Por
Isabel Pires - RJ
bel.antigin@gmail.com
O papel é um dos
suportes mais usados em trabalhos artísticos. Mas, além de suporte, também pode
ser meio para a realização de belas obras de arte. Participa da vida de todo
ser humano de maneira praticamente indispensável. “É nele que começamos a dar
nossos primeiros rabiscos, a formular nossas primeiras letrinhas. Nele,
registramos nossos maiores segredos” (CARRANO & REQUIÃO, 2013). Basta
lembrarmos a linda homenagem que Toquinho fez na sua música “O Caderno”, na
qual um caderno se descreve como “confidente fiel”, “amigo” e aquele que vai
“seus problemas ajudar a resolver”. Daí, talvez, a relação de afeto que
muitos nutrem pelo papel, pelo toque e cheiro dele, por exemplo, num livro novo.
Inventado pelos
chineses, o papel foi o instrumento de registro e armazenamento da história da
sociedade através dos tempos. Logo, participa de nossa memória arquetípica,
pois aporta um saber ancestral. Com ele, é possível pintar, recortar, colar,
desenhar, construir e... dobrar.
Desde a invenção do papel na China em
torno de 105 D.C., os japoneses desenvolveram a arte da dobradura de papel ou
origami (que, em japonês, significa literalmente “dobrar papel”). Segundo
Kanege e Imamura (1999), pesquisadores do origami acreditam que ele tenha
surgido quando um monge budista chinês trouxe para o Japão o método de
fabricação do papel. No início, como o papel era caro, o origami era usado
apenas em cerimônias específicas e religiosas. Pode ter surgido “de
ornamentações (katashiro) divinizadas nos templos xintoístas, que eram feitas
de papel” (KANEGE & IMAMURA, 1999). Existem origamis utilizados até hoje em
cerimônias, como, por exemplo, a representação de duas borboletas (feminino e
masculino) expostas em casamentos, e o noshi, um enfeite colocado sobre
embrulhos de presente, que demonstra que o doador do presente deseja fortuna ao
receptor. Assim, percebe-se que o
origami sempre possuiu um caráter simbólico. Por exemplo, o origami do grou ou
tsuru, popularíssimo no Japão e, também, no Ocidente atual, é símbolo de
felicidade eterna e longevidade. E os símbolos são a base do trabalho da
arteterapia, porque nos trazem notícias do inconsciente dos indivíduos, o qual
desejamos trabalhar terapeuticamente.
Em meados do século XIX, o origami
passou a ser utilizado como recurso educativo no Japão, mas só foi
internacionalizado na década de 30 por Akira Yoshizawa, quando “passou a ser
visto como um exercício de criatividade livre e uma importante ferramenta
educacional” (YAMADA et al, 2014). Assim, hoje, é frequente seu uso no ensino
de geometria nas salas de aula.
De acordo com Yamada et al (2014,
p.231), “na terapia, o origami é um recurso benéfico e simples, pois o material
é facilmente encontrado, de baixo custo, próximo da vida cotidiana e não
oferece perigo ao ser manuseado”. Além disso, segundo as autoras, o origami
ativa os dois hemisférios do cérebro, pois desenvolve a coordenação motora e a
inteligência não-verbal, a acuidade visual e a visualização tridimensional.
Como técnica arteterapêutica, as autoras citadas declaram que o origami permite
o “desenvolvimento cognitivo e afetivo, estruturação e ordenação lógica e
temporal, expressão plástica e prevenção do sistema nervoso”. Assim, beneficia
todas as faixas etárias. Mas esses aspectos e outros, como o desenvolvimento da
coordenação motora, tornam o origami excelente sobretudo para o trabalho com
idosos. Segundo Yamada et al (2014), a utilização da técnica com grupos da
terceira idade provou uma melhora na memória e na autoestima dos participantes
do estudo.
Primeiramente, o potencial de
utilização do origami no setting arteterapêutico advém do fato de ele
ser realizável por qualquer pessoa, independente de idade, sexo e nível social,
econômico e cultural. Em atendimentos online, torna-se uma técnica bastante
acessível, pois o papel é um material presente em todos os lugares, e o uso de
vídeos demonstrativos na internet facilita o processo. Assim, a simplicidade e
a praticidade do origami representam vantagens relevantes do seu uso no setting
arteterapêutico.
