Por Mercedes Duarte - RJ
duarte.mercedes@gmail.com
Esse trabalho - parte
sequencial do texto “Diálogos entre Arte e Tarô: uma introdução” publicado na
semana passada - é o primeiro dos 22 textos que trarão reflexões sobre os 22
arcanos maiores do tarô em diálogo com aspectos da arte, sejam técnicas,
movimentos artísticos, obras ou biografias de artistas. O intuito desse diálogo
é o de proporcionar reflexões propositivas, possibilidades terapêuticas, que
permeiam esses elementos em diálogo, inspirando assim a ampliação do repertório
arteterapêutico.
Nesse texto
trarei a técnica pictórica do gotejamento (ou drip painting) e a técnica, e também corrente artística, Action painting, para dialogar e
possibilitar uma aproximação terapêutica com o arquétipo do Louco, arcano de número
zero.
O
Louco – Arcano 0
O Louco pega a
sua sacolinha e vai para o mundo. Experimenta seu trajeto com leveza, entrega e
disposição a aventurar-se. Não possui rotas planejadas, tampouco conhecimento
prévio das experiências que estão por vir. Sua bagagem é pequena e leve, deve
haver somente o necessário, ou menos que isso. No tarô de Smith e Waite, o Louco
parece bailar à beira do abismo, desprovido absolutamente de preocupação.
Talvez não perceba que está a um passo de desabar, mas seu cão, que pode
representar sua parte instintual, avisa-lhe e preserva-lhe. Já no tarô de
Marselha ele não se encontra em um abismo, mas seu cão parece advertir-lhe, em
vão, de que deve evitar o caminho. Desatentamente ele segue, apesar do animal
rasgar sua calça para impedi-lo.
O
número zero em sua própria grafia não possui início ou fim, em termos numéricos
não possui valor, portanto, o Louco pode tanto estar no início, no meio, quanto
no fim de sua Jornada. Assim como o Coringa (o Louco preservado em nossos
baralhos de entretenimento), que transita em qualquer posição sequencial das
cartas, o Louco também teria essa habilidade, de ter passagem livre e ser um
mobilizador dos outros arcanos do tarô. Assim, em algumas abordagens (BANZHAF,
2011; NICHOLS, 1997), ele é representado como o herói que inicia uma jornada e
atravessa todas as etapas, cada qual representada pelos demais arcanos.
O Louco, em seu
aspecto solar, representa o desapego da necessidade de controle e do
enrijecimento normativo. Inspira a aventura, a permissão de viver e desfrutar
de novas experiências, a entrega em determinada direção, de modo livre, leve e
pleno. Entretanto, esses aspectos em desequilíbrio, podem incidir em irresponsabilidade,
falta de comprometimento e de lucidez. Por outro lado, esse arcano pode colocar
em evidência a noção de normalidade, aquilo que foge à curva e se torna
“loucura”. Ele poderia trazer a reflexão tão cara a Michel Foucault, em
História da Loucura (2007), e a tantos outros filósofos e sociólogos que
questionaram os padrões sociais de normalidade, apontando para os processos de
construção desses modelos e de suas transformações ao longo da história,
colocando em perspectiva o quanto esses padrões enrijecidos podem ser excludentes
e nocivos para uma grande parcela da sociedade.
Como bufão, representado no tarô de Marselha com roupas do bobo da corte, em uma sociedade de corte, pautada na desigualdade, ele parece ser o único a ter a permissão de questionar o rei com suas artimanhas risíveis.
Drip Painting, a Action Painting e o Louco
O automatismo,
que inspira o drip painting como
veremos, é um método que surge no movimento artístico dadaísta (1916) cuja
intenção é não ter intenção ao executar a obra, ou seja, existe uma busca pelo
rebaixamento do controle consciente, em que ações espontâneas e automáticas, ou
marcas resultantes do acaso, são
necessariamente parte do processo da construção de uma obra artística. O
automatismo foi aplicado em diferentes estilos artísticos, seja na construção
de um poema, de uma performance ou de um trabalho plástico.
O drip painting, ou gotejamento, por sua
vez, é uma técnica de pintura com bases no automatismo, que foi utilizada pelo
dadaísta Max Ernst (1891-1976). Em suas obras, The Bewildered Planet (1942) e Young
Man Intrigued by the Flight of a Non-Euclide an Fly (1942-1947), Ernst
pendurou um cone furado cheio de tinta, sobre uma tela posicionada
horizontalmente, produzindo formas circulares com o balanço do objeto. Muitos
outros artistas lançaram mão do dripping,
seja por meio da utilização de pincéis ou do derramamento da tinta a partir do
próprio recipiente, mas foi o norte-americano Jackson Pollock (1912-1956) que ficou
conhecido por seu uso.
O dripping ganha expressão na corrente
artística, também considerada uma técnica pictórica, Action painting, ou Gestualismo, que é associada ao movimento do
Expressionismo Abstrato norte-americano, desenvolvido, por sua vez, em inícios
da década de 40 nos Estados Unidos. A Action
painting teria suas origens no movimento artístico do Surrealismo, mais
especificamente sob influência das pinturas de André Masson (1896-1987), que
lançava mão do automatismo e algumas vezes do dripping. De acordo com o crítico de arte Giulio Carlo Argan (2006),
para Masson “a matéria da pintura não é um meio, é uma realidade viva e
orgânica com que o artista se engalfinha” (p.621). Essa postura passional e
espontânea do artista no processo de execução da obra tornou-se constitutiva da
Action painting.
