constitui
enquanto sujeitos, tais resistências ou negações podem comunicar algo sobre o
nosso processo de individuação.
Nesse
sentido, o mito de Hefesto pode nos auxiliar a ampliar o olhar sobre algo tão
comum que acontece na clínica arteterapêutica: a rejeição à imagem que se cria
ou a resistência ao ato criativo. Nesse artigo, busco trazer uma leitura deste
mito à luz da psicologia analítica. É importante frisar, no entanto, que essa
construção interpretativa não pretende sugerir causas ou diagnósticos para
dificuldades de um paciente/cliente. Ela é apenas uma forma de olhar como o
mito pode nos fazer refletir sobre as demandas que se apresentam na clínica e
tangenciam a relação com a criatividade.
Contextualização
do mito
Os
principais personagens deste mito são Hefesto, que constela o arquétipo do
criador ferido. Hera, sua mãe que o concebe sem a presença de outro homem.
Zeus, a representação da figura paterna que o rejeita, assim como sua mãe.
Ares, contraparte masculina, dotado de qualidades com as quais Hefesto não se
identifica: coragem e agilidade. Afrodite, uma de suas esposas e sua
contraparte feminina, associada a um dos aspectos de sua anima.
Quando
criamos algo que não gostamos
Hera,
esposa de Zeus, enciumada por ele ter gerado uma filha sem sua presença, tenta
fazer o mesmo, gerando Hefesto que, diferente dos outros deuses do Olimpo,
nasce coxo e por isso é rejeitado por sua mãe. Também o é por seu pai que, na
ausência de sua participação, trata-o como não legítimo.
Ao pensar no mito e na relação com o processo criativo, esse seria o momento em que, ao produzir algo, nos deparamos com o que desagrada, mas que nasce de nós mesmos.
Quando o
julgamento por sermos quem somos nos reprime
Nascer é
sair do útero, da experiência de fusão e defrontar-se com a separação. Para
atenuar a dor dessa experiência, todo ser humano busca pertencer e, por isso,
cria estratégias de sobrevivência no meio onde se insere. Quando uma criança se
sente inadequada ou retaliada pela maneira como se expressa, o que
inevitavelmente vai acontecer em algum momento da vida, possivelmente
registrará a experiência da rejeição e, em algumas situações, reprimir aquilo
que é fonte para criar: sua espontaneidade. No caso do mito, Hefesto se vê
destituído da proteção das figuras materna e paterna, que o excluem, e
defronta-se com o riso debochado que recebe de outros deuses por sua aparência.
Baseada
na abordagem da psicologia analítica, poderia propor que pelo desenrolar da
história, Hefesto acaba constelando complexos tanto paterno quanto materno. O
que seria o mesmo que dizer que, ao ser rejeitado pelos seus pais, ele mesmo
construiu, de forma inconsciente, personalidades autônomas que o defendem dessa
ausência dos pais. Acontece que, geralmente, essas personalidades são formadas
por experiências traumáticas e, por isso, incapazes de direcionar suas atitudes
sem uma tomada de consciência adequada. Um dos episódios que retrata isso e que
será retomado mais à frente, é quando Hefesto se vinga da mãe e posteriormente
de Afrodite.
Todo
processo criativo passa pela tentativa e pela experimentação e é isso que
norteia o aprendizado. Quando essa experiência é transformada em algo cujo
resultado é a punição pelo que não está de acordo com o esperado, há uma
espécie de cerceamento da expressão e possível bloqueio da criatividade.
Quando na
escuridão, o que nos resta é encontrar saídas com o que sobrou de nós
Ao ser
rejeitado, Hefesto é acolhido pelas nereidas, Tétis e Eurínome, figuras míticas
que se relacionam com o fundo do mar, personificam as ondas e estão ligadas às
sutilezas da arte. Há muitos autores, como Jung (2006) e Campbell (1990), que
fazem referência à criatividade como um aspecto do feminino, não enquanto
gênero, mas representação arquetípica. No fundo do oceano, Hefesto desenvolve a
arte da forja, manuseando metais e o fogo, tornando-se um exímio artesão, cujas
criações continham poder e belezas.
Para fazer contato com o processo criativo, precisamos por vezes ir ao fundo do mar, ir até as profundezas de nossa alma, resgatar do inconsciente a experiência fusional que é o processo gestacional da relação da mãe com o filho. O mito retrata a dor como substrato para a criação.
Quando o
ressentimento aprisiona a criatividade
Como
Hefesto ainda estava dominado pelo complexo materno, em um episódio do mito,
sua mãe ganha dele um trono de ouro, que ao ocupar o lugar sentando-se nele, é
aprisionada por correntes que apenas Hefesto seria capaz de tirar.
