Por Silvia Quaresma
Abandonando a extensiva tarefa de
explicar a diferença entre Artesanato e Arteterapia, busco neste texto mostrar
a interface entre dois conceitos tão próximos em sua essência e ao mesmo tempo
tão distantes em seus objetivos e resultados.
Meu trabalho de pesquisa, ao longo de vinte
e oito anos como artesã, possibilitou tecer reflexões, a partir de uma visão
abrangente, sobre o fazer artesanal. O
conceito que a palavra “artesanal” adquiriu ao longo do tempo, como sendo “tudo
aquilo que é feito com as mãos”, se torna muito simplista diante da perspectiva
de que há uma estreita ligação entre executar e sentir.
A habilidade exigida pela técnica
artesanal, a necessidade da perfeição, a busca constante pela estética encontra
seu contraponto na criatividade livre e descompromissada, cujo foco é a
interiorização.
O processo criativo tem enfoques
diferentes, quando observado pelo Artesanato ou pela Arteterapia. O primeiro
determina apreender técnicas de uso comum, enriquecidas por habilidades
individuais. Já a Arteterapia, liberta de fatores limitantes, utiliza e vê o
processo criativo como facilitador, como meio para exteriorizar o que de mais
interiorizado possa existir. Sobre o ato criativo:
Criar
é, basicamente, forma. É poder dar uma forma a algo novo. Em qualquer que seja
o campo de atividade, trata-se, nesse “novo”, de novas coerências que se
estabelecem para a mente humana, fenômenos relacionados de modo novo e
compreendidos em termos novos. O ato criador abrange, portanto, a capacidade de
compreender; e esta, por sua vez, a de relacionar, ordenar, configurar,
significar (OSTROWER, 2014, p.9).
O objetivo é ampliar o olhar do artesão, a partir da
Arteterapia, para que ele possa ampliar seu olhar e perceber que as técnicas
artesanais transmitidas por gerações, por vezes enrijecidas e endurecidas podem
dar lugar ao fluir de ideias e sentimentos e que o "customizando
emoções" do artesanato dá lugar ao “conhecendo emoções” na Arteterapia.
O local escolhido para a realização das
atividades foi uma instituição beneficente de São Paulo, cuja finalidade maior
é o desenvolvimento integral das potencialidades humanas, por meio da
assistência à criança, ao adolescente, ao jovem e ao adulto com deficiência
intelectual.
A Instituição conta vários trabalhos realizados
por voluntários, entre eles um espaço para execução de peças artesanais chamado
de “Cantinho do Artesanato”, formado por voluntárias e por mães cuidadoras de
atendidos do local. Dentre os objetivos do grupo está o aprendizado de técnicas
artesanais e sua reprodução, assim como a execução de peças para
comercialização em eventos promovidos pela Instituição, visando angariar
fundos.
A excelência exigida pelo artesanato
satisfazia parte desse grupo; entretanto as cuidadoras pareciam buscar ali algo
além, talvez alento a uma rotina conturbada pelo excesso de afazeres, talvez
uma forma de amenizar as preocupações incessantes, talvez o aprendizado de um
novo olhar. O Artesanato, pura e simplesmente não atendia a esta demanda e, por
vezes, frustrava, aborrecia e irritava enquanto exigia uma beleza não
contemplada pela situação de vida daquelas mulheres.
Notou-se, neste momento, a necessidade
de trazer a Arteterapia para aquele contexto. Dessa forma, novo projeto
implantado e nomeado “Cuidando do Cuidador” que passou a funcionar em dia e
horários diferentes.
Optou-se por “Cuidar do Cuidador”, por
entender que a sociedade cobra destes comportamentos equivocados – como doses
excessivas de coragem, renúncia, desapego – o que, muitas vezes, o distanciam
de um cuidar com discernimento e equilíbrio.
O objetivo do processo arteterapeutico
foi o de fortalecer a autoestima e a autoconfiança, valorizando a importância
do equilíbrio emocional. Neste percurso, notou-se nos participantes uma
diminuição das manifestações de ansiedade, irritabilidade e agressividade,
consequente amenização do estresse.
Realizado entre os meses de março e novembro
de 2018, o processo teve trinta e quatro encontros. Selecionei dois, nos quais
pode-se facilmente enxergar uma interface entre Artesanato e Arteterapia
O primeiro encontro fazia parte do bloco “Redução do
Estresse e da Ansiedade” e tinha como objetivo possibilitar ao participante manter
o foco no presente, no que se estava realizando. De acordo com Santesso (2015,
p.91): “Objetivo, remeter os participantes à consciência de que somos nós que
criamos a nossa própria realidade”. A atividade foi nomeada “Tecendo a vida: entrelaçando experiências –
Tear de gravetos”
Foi sugerido aos participantes que escolhessem, como suporte, um
graveto que poderia ter espessura fina ou grossa. Depois, deveriam montar os fios
na posição vertical, representando situações trazidas pela vida, para, então, tecer
entre eles, buscando a solução dos problemas. O resultado, o desenho formado
pelos fios, a trama que eventualmente surgisse, representaria formas de como se
contornar situações e o que escolher em tais situações (escolha os fios).
Sobre a possibilidade de
escolhas:
Muitas pessoas nutrem sentimentos que causam sofrimento e muita dor por acreditarem que sua realidade é prejudicada por elementos externos e alheios, porém, mesmo que estes elementos existam cabe somente a nós mesmos tomarmos a rédea de nossos destinos e tecermos nossos caminhos sem parar um minuto como se fosse uma teia de aranha. (SANTESSO, 2015, p.92).
O resultado foi inusitado: o montar
despretensioso em um tear improvisado que permaneceu longe de regras
especificas de tecelagem e não trouxe a peça perfeita e sim a exteriorização de
sentimentos.
