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segunda-feira, 25 de julho de 2022

MITO DE HEFESTO E ARTETERAPIA: UM REFLEXÃO SOBRE DIFICULDADES NO PROCESSO CRIATIVO



Por Clara Abdo - RJ

@claramariaabdo 

Um dos pressupostos da Arteterapia é que o processo terapêutico contribua para a elaboração criativa do paciente/cliente. No entanto, muitas são as situações em que nos deparamos com a rejeição, por parte da pessoa atendida, àquilo que se cria, ou mesmo algumas resistências ao próprio ato de criar. Para Ostrower, criatividade é “um potencial inerente ao homem, e a realização desse potencial uma de suas necessidades (...). O criar só pode ser visto num sentido global, como um agir integrado em um viver humano. De fato, criar e viver se interligam” (2007, p. 5)

Ao tomarmos o que a autora aponta sobre o tema, é possível pensar que as dificuldades do processo criativo traduzem de forma simbólica dificuldades experimentadas na vida. Se o criar é uma forma de fazer contato com aquilo que nos constitui enquanto sujeitos, tais resistências ou negações podem comunicar algo sobre o nosso processo de individuação.

Nesse sentido, o mito de Hefesto pode nos auxiliar a ampliar o olhar sobre algo tão comum que acontece na clínica arteterapêutica: a rejeição à imagem que se cria ou a resistência ao ato criativo. Nesse artigo, busco trazer uma leitura deste mito à luz da psicologia analítica. É importante frisar, no entanto, que essa construção interpretativa não pretende sugerir causas ou diagnósticos para dificuldades de um paciente/cliente. Ela é apenas uma forma de olhar como o mito pode nos fazer refletir sobre as demandas que se apresentam na clínica e tangenciam a relação com a criatividade.

 

Contextualização do mito

Os principais personagens deste mito são Hefesto, que constela o arquétipo do criador ferido. Hera, sua mãe que o concebe sem a presença de outro homem. Zeus, a representação da figura paterna que o rejeita, assim como sua mãe. Ares, contraparte masculina, dotado de qualidades com as quais Hefesto não se identifica: coragem e agilidade. Afrodite, uma de suas esposas e sua contraparte feminina, associada a um dos aspectos de sua anima.

 

Quando criamos algo que não gostamos

Hera, esposa de Zeus, enciumada por ele ter gerado uma filha sem sua presença, tenta fazer o mesmo, gerando Hefesto que, diferente dos outros deuses do Olimpo, nasce coxo e por isso é rejeitado por sua mãe. Também o é por seu pai que, na ausência de sua participação, trata-o como não legítimo.

Ao pensar no mito e na relação com o processo criativo, esse seria o momento em que, ao produzir algo, nos deparamos com o que desagrada, mas que nasce de nós mesmos. 

Quando o julgamento por sermos quem somos nos reprime

Nascer é sair do útero, da experiência de fusão e defrontar-se com a separação. Para atenuar a dor dessa experiência, todo ser humano busca pertencer e, por isso, cria estratégias de sobrevivência no meio onde se insere. Quando uma criança se sente inadequada ou retaliada pela maneira como se expressa, o que inevitavelmente vai acontecer em algum momento da vida, possivelmente registrará a experiência da rejeição e, em algumas situações, reprimir aquilo que é fonte para criar: sua espontaneidade. No caso do mito, Hefesto se vê destituído da proteção das figuras materna e paterna, que o excluem, e defronta-se com o riso debochado que recebe de outros deuses por sua aparência.

Baseada na abordagem da psicologia analítica, poderia propor que pelo desenrolar da história, Hefesto acaba constelando complexos tanto paterno quanto materno. O que seria o mesmo que dizer que, ao ser rejeitado pelos seus pais, ele mesmo construiu, de forma inconsciente, personalidades autônomas que o defendem dessa ausência dos pais. Acontece que, geralmente, essas personalidades são formadas por experiências traumáticas e, por isso, incapazes de direcionar suas atitudes sem uma tomada de consciência adequada. Um dos episódios que retrata isso e que será retomado mais à frente, é quando Hefesto se vinga da mãe e posteriormente de Afrodite.

Todo processo criativo passa pela tentativa e pela experimentação e é isso que norteia o aprendizado. Quando essa experiência é transformada em algo cujo resultado é a punição pelo que não está de acordo com o esperado, há uma espécie de cerceamento da expressão e possível bloqueio da criatividade.

 

Quando na escuridão, o que nos resta é encontrar saídas com o que sobrou de nós

Ao ser rejeitado, Hefesto é acolhido pelas nereidas, Tétis e Eurínome, figuras míticas que se relacionam com o fundo do mar, personificam as ondas e estão ligadas às sutilezas da arte. Há muitos autores, como Jung (2006) e Campbell (1990), que fazem referência à criatividade como um aspecto do feminino, não enquanto gênero, mas representação arquetípica. No fundo do oceano, Hefesto desenvolve a arte da forja, manuseando metais e o fogo, tornando-se um exímio artesão, cujas criações continham poder e belezas.

