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segunda-feira, 11 de abril de 2022

A CONTRATRANSFERÊNCIA NA ARTETERAPIA – Um relato de experiência

 


Por Sheila Leite – RJ 

shenterlai@gmail.com

     Dentro do setting terapêutico, o arteterapeuta precisa voltar sua atenção também para os aspectos que permeiam a relação, a transferência e a contratransferência. A transferência se dá pelo olhar do cliente, através da projeção no terapeuta, de conteúdos afetivos internos e inconscientes, e personagens da sua relação tais como pai, mãe, cônjuge e outros. Essa projeção dos mais diversos conteúdos sobre o terapeuta é inerente. 

     Assim como o cliente, o terapeuta tem suas questões pessoais, sua história de vida como qualquer ser humano e, de certa forma, essas questões podem aparecer na terapia. Podem ser estimuladas pelos conteúdos levados pelos clientes, os quais podem despertar sentimentos e emoções no terapeuta, emergentes dessa relação terapêutica. É o que se denomina contratransferência – esta é muitas vezes despercebida, mas pode até mesmo aparecer nos sonhos, pois chegam pelas vias do inconsciente. Em relação ao valor terapêutico da contratransferência, Jacoby nos fala que “Jung sentia que o analista não poderia evitar ser por vezes afetado, até profundamente, pelo seu paciente e que seria melhor aceitar esse fato e estar o mais consciente possível.” (Jacoby, 2011) 

     Conhecer a contratransferência é essencial para o profissional que está vivenciando dentro do setting terapêutico essa relação com o cliente, para que possa distinguir o que é dele e o que é do cliente. Se o terapeuta consegue ter essa percepção, isso vai contribuir com o seu crescimento, pois coloca em evidência conteúdos que precisam ser elaborados. “O analista tem que estar consciente de seus impulsos de poder, ou de suas necessidades de ser pai ou mãe, de forma a mantê-las sob um certo controle e não buscar satisfazê-las inconscientemente através da relação analítica.” (Jacoby, 2011) 

Relato de experiência 

   Durante o período de isolamento causado pela pandemia trazida pelo vírus SARS-COV-2, impactos de toda ordem, em todas as áreas, colocou toda a população mundial em alerta – alerta este também em relação a saúde mental. 

Muitos indivíduos começaram a apresentar sintomas de angústia devido aos medos, lutos e estresses ao lidar com vários setores da vida num mesmo ambiente. E foi nesse contexto, no curso de formação em Arteterapia, utilizando uma técnica de colagem, com o objetivo de fazer uma análise da contratransferência, que foi proposto um trabalho para a turma. 

   De que forma o que é trazido pelo cliente reverbera nesse profissional? 

   Primeiro foi pedido que levássemos uma imagem de uma sombra, que poderia ter sido criada ou captada naturalmente. Depois, que pensássemos em um cliente, trazendo uma situação voltada para algum tipo de neurose, contando o que o estava afligindo e que, de certa forma, pudesse ser representado pela imagem da sombra levada (Figura 1). Feito isso, observando a imagem, escrever sobre a demanda do cliente e a seguir descrever nossa percepção dessa mesma imagem.


    A descrição a seguir fala da demanda desse cliente e os motivos que o levaram procurar uma terapia: “Nesses últimos meses, venho tentando colocar minhas tarefas em dia, mas não consigo concluir nada. Tenho a impressão de que o tempo deixou de ter 24 horas. Estou me sentindo muito atarefada, sem tempo e ânimo para fazer todas as tarefas que sei que devo fazer. No momento, sinto as coisas muito emboladas para mim. Estou de home office e está difícil separar o trabalho das tarefas de casa. Ainda tem as aulas das crianças, o marido. Não consigo mais me sentar para relaxar. Estou ansiosa e ando com medo do futuro.  Tenho palpitações, angústia e vontade de chorar. Não tenho mais tempo para nada e não consigo dar conta das tarefas. Tem hora que me sinto sufocar e tenho vontade de desligar um botão que me tire de tudo isso. Toda essa situação, já está influenciando meu sono, meu modo de ser e tudo. É isso doutora. O que eu posso fazer?”   

     A cliente fala das muitas tarefas que precisam ser cumpridas e elas vêm representadas pelo conteúdo trazido na cabeça, que me parece um peso. Vejo uma flor que sai de dentro desse conteúdo, que junto a esse peso precisa de cuidados e equilíbrio para que não caia. As mãos erguidas, mas sem tocar, provavelmente demonstrando a falta de controle, tornam-se cansativas, causando angústia e ansiedade. Não consegue focar em mais nada pelo medo de tudo desabar. E assim permanece em alerta, tentando equilibrar tudo sem focar em nada. 

    Utilizando a técnica da colagem, foi pedido que fizesse uma imagem que pudesse traduzir o que essa imagem passou para mim, ou seja, que conteúdo dessa cliente tem a ver comigo dentro desse contexto. Os materiais utilizados foram: pedaços de papel coloridos, rolinho de papel higiênico, lápis de cor, giz de cera, cola e um papel A4. A tarefa foi representar o que eu senti em contato com essa imagem. 

     Como ser humano, deixando de lado a persona de arteterapeuta, me percebi também vivenciando esse momento da pandemia, em que o número de coisas para serem vistas, estudadas e elaboradas ultrapassa o limite do tempo que temos. O desconhecimento de algo novo (e que ainda não se tem um prognóstico definitivo) gera insegurança e causa dúvidas. O ego acaba se fragilizando e se desorganizando numa mistura de emoções e sentimentos. Toda essa problemática estava me afetando e eu precisava estar consciente para que o meu conteúdo não se misturasse com as questões do cliente. Uma forma de poder representar tudo isso foi em um mandala. 


     Toda essa demanda trazida não conseguia encontrar uma organização, o momento da busca do equilíbrio já estava sendo ultrapassado. A psique precisava urgentemente ser colocada em ordem.           

     Ao analisar o trabalho resultante, senti essa desorganização que estava também em mim e precisava ser arrumada, ser levada também para minha terapia e trabalhada.   

    No momento em que me deparei com o resultado, ficou claro a importância da compreensão da contratransferência e, para isso, a necessidade de o profissional estar sempre em supervisão, constatando seus sentimentos contratransferenciais. Dentro de qualquer relação, essa bilateralidade de projeções e transferências vão estar sempre presentes. 

   Como diz Jacoby, o analista deve estar ciente de suas potenciais projeções inconscientes e de suas percepções genuínas, para que possa diferenciá-las da melhor forma que conseguir. 

   No contato com o outro eu afeto e sou afetada. E a pergunta que está sempre presente numa relação e que deve ser conscientizada é: o que eu projeto em você e o que você projeta em mim? 

 

Referência Bibliográfica

JACOBY, Mario. O Encontro Analítico Transferência e Relacionamento Humano. Petrópolis: Vozes, 2011.

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Sobre a autora: Sheila Leite


Psicóloga e Arteterapeuta em formação

Pós Graduação em Psicologia Junguiana
Psicóloga convidada da Rádio Rio de Janeiro, 1400 AM,  Programa Ouvindo Você.

Atendimento Clínico: individual e grupo. Crianças, adolescentes e adultos na Ilha do Governador

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