Fonte: arquivo pessoal
O segundo encontro fazia parte do bloco
“Resgate das Brincadeiras Infantis”. Seu início foi uma “viagem no tempo”, na
qual os participantes foram convidados a lembrar das regras do jogo Cinco Marias.
Durante a atividade, foi estimulado o contato com o feltro, cuja maciez era “quase um carinho”, conforme depoimento. Surgiram dificuldades em colocar o fio na agulha, em escolher a linha que combinasse formaram. Mas, em pouco tempo, tudo isso se tornou detalhes que contribuíam para execução. Aos poucos, os participantes passaram a relatar que cada ponto despertava uma lembrança:
O trabalho delicado e minucioso do “ponto por ponto” ajuda-nos a redimensionar a compreensão do tempo que deve-se destinar o trabalho criativo, e a paciência para ver pequenos resultados decorrentes de um lento processo, feito de pequenos passos (PHILIPPINI, 2018, p.65)
Atividade “Cinco Marias”
Fonte:
arquivo pessoal
A observação do resultado também surpreendeu.
A preocupação com o cabamento deu lugar à simples possibilidade de jogar, ao
prazer de ver os saquinhos jogados e à alegria ao pegá-los.
Foram anos dedicados ao Artesanato e
um caminho que parecia belo pois supostamente era enfeitado com as técnicas
ensinadas. Muitos profissionais surgiram, muito tempo foi valorizado. Lidar,
falar e ensinar era fácil, afinal o fazer de forma manual, o fazer com as mãos
nasceu junto com o homem e a arte sempre esteve presente.
Posteriormente, a Arteterapia surge
com seu olhar peculiar: o olhar para dentro. O ato criativo, interiorizado em
sua plenitude, valoriza o que o ser humano tem de mais sagrado: si próprio.
Todos os participantes do processo aqui
descrito relataram amadurecimento pessoal e a sensação de terem melhorado suas
atitudes. É importante para o cuidador ter um tempo para olhar para si, enxergar-se
no mundo, sentir que suas necessidades são autênticas, reais e merecem atenção.
Ter um espaço para si é uma grande vitória. Também é importante poder enxergar
o outro, enxergar o problema do outro e estar fortalecido para auxiliar, sem
mais o viés da vitimização:
Os
objetivos sociais destas terapias em grupo favorecem o reconhecimento da
dimensão simbólica presente na relação com o outro, as qualidades humanas
positivas e negativas e o aumento da tolerância e paciência para com a
dificuldade dos outros indivíduos, desenvolvendo sentimentos de companheirismo,
intimidade, satisfação, identificação, semelhança, compreensão, esclarecimento,
apoio, proteção e ajuda (SANTESSO, 2015, p.25).
Sair
vitorioso é poder sair das ideias pré-concebidas, das regras impostas, do modo
correto de fazer. É ganhar da estética, da beleza pela beleza, da perfeição
exigida por um mundo imperfeito. É ganhar de si mesmo. E para que se siga em
frente, enfrentando o que vier, só resta viver. Viver de forma criativa:
A
criatividade é a essencialidade do humano no homem. Ao exercer o seu potencial
criador, trabalhando, criando em todos os ambitos do seu fazer, o homem
configura a sua vida e lhe dá um sentido. Criar é tão difícil ou tão fácil como
viver. E é do mesmo modo necessário (OSTROWER,1987, p.166).
Viver pode sim
ser fácil ou difícil; que se siga, então, customizando emoções!
Bibliografia
OSTROWER, F. Criatividade e Processos de Criação. 30ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2014.
PHILIPPINI, A. Afinal, o que é Arteterapia? Imagens da Transformação. Pomar, 1998.
______. Linguagens e Materiais Expressivos em Arteterapia: uso, indicações e propriedades. 2ª ed. Rio de Janeiro: Wak, 2018.
SANTESSO, W. A. N. Técnicas de Oficinas Expressivas: a Arte
como forma de ressignificação. São
Paulo: Edição do Autor. 2015.
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Sobre a autora: Silvia A. S. Quaresma
Arteterapeuta
Graduada em
Letras
Pós-Graduada em
Finanças
Pós-Graduada em
Arteterapia e Criatividade
Professora
especialista de artesanato
Idealizadora do
Projeto Customizando Emoções –Interface entre Artesanato e Arteterapia
Idealizadora de
Othila Arteterapia em Ação
Coordenadora de
Grupos de Arteterapia em Instituição para cuidadores e voluntários
Atendimento
individuais e em grupos em Arteterapia
Parabéns, Silvia pela riqueza deste texto. Está linha tênue que difere o artesanato da Arteterapia é muito singular. A leitura de ambos os textos trouxe memórias do por quê decidi por aprofundar esta pesquisa para além do artesanato: justamente por perceber que algo a mais poderia ser oferecido às pessoas do curso que fazia na época. E mais uma vez, através do seu relato, foi possível reafirmar a potência da Arteterapia no contexto e sob a ótica de atividades artesanais. Gratidão por nós presentear com suas experiências! Tânia Salete - Caminhartes.Arteterapia
ResponderExcluir"Ser vitorioso é sair das ideias preconcebidas"está frase pode salvar vidas! Parabéns Sílvia. Beatriz Coelho
ResponderExcluirSilvia,
ResponderExcluiressa parte 2...não tem como eu não me "incluir" nela, pelo menos emocionalmente. Afinal de contas, estávamos nós, juntas e com mais 2 amigas, fazendo parte da equipe. Adorei ler sobre os 2 encontros e relembrar o nosso projeto lá na instituição. Foi um aprendizado e tanto, né ?!
Texto excelente e muito esclarecedor!!!
Um forte abraço, Claudia Abe