Para fazer contato com o processo criativo, precisamos por vezes ir ao fundo do mar, ir até as profundezas de nossa alma, resgatar do inconsciente a experiência fusional que é o processo gestacional da relação da mãe com o filho. O mito retrata a dor como substrato para a criação. 

Quando o ressentimento aprisiona a criatividade

Como Hefesto ainda estava dominado pelo complexo materno, em um episódio do mito, sua mãe ganha dele um trono de ouro, que ao ocupar o lugar sentando-se nele, é aprisionada por correntes que apenas Hefesto seria capaz de tirar.

Se não trabalharmos os conteúdos que nos geram dor e nos fazem enrijecer, por vezes inconscientes e tomados pelos complexos, aprisionamos aquilo que em nós é potente e transformador. Ao se ver tomado pelo remorso da rejeição, Hefesto aprisiona sua mãe, cuja representação analítica é a capacidade geradora e acolhedora de suas próprias dores. No desenvolvimento humano, há um momento em que precisamos assumir a maternagem de nós mesmos, o que significa sermos capazes de criar e preservar a vida que temos.

 

Quando somos confrontados com a sombra da projeção e negamos olhar para o que não gostamos

Como Hefesto era o único capaz de soltar sua mãe, foi convocado a voltar ao Olimpo, tornando-se o único deus a retornar após ter sido exilado. Passou a fabricar objetos para outros deuses e em agradecimento pelos raios que possibilitaram a Zeus de vencer a luta contra os Titãs, Hefesto pede para se casar com Afrodite, representação da beleza, harmonia e do amor. Pedido concedido, Hefesto passa mais uma vez pela experiência de rejeição, sendo traído por Afrodite com outros deuses e, especialmente, com Ares. Delatados por Hélio, Hefesto flagra sua esposa com Ares, aprisionando-a juntamente a Ares e convocando os deuses do Olimpo para presenciarem a cena.

No processo criativo, quando não aceitamos nosso modo de ser e nem mesmo enxergamos o que somos capazes de criar, projetamos no outro ou em outras coisas o nosso desejo idealizado do que é ser belo. É nesse momento que nos traímos, pois em algum momento, deter uma beleza exterior não será suficiente e o inconsciente vai sinalizar, reforçando a sensação de inadequação. O casamento de Hefesto é uma tentativa de integrar aspectos de seu feminino, projetando a beleza fora. E o flagra e a exposição dos amantes é o recalque de uma parte que lhe falta, constelado pelo complexo paterno, que foi gerado com a ausência da figura paterna em sua vida, fazendo-o acreditar que seria desprovido de virilidade, coragem e força.

 

Quando integramos e aceitamos (e somos aceitos pelo) nosso jeito

Existem algumas passagens do mito de Hefesto em que ele é acolhido. Num primeiro momento pelas nereidas que podem simbolizar, rusticamente falando, o sopro uterino da vida. Em outra circunstância, quando os deuses veem a cena de Afrodite e Ares, em meio a chacotas, Posídon, deus dos oceanos, escuta e acolhe Hefesto, oferecendo-lhe a compensação necessária para que ele aceite soltar os amantes.

Quando há crises e bloqueios na nossa forma de estar no mundo, precisamos de algo para atenuar a dor e não modelos que podem cercear a nossa natureza. Hefesto era o deus que dominava o fogo e os metais. Pedir que fizesse outra coisa poderia ferir mais ainda sua natureza. Posídon e as nereidas podem ser tanto representação da intuição quanto de pessoas que nos acolhem, preparando-nos para alçar voos quando nos sentimos prontos. Só somos livres para criar quando somos capazes de transformar a dor.

 

Quando criar envolve também reconhecer nossas singularidades

A dor e todas as experiências com que tecemos a nossa história são substratos para nossa criatividade, pois elas costuram quem somos. Embora a história de Hefesto seja marcada por muitos episódios dolorosos, é ele o deus ligado ao fogo da transformação, o fogo capaz de transformar os metais em objetos belíssimos. Beleza esta, que não está, necessariamente, no resultado dos objetos que se cria, mas na potência e na história que eles contam.

 

Referencial bibliográfico

CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. Com Bill Moyers. São Paulo: Palas Athena, 1990.

JUNG, Carl Gustrav. Memórias, sonhos, reflexões. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 2006.

OSTROWER, Fayga. Criatividade e processo de criação. Petrópolis: Vozes, 2007.

 

Imagem: La Visita Di Venere a Vulcano, de François Boucher (1703-1770, França)

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Sobre a autoria: Clara Maria Abdo Guimarães

 


Arteterapeuta com experiência no atendimento a crianças, adolescentes e adultos. Atuo e elaboro uma clínica arteterapêutica a partir da arte, do corpo e da palavra. Atendo presencial e online.

Co-fundei o Instituto de Arteterapia em 2021. Realizei trabalho arteterapêutico com grupo de crianças em ONG, na cidade do Rio de Janeiro, entre 2019 e 2020. Desenvolvi projeto de extensão pela UERJ, entre 2013 e 2018, sobre o pertencimento da criança na cidade. Sou mestre em antropologia social pela UFF e especialista em psicologia transpessoal pela Unipaz/São Judas Tadeu. Atualmente, estudante de graduação em psicologia.

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