Alguns dos
artistas da Action painting
utilizavam em suas obras o dripping
por promover a liberdade do movimento na execução da arte pictórica. Em geral
as telas eram de grande porte, o que possibilitava o amplo movimento do artista
em torno da tela, ou mesmo sobre a tela, como fazia Jackson Pollock.
Transformavam a realização da obra em uma dança digna de um palco, onde o
artista expandia seus movimentos descarregando uma tensão acumulada (ARGAN,
2006).
Argan (2006)
define de modo elucidativo a Action painting
levando em consideração os movimentos algo catárticos de Pollock:
Não projeta o quadro, mas prevê um modo de comportamento: sabe, por exemplo, que vai se colocar em frente à tela, mas irá girar em torno, subirá em cima para estar sempre dentro da pintura que está fazendo; sabe também que o ritmo das cores irá excitá-lo gradualmente, irá forçá-lo a um movimento cada vez mais intenso e frenético, até que seja a pintura in fieri a impor-lhe seu ritmo, assim como o ritmo da dança acaba por se assenhorar do dançarino e por dominá-lo. As situações visuais que terá que enfrentar serão sempre novas, imprevistas: tudo consiste em manter o ritmo, bastaria um passo em falso e seria rompido o nexo que faz o pintor e sua pintura viverem juntos, fisicamente (...). Não há uma chave de leitura, uma mensagem a decifrar na pintura de Pollock: na experiência da pintura nada pode ser retirado e utilizado na ordem social, assim como nada da ordem social pode passar para a pintura. É uma ação não-projetada numa sociedade em que tudo é projetado (...) é o momento do mal-estar e da revolta numa sociedade da ordem e do bem-estar (p.622-623).
Pollock pintando. Imagem de https://gastv.mx/28-de-enero-nace-el-pintor-jackson-pollock/
Esse movimento
expansivo, essa dança improvisada, se assemelham aos movimentos do arquétipo do
Louco que de forma espontânea e sem um planejamento prévio inicia sua
caminhada, confiante, a partir de um impulso impensado, não se preocupando com
os ditames sociais, com seus rótulos ou enquadramentos. O Louco está à beira,
acima, e por que não à margem? Ele não possui um lugar fixo na ordem social, ou
melhor, na ordem dos arcanos, assim como o coringa, ele tem passagem por
diferentes posições, mas não se apega a elas. Em sua caminhada, mesmo quando à
beira do abismo, ele parasse flutuar ou dançar, sem se preocupar com um
possível deslize, ele se entrega aos movimentos da vida sem relutância, sem
medo ou apreensão. O louco possui uma aura brincante, advinda da própria imagem
de bufão, que pode ser provada, portanto, pela realização de uma pintura por
gotejamento que experimenta a queda divertida e despretensiosa das gotas e fios
de tinta na tela ou no papel.
Como já mencionado, o Louco representa o momento zero, o instante anterior à criação, ou o final dela, quando encontramos a inteireza. Tal como o Uroboros, a serpente que engole sua cauda, o louco expressa simbolicamente o início e fim da jornada. Essa inteireza, associada a um estado inconsciente natural (NICHOLS, 1997), pode ser vislumbrada em estados meditativos alcançados através, tanto da ausência de movimentos, quanto mediante a movimentos - intuitivos, espontâneos e continuados - de liberação de energia, tais como são realizados na meditação ativa difundida no Ocidente por Osho.
Proposta Terapêutica
Considerando a Action painting uma técnica cujos
resultados se assemelham aos resultados da meditação ativa, como, por exemplo,
a descarga das tensões, compreendo o dripping
(o gotejamento), assim como os movimentos acionados pela Action painting, técnicas expressivas pertinentes para o setting terapêutico quando necessário
evocar o contato com as habilidades do Louco. Portanto, acionar essas técnicas
pode ser um recurso eficaz nos processos de rebaixamento de controle; de expansão;
de entrega e de liberação dos bloqueios, memórias e emoções represadas.
Um importante
elemento dessas técnicas, para o alcance terapêutico proposto, é o material utilizado:
a tinta. A tinta por ser um material líquido, ela convida o experienciando a
soltar o controle, a permitir a passagem fluida do material, a liberar junto
com a tinta aquilo que está contido e precisar emergir.
Abaixo segue uma
imagem de um dos trabalhos realizados na oficina do Louco da Jornada
Arteterapêutica Arte e Tarô concebida por mim. Nesse trabalho sua autora diz
sobre ter liberado um bicho que a imobilizava se alimentando de seus medos.
Esse processo é parte de um movimento de liberação de tensões - possibilitado pela vivência em que o dripping teve papel central - em que a imagem, ao dialogar diretamente com inconsciente, traz reflexões profundas a respeito daquele conteúdo psíquico que emerge, possibilitando, assim, seu reconhecimento e posterior elaboração.
Referências Bibliográficas
ARGAN, G. C. (2006). Arte Moderna: do Iluminismo aos Movimentos Contemporâneos. Trad. Denise Bottmann, Federico Carotti.10ª Reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras.
BANZHAF, Hajo (2011). O Tarô e a Viagem do Herói: A Chave Mitológica para os Arcanos Maiores. Trad. Zilda Hutchinson Schild Silva. Editora Pensamento: São Paulo.
FOUCAULT, M. (2007). História da loucura: na idade clássica. (8a ed.). Trad. J. T. Coelho Neto. São Paulo: Perspectiva.
NICHOLS, Sallie (1997). Jung
e o Tarô: Uma Jornada Arquetípica. Trad. Laurens Van Der Post. Editora
Cultrix: São Paulo.
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Sobre a autora: Mercedes Duarte
Excelente texto e proposta. Parabéns!!!
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