Em segundo lugar, o origami se vale do
trabalho das mãos, que gera, entre outros benefícios, prazer e bem-estar e
contribui para a autoimagem positiva dos indivíduos. Uma das particularidades
do trabalho da arteterapia é justamente o de utilizar a inteligência emocional,
inconsciente, que existe nas mãos, o valor do “colocar a mão na massa”, ou,
como diz Moraes (2018, p. 75), o “agir criativo”.
Além disso, na visão de Yamada et al
(2014, p. 231), o ato de fazer origami em grupo “pode estreitar laços de
amizade e afetividade, relaxar pessoas estressadas” e aguçar a criatividade, a
concentração e a coordenação motora.
A meu ver, os ganhos da utilização do
origami são imensos e vão além dos já citados acima. Para começar, dobrar
papeis remete diretamente à nossa infância. Quem nunca brincou de fazer aviões
e barquinhos de papel? Assim, é possível estimular um despertar da criança
interior do nosso paciente/cliente, o que pode ativar lembranças de sua
infância e trazer à tona memórias afetivas. Além disso, tem o potencial de levar ao
resgate da leveza, da ludicidade e da curiosidade inerentes às crianças. A
reação de um adulto, ao concluir uma dobradura, é frequentemente de satisfação
e alegria. Para muitos, significa sucesso na conclusão de um desafio, um
estímulo à persistência e à coragem.
Na execução das peças de origami, é
necessário seguir uma determinada sequência, numa posição específica, a cada
passo do trabalho. Assim, requisita-se do indivíduo observação, atenção,
concentração e disciplina. É preciso enfatizar a marcação dos vincos, a
firmeza, o capricho, a precisão e a paciência. Desta forma, a maneira como o
sujeito reage às diferentes etapas e exigências do trabalho com o origami informa
ao arterterapeuta sobre várias características comportamentais e emocionais do
paciente/cliente. É possível, por exemplo, verificar a presença ou ausência de
cuidado, controle, delicadeza, calma, para a feitura das peças de origami. Com
essa técnica, o arteterapeuta consegue perceber, por exemplo, um paciente
ansioso; meticuloso (por exemplo, ao juntar ponta com ponta do papel);
impaciente; que tem dificuldade para deixar sua marca / marcar o papel (na hora
de fazer os vincos) e/ou para seguir limites (as dobras seguem quase sempre uma
linha, ou vinco, do papel).
Além disso, para muitos, o origami
pode estimular a paz interior, pois representa uma forma de meditação, já que
nos coloca no aqui e agora. Em tempos de valorização do mindfulness, a técnica
da dobradura de papeis é excelente ferramenta para o desenvolvimento da atenção
plena, o que é importante não apenas para pacientes ansiosos e depressivos, mas
para todos os seres humanos.
Para além de tudo o que já foi
abordado sobre o origami, não podemos nos esquecer de que as peças dessa
técnica são esculturas em papel e, como tal, estão no plano da
tridimensionalidade, que envolve o desafio da organização espacial, de
equilíbrio e, até, de movimento. Da mesma forma que a escultura tradicional, o
trabalho de origami retira a forma que já está potencialmente no material, no
caso, o papel. Igualmente, pode-se escolher o suporte, isto é, o tipo de papel,
na cor e textura desejados. O resultado são trabalhos de extrema beleza,
harmonia, delicadeza e genialidade. E o origami pode ser usado como
amplificação de um símbolo surgido na sessão, já que existe dobradura para
quase todo tipo de objeto e animal.
Finalmente, a arte da dobradura de
papel representa o poder ilimitado de transformação da criatividade humana.
Imagine converter um simples pedaço de papel quadrado em diversas formas, das
mais simples às mais complexas, dentro de um número sem fim de possibilidades. Mas,
nesse caso, diante da folha em branco à nossa frente, não existe a ansiedade do
desconhecido, do medo do não saber o que fazer, pois já se sabe, de antemão, o
que será realizado. Neste sentido, as etapas pré-definidas representam um campo
delimitado, que permite trabalhar organização e estruturação psíquicas. Porém,
isso não nos tira o prazer do resultado final, do senso de tarefa cumprida com eficiência
e satisfação. A magia dessa transformação, através de movimentos precisos e
cuidadosos de nossas mãos, num material simples e delicado como o papel, sempre
nos surpreenderá como um truque de mágica bem-sucedido. E a beleza e engenhosidade
das obras criadas sempre nos trarão encantamento.
