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segunda-feira, 14 de outubro de 2019

TRANSDISCIPLINARIDADE: A ARTETERAPIA ATRAVESSA OS 12 PASSOS


Por Paulo Antunes - RJ

contato@ateliedoself.com


O Processo Alquímico

A ARTETERAPIA ganha espaço no universo terapêutico. Porém a aplicação de métodos arteterapêuticos na abordagem, tratamento e manutenção da abstinência às drogas, DROGADICÇÃO (dependência química), ainda carece de reconhecimento e sistematização. Praticamente, não existem arteterapeutas especializados em reabilitação de ADICTOS (dependentes químicos). Até mesmo encontrar literatura específica como referência para trabalhos e pesquisas é navegar sem bússola. Mesmo as clínicas que anunciam “trabalhos de arteterapia”, na grande maioria, não sabem sequer o que é ARTETERAPIA. Não se trata aqui de premissa, mas de uma realidade. Então, vamos escrever...

Lendo artigos de arteterapia, me deparei com a seguinte ideia de Ângela Philippini sobre “Transdisciplinaridade e Arteterapia”: “Parece-me que, quanto maior o afastamento da práxis arteterapêutica, maior também será a ênfase na tentativa de vincular arteterapia a uma única área de conhecimento. Mas aqueles que estão realmente envolvidos com o dia-a-dia da prática arteterapêutica sabem, de forma visceral, que o campo é transdisciplinar.” ¹
Pensei imediatamente nas clínicas, centros de reabilitação, comunidades terapêuticas que cuidam de adictos e adictas, sejam de internação ou ambulatorial. E na “profecia” de que trabalhar com adicção é trabalhar a frustração. E na massificação de tarefas terapêuticas sem o aproveitamento da ludicidade que ocupa parte da psique do adicto. E no uso abusivo de medicamentos para tratar de pacientes que apresentam comprometimento em laços afetivos, hábitos e comportamentos, mais do que nas esferas cognitiva e psiquiátrica. E nos baixos índices de adictos que se mantêm em recuperação, ou seja, a enorme maioria que recai mesmo após meses internados.

E lembrei-me do “Método Minnesota e os 12 Passos”, que teve origem no Estado de Minnesota, capital Sant Paul, ao norte dos EUA, por isso recebeu este nome e é utilizado na grande maioria das instituições com este fim.

Ora, o “Programa dos 12 Passos” é baseado essencialmente em mudanças de paradigmas, em transformações comportamentais, respeitando a individualidade de cada paciente que aceita o tratamento. Começou em 1935, com o surgimento do AA (Alcóolicos Anônimos), pelos seus idealizadores Bill e Bob, e deu origem ao NA (Narcóticos Anônimos), AL-ANON e NAR-ANON (familiares e amigos de compulsivos), CCA (Comedores Compulsivos), DASA (Dependentes de Amor e Sexo) e várias outras organizações anônimas que ajudam efetiva os adictos de toda natureza e seus familiares.

Estas ideias reverberaram em minha cabeça por anos. Acompanhavam-me em clínicas por onde trabalhei, congressos, workshops, simpósios, curso de pós-graduação. Até que fui convidado pelos Narcóticos Anônimos para criar, produzir e montar peças de teatro juntamente com os membros de NA. A partir daí, o convívio com aqueles adictos, o empirismo na aplicabilidade do programa foram transformando a minha percepção dos 12 Passos e a necessidade de uma abordagem mais dinâmica veio com folheto “Uma Outra Perspectiva” - de Narcóticos Anônimos:  Se pudermos chegar a um acordo do que não é adicção, então o que ela é talvez nos surja com maior clareza.”, mais adiante fala que “Ação Criativanão é adicção, “embora seja um esforço interno de reconstrução ou de reintegração das nossas personalidades fragmentadas ou em desordem.” Pronto. Eureca! Ou melhor, Alquimia: os 12 Passos com Arteterapia!

Arte, Terapia e Ação



Minha teoria é: se descobrir o que bloqueia uma pessoa, poderá também achar a contraparte mitológica para essa dificuldade de passagem de uma etapa para a outra.” Joseph Campbell. ³  Adictos são bloqueados. “Parece que nós, adictos, tropeçamos em algum ponto desse percurso. Parece que nunca alcançamos a auto-suficiência que os outros encontram.” 4 , Narcóticos Anônimos. Essa ideia vai de encontro aos conceitos da Psicologia Analítica de Carl Jung e, à luz destes, pode ser analisada. Em 1934, Carl Jung escreveu para Bill Wilson, criador dos 12 Passos, e prognosticou: “... você (Bill) já adquiriu uma visão superior do problema do alcoolismo, bem acima dos lugares comuns que via de regra, ouve-se sobre ele (alcoolismo).” 5.