Se não
trabalharmos os conteúdos que nos geram dor e nos fazem enrijecer, por vezes
inconscientes e tomados pelos complexos, aprisionamos aquilo que em nós é
potente e transformador. Ao se ver tomado pelo remorso da rejeição,
Hefesto aprisiona sua mãe, cuja representação analítica é a capacidade geradora
e acolhedora de suas próprias dores. No desenvolvimento humano, há um momento
em que precisamos assumir a maternagem de nós mesmos, o que significa sermos
capazes de criar e preservar a vida que temos.
Quando
somos confrontados com a sombra da projeção e negamos olhar para o que não
gostamos
Como
Hefesto era o único capaz de soltar sua mãe, foi convocado a voltar ao Olimpo,
tornando-se o único deus a retornar após ter sido exilado. Passou a fabricar
objetos para outros deuses e em agradecimento pelos raios que possibilitaram a
Zeus de vencer a luta contra os Titãs, Hefesto pede para se casar com Afrodite,
representação da beleza, harmonia e do amor. Pedido concedido, Hefesto passa
mais uma vez pela experiência de rejeição, sendo traído por Afrodite com outros
deuses e, especialmente, com Ares. Delatados por Hélio, Hefesto flagra sua
esposa com Ares, aprisionando-a juntamente a Ares e convocando os deuses do
Olimpo para presenciarem a cena.
No
processo criativo, quando não aceitamos nosso modo de ser e nem mesmo
enxergamos o que somos capazes de criar, projetamos no outro ou em outras
coisas o nosso desejo idealizado do que é ser belo. É nesse momento que nos
traímos, pois em algum momento, deter uma beleza exterior não será suficiente e
o inconsciente vai sinalizar, reforçando a sensação de inadequação. O
casamento de Hefesto é uma tentativa de integrar aspectos de seu feminino,
projetando a beleza fora. E o flagra e a exposição dos amantes é o recalque de
uma parte que lhe falta, constelado pelo complexo paterno, que foi gerado com a
ausência da figura paterna em sua vida, fazendo-o acreditar que seria
desprovido de virilidade, coragem e força.
Quando
integramos e aceitamos (e somos aceitos pelo) nosso jeito
Existem
algumas passagens do mito de Hefesto em que ele é acolhido. Num primeiro
momento pelas nereidas que podem simbolizar, rusticamente falando, o sopro
uterino da vida. Em outra circunstância, quando os deuses veem a cena de Afrodite
e Ares, em meio a chacotas, Posídon, deus dos oceanos, escuta e acolhe Hefesto,
oferecendo-lhe a compensação necessária para que ele aceite soltar os amantes.
Quando há
crises e bloqueios na nossa forma de estar no mundo, precisamos de algo para
atenuar a dor e não modelos que podem cercear a nossa natureza. Hefesto era o
deus que dominava o fogo e os metais. Pedir que fizesse outra coisa poderia
ferir mais ainda sua natureza. Posídon e as nereidas podem ser tanto
representação da intuição quanto de pessoas que nos acolhem, preparando-nos
para alçar voos quando nos sentimos prontos. Só somos livres para criar quando somos capazes
de transformar a dor.
Quando
criar envolve também reconhecer nossas singularidades
A dor e
todas as experiências com que tecemos a nossa história são substratos para
nossa criatividade, pois elas costuram quem somos. Embora a história de Hefesto
seja marcada por muitos episódios dolorosos, é ele o deus ligado ao fogo da
transformação, o fogo capaz de transformar os metais em objetos belíssimos. Beleza
esta, que não está, necessariamente, no resultado dos objetos que se cria, mas
na potência e na história que eles contam.
Referencial
bibliográfico
CAMPBELL,
Joseph. O poder do mito. Com Bill Moyers. São Paulo: Palas Athena, 1990.
JUNG,
Carl Gustrav. Memórias, sonhos, reflexões. Rio de Janeiro: Ed. Nova
Fronteira, 2006.
OSTROWER,
Fayga. Criatividade e processo de criação. Petrópolis: Vozes, 2007.
Imagem: La Visita Di Venere a Vulcano, de François Boucher (1703-1770, França)
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Sobre a
autoria: Clara
Maria Abdo Guimarães
Arteterapeuta
com experiência no atendimento a crianças, adolescentes e adultos. Atuo e
elaboro uma clínica arteterapêutica a partir da arte, do corpo e da palavra.
Atendo presencial e online.
Co-fundei
o Instituto de Arteterapia em 2021. Realizei trabalho arteterapêutico com grupo
de crianças em ONG, na cidade do Rio de Janeiro, entre 2019 e 2020. Desenvolvi
projeto de extensão pela UERJ, entre 2013 e 2018, sobre o pertencimento da
criança na cidade. Sou mestre em antropologia social pela UFF e especialista em
psicologia transpessoal pela Unipaz/São Judas Tadeu. Atualmente, estudante de
graduação em psicologia.