Por isso, convido vocês,
arteterapeutas, a levarem essa arte para o seu setting arteterapêutico e
oferecer a seus pacientes/clientes a possibilidade de descobrir as infinitas e
inesperadas formas escondidas numa simples folha de papel e ousar revelar essas
formas em peças de delicada beleza e profundo simbolismo.
Referências Bibliográficas:
CARRANO, E.; REQUIÃO, M.H. Materiais de arte: sua linguagem subjetiva para o trabalho terapêutico e pedagógico. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2013.
KANEGAE, M.; IMAMURA, P. Origami: arte e técnica da dobradura de papel. 10ª edição. São Paulo: Palas Athena, 1999.
Yamada, T.; FARIAS, I.; PEREZ, N. Origami na terceira idade. VII World Congress on Communication and Arts: The Challenge of Developing Creative Artists in a Standardized World, Vila Real, Portugal, pp. 230-234, abril 2014.
MORAES, E. Pensando a Arteterapia. 1 ed. Divino de São Lourenço, ES: Editora Semente Editorial, 2018.
SILVA, L. Arte e terapia com
origamis. Blog Cursos CPT. Minas Gerais. Disponível em: https://www.cpt.com.br/noticias/arte-e-terapia-com-origamis. Acesso em: 09/04/2022.
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Oi! Eu sou Isabel Pires psicóloga, professora
de línguas e arteterapeuta. Também possuo formação em Jornalismo e em
Antiginástica® Thérèse Bertherat e pós-graduação em Psicologia Junguiana. Já
publiquei alguns textos aqui no blog do Não Palavra e um deles, “Vygotsky e a
arte”, faz parte do livro Escritos em Arteterapia: coletivo Não Palavra (2021).
Faço atendimentos individuais e em grupo (presencial e online), nos quais,
volta e meia, convido meus pacientes a criarem esculturas de papel e experienciarem
a arte da dobradura de papel. Adoro gatos e viagens, presenciais ou através dos
livros, que tenho em abundância. Se quiser falar comigo, pode me contactar pelo
Whatsapp: (21) 97567-568; pelo e-mail: bel.antigin@gmail.com ou pelo
Instagram:@isabelpires.artepsi.
Isabel, seu texto fez me lembrar do tempo que estou sem dobrar!!! Quando gestora Taurus inclusive, faziam parte de nossas reuniões. Obrigada! Belíssimo o seu texto. Senti me inspirada
ResponderExcluirQue bom que se inspirou, Milena! Volte a dobrar e dar asas à imaginação! Beijos
ResponderExcluirIsabel,
ResponderExcluirParabéns por esse texto tão rico em detalhes, informações e inspirações.
Trouxe um despertar do meu lado oriental e muitas memórias relacionadas ao origami, como o dobrar um aviãozinho de papel para competir e ver qual voava mais longe, a amiga que fez e distribuiu seus tsurus a todos os participantes durante um curso sobre a aposentadoria, meus brincos de tsurus miniaturas, a visita ao Museu de Origami de Zaragoza na Espanha com suas várias esculturas em dobraduras e recentemente uma vivência arteterapêutica com a construção de um barco de papel.
Taí, mais uma carta na manga, dentre várias que eu já possuo !
Bjs, Claudia Abe
Que memórias lindas, Claudia! Obrigada por compartilhar! Bjs
ResponderExcluirIsabel, que texto leve e cheio de conteúdos interessantes. Gostei muito das aplicabilidades em Arteterapia. Realmente é uma técnica que nos remete à infância
ResponderExcluir, às brincadeiras! Aceito demais o convite e faço outro: Que tal uma vivencia com esta técnica? Parabéns pelo texto e gratidão por compartilhar !
Tânia querida obrigada! Convite aceito. Só aguardar. Bjks
ResponderExcluirIsabel, gostei muito do seu texto. Grata por sua generosidade em compartilhar essa técnica bonita e delicada, com uma gama de nuances a serem trabalhadas nos settings terapêuticos.
ResponderExcluirObrigada, Sandra! Se usar a técnica, depois me conta como foi. Bjss
ResponderExcluirAdorei o texto, Isabel! Muito útil para nós, arteterapeutas e muito bem fundamentado! Heloisa de Lucca
ResponderExcluirObrigada, Heloisa! Que o origami possa fazer parte de seu trabalho arteterapêutico. Beijos
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