Diante desse aval do mestre e inspirado pelas palavras de Nise da Silveira “A palavra fracassa. Mas a necessidade de expressão, necessidade imperiosa inerente à psique, leva o indivíduo a configurar suas visões, o drama de que se tornou personagem, seja em formas toscas ou belas, não importa.” 6 , me lancei na transcodificação da literatura dos 12 Passos para a produção artístico-terapêutica, a ARTETERAPIA. O entendimento e a internalização do programa universal de Bill Wilson toma as formas das imagens e símbolos do inconsciente, através de técnicas e materiais artísticos diversos.

Os 12 Passos foram adaptados a mais de 30 irmandades anônimas para os mais variados tipos compulsivos. Primeiramente, possibilitam o indivíduo reconhecer a sua impotência diante do objeto da compulsão e da perda de controle da sua vida; em seguida, a admissão de um poder superior, individual ou coletivo, que acolha as suas vontades e a aceitação a novos princípios de vida. Daí, por diante, os Passos avançam na busca do autoconhecimento e finalmente levam o adicto à jornada da individuação, que perpassa por um processo de rendição, reconhecimento do eu individual, do outro e da sociedade; personas (máscaras), sombras, arquétipos e mitos. É imprescindível ao arteterapeuta o conhecimento profundo da matéria dos 12 Passos e dos processos psicocomportamentais dos adictos.

O fazer arteterapêutico na cena dos 12 Passos é a utilização de materiais e técnicas artísticas diversas, cada qual adaptada ao devido passo, respeitando o propósito e a proposta do passo, de acordo com a linguagem e natureza dos materiais e efeitos das devidas técnicas artísticas. Surgem com o fazer artístico imagens do consciente e do inconsciente de locais de difícil acesso da psique, com significados arquetípicos e mitológicos, como também aparecem figuras e formas da imaginação ativa. A percepção do terapeuta tem que estar focada no que se apresenta plasmado nas imagens produzidas pelo paciente, em consonância com as suas palavras, colocando também foco nas expressões do corpo, gestual e postura, que o acompanham. A manifestação do espírito artístico, em toda sua extensão – colagem, argila, pintura, mosaico, poesia, expressão corporal, fotos, recicláveis – é o grande protagonista desta obra juntamente com os 12 Passos de AA. O arteterapeuta estará lá para anuir, orientar e devolver para o paciente aquilo que é próprio da sua demanda psíquica.

Minha proposta é oferecer uma nova abordagem, outra perspectiva, que acate a demanda do adicto no mesmo nível de ludicidade e transcendência que os usuários, equivocadamente, buscam nos efeitos das drogas. E com arte e terapia revelar o verdadeiro potencial dessas pessoas, que sofrem com as drogas o que poderia ser transmutado em criatividade.

“Uma flor nasceu na rua!...
Uma flor ainda desbotada
Ilude a polícia, rompe o asfalto.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não esta nos livros.
                                                                                 É feia. Mas é realmente uma flor...
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.”
(Carlos Drummond de Andrade – A FLOR e a NÁUSEA)



BIBLIOGRAFIA
¹ Philippini, Ângela, Revista Imagens da Transformação, nº 2, 1995 - Artigo publicado originalmente no Livro Questões de Arteterapia. Universidade de Passo Fundo, RS
² Uma Outra Perspectiva. COPYRIGHT-1993 by NARCOTICS ANONYMUS World Service, Inc.
³ CAMPBELL, J. O Poder do Mito. São Paulo: Palas Athenas, 1990.
4 O triângulo da auto-obsessão. COPYRIGHT-1991 by NARCOTICS ANONYMUS World Service, Inc.
5 https://passeamensagem.wordpress.com/2013/03/29/carta-de-bill-w-a-carl-jung/
6 SILVEIRA, N. O Mundo das Imagens. São Paulo: Ed. Ática, 2001.

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Sobre o autor: Paulo Antunes

Formação: Arteterapeuta com especialização em Dependência Química e outras compulsões. Autor, ator e diretor de teatro.
Área de atuação/projetos/trabalhos: Paulo Antunes realiza atendimentos individuais e em grupo há 25 anos, tendo atuado durante este período também na Clínica Ana Café Núcleo Integrado de Psicologia e Psiquiatria (Barra da Tijuca/Recreio-RJ). Idealizador e sócio-fundador do Ateliê do Self (Niterói-RJ), onde realiza atendimentos individuais, cursos e oficinas e dirige o grupo "Teatro para Si". Professor da Pós-graduação e da Formação em Arteterapia da Clínica Pomar (RJ). Professor da Pós-graduação "Arte e Cultura na Saúde" da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Contato: (21) 996390881

15 comentários:

  1. Excelente reflexão! Concordo inteiramente com a teoria do tropeço nas passagens... E não somente em adictologia.

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  2. Excelente texto e proposta! Parabéns!

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  3. Arteterapia é uma ferramenta maravilhosa para ajudar na luta diária contra adicção.
    Parabéns Paulo pelo seu olhar diante dessa doença é pela iniciativa de levar essa proposta. "Os 12 passos salvam vidas"

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  4. O artigo me trouxe as lembranças da maravilhosa experiência de participação no curso 12 passos!! Simplesmente inesquecível ! Parabéns pelo trabalho Paulo!

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  5. Trabalhar a expressão e a ludicidade do adicto faz toda a diferença. Vai muito além da catarse. É o início ou reinício de tudo. Parabéns, Paulo.

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  6. Essa visão interdisciplinar se faz necessária no tratamento da dependência química a arte é o caminho para o tratamento de diversos males excelente trabalho

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  7. Adorei o texto e achei incrível conhecer um pouco mais sobre a arteterapia!
    Excelente artigo,de uma sensibilidade ímpar! Parabéns pelo dom de escrever e de cuidar!

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  8. Parabéns, Paulo! Maravilhoso o artigo! Seu trabalho sem dúvida faz diferença na vida de muitas pessoas.

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  9. Parabéns pelo artigo!

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  10. Muito bom,Paulinho!
    Fui internada 9 vezes.Essasinternações me trouxeram experiências diversas, quase sempre traumáticas. São prisões aonde o indivíduo não tem espaço para se expressar. Uma clínica ou outra de recuperação para dependentes químicos tem terapia ocupacional, mas nada que envolva 12 passos.
    Muito interessante teu trabalho. Precisa ser divulgado. As clínicas precisam se atualizar. De fato, é tudo massificante. A mim nunca trouxe outro sentimento que não fosse tristeza e revolta.
    O índice de recaídas pós internação é muito maior do que qualquer um possa imaginar. É altíssimo. Pra mim nunca funcionou, nem para quase todos que me acompanharam nessas jornadas.
    É preciso sim, novas alternativas. Essas clínicas, em sua maioria, parecem câmaras de tortura. É comum ver o adicto sair pior do que entrou.
    Me interessei. Me fala mais do teu trabalho. Esmiuça pra mim.
    Fico feliz com tua abordagem e também com meu tempo limpa. Hj completo 4 meses depois de tomar a decisão sábia e sincera de ser feliz e encontrar a paz. Consegui as duas coisas. Rio a toa, muitas vezes de mim mesma. Me acho divertida. Me curto.E não quero mudar isso. Sou feliz assim. Finalmente me encontrei e me aceitei.
    Vou te falar uma coisa: Durante esses 4 meses não fui a uma reunião. Comecei a observar que elas surtiam efeito contrário ao que eu buscava e sempre recaía. Se quero falar de mim , vou ao terapeuta e recorro a Deus, com quem passei a ter uma conexao incrível. Um milagre aconteceu em minha vida. Não há um dia sequer que eu tenha vontade de usar. Não esqueçamos que esta doença é espiritual também.
    Meu Deus me dá força e coragem para seguir em frente. Mas não vacilo. Conheço o Programa e o coloco em prática. Sinto que Deus, o Programa e a Terapia funcionam, mas frequentar uma sala não é pra mim. Estou falando isso porque sei que vc tem a mente aberta e talvez seja capaz de me entender. Qualquer outro adicto vai me julgar em relação a isso. Mas pra mim funciona. Hj posso dizer de coração que sou feliz e tenho paz.
    Sucesso no teu trabalho. Se precisar de mim, pode contar! Bj no coração

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  11. Acho realmente que o caminho é esse, paredes frias e brancas de clínicas não ajudam. excelente visão esta arteterapia!

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