"The Reckless Sleeper" René Magritte
Por Sueli Antonusso - SP
antonusso@gmail.com
DAS PEDRAS
Ajuntei todas as pedras
que vieram sobre mim.
Levantei uma escada
muito alta
e no alto subi.
Teci um tapete floreado
e no sonho me perdi.
Uma estrada, um leito,
uma casa, um
companheiro.
Tudo de pedra.
Entre pedras cresceu a
minha poesia.
Minha vida...
Quebrando pedras
e plantando flores.
(...)
Cora Coralina
A
ideia de escrever este segundo texto para o blog surgiu da minha experiencia
com imagens oníricas, imagens que sempre me instigaram a buscar significados.
Tenho imagens de alguns sonhos guardadas na memória, de outros, tenho registradas
no meu caderno de sonhos. Lembro de um sonho que tive numa fase de transição,
por volta da meia idade. Um momento de crise no qual buscava por outro caminho a
seguir. Nessa época estava insatisfeita com a profissão de Designer de
Interiores que exercia há 20 anos. Fazia terapia com uma psicóloga que
trabalhava na abordagem transpessoal e usava a técnica da imaginação ativa nos
atendimentos. No sonho, eu
estava levando minha filha para fazer a matrícula,
dela, no colégio. Atravessamos um viaduto a pé para evitar um cruzamento. Ao
chegar na secretaria da escola a matrícula não era para minha filha, mas para
mim. A secretária falou que eu não poderia fazer matrícula pois faltava cursar
uma disciplina. Fiquei indignada e aleguei ter diploma e colado grau. Perguntei
qual era a disciplina. Aí aparece alguém dizendo que era a psicologia.
Esse
sonho foi impactante e, com a ajuda da psicoterapia constatei, entre outros
conteúdos, que uma das questões indicava que havia algo a ser “revolvido” em minha
profissão. Entendi que era uma fase de transição, incertezas e mudanças e,
assim iniciei uma especialização em psicanálise.
Logo
que terminei a formação em psicanálise surgiu um sonho recorrente:
eu procurava, dentro de um condomínio, por uma
casa em construção que meu pai havia comprado para nossa família. O condomínio
era um lugar distante do bairro onde morávamos, as casas eram bonitas, havia
várias casas prontas e pessoas morando, mas a nossa nunca ficava pronta. Em
minhas visitas, ao local, eu subia ao sótão onde seria o meu quarto, mas o
local sempre estava escuro e fechado e eu me sentia frustrada por não conseguia
entrar.
Do
ponto de vista de Jung (2016) sonhos recorrentes podem constituir uma
“tentativa de compensação para algum defeito particular que existe na atitude
do sonhador em relação à vida; (...) Pode também, ser a antecipação de algum
acontecimento importante que está para acontecer.” (p. 62).
Durante
esse tempo, criei o Workshop de Decoração “A casa dos meus sonhos” - uma
vivência na qual mesclava decoração com psicanálise. Depois disso, tive o mesmo
sonho só mais uma vez, mas o sótão estava iluminado e eu pude entrar e me
apropriar do espaço.
Considero
importante ressaltar aqui que a intenção deste texto não é fazer análise nem
interpretação de sonhos, pois demandaria um estudo aprofundado que está muito
além do âmbito desta proposta.
Nessa
fase iniciei meu percurso em direção à Arteterapia, participei de grupos de
estudos e fiz uma pós-graduação em Arteterapia com embasamento na teoria
junguiana.
Dessa
forma, parte da teia tecida pelas imagens que apareciam em alguns dos meus
sonhos, entrelaçadas com a psicanálise, com a filosofia, costuradas com fios e
cores da vida e da arte foram formando minha teia de Ariadne. Além disso,
compreendi que a vida nos coloca diante de situações inesperadas que nos sensibiliza
e instiga a promover transformações surpreendentes.
Dando
continuidade à formação como arteterapeuta venho participando do ciclo de
palestras mensais sobre Arteterapia e História da Arte e grupo de estudos com
Eliana Moraes em São Paulo. O estudo sobre o movimento surrealista despertou
meu interesse e inspirou-me a usar as imagens criadas por Renê Magritte e
Salvador Dalí associadas às imagens oníricas trazidas pelos pacientes nos
atendimentos arteterapêuticos individuais. Utilizo os fundamentos da
psicanálise e da teoria junguiana como aporte teórico, tendo em vista que a
Arteterapia dialoga com diferentes abordagens em sua prática arteterapêutica.
Segundo
Moraes (2018),
as imagens oníricas surrealistas apresentam-se
como potente estímulo projetivo na prática da Arteterapia. Pois, assim como os
sonhos, impactam o espectador com a sensação de que são ao mesmo tempo
familiares e desconhecidas, causando estranhamento. (p. 152).
Os
surrealistas buscaram inspiração na teoria psicanalítica enfatizando o papel do
inconsciente na atividade criativa como meio de expressar o mundo inconsciente
do sonho e assim desligar-se das exigências da consciência lógica e racional de
vida cotidiana. A técnica de transposição de imagens entre os sonhos e a
realidade, característica do movimento surrealista, “possibilita-nos a
reprodução da técnica da associação livre da psicanálise, originalmente por
palavras, na associação livre por imagens, sendo essa outra forma do sujeito se
falar tão legítima quanto”, segundo Moraes (2018, p.148).
Caso
clínico
Eunice
(nome fictício), 44 anos, mulher aparentemente forte e inteligente, casada, mãe
de dois filhos adolescentes, trabalha na área financeira de uma empresa de
porte médio, trouxe o seguinte sonho:
Cheguei num lugar estranho onde havia uma
escada de cimento que tinha sido pintada de preto. Aí alguém apareceu e
perguntei quem tinha pintado e uma pessoa falou que foi um homem que tinha
saído para fazer o que ele gostava, que era aprender a trabalhar com terra.
Comecei a subir a escada e percebi que o homem não tinha terminado de pintar,
então fui subindo e pintando cada degrau. Quando cheguei no topo vi que tinha
acontecido uma demolição das paredes, tinha ficado só uma plataforma e restos
do entulho das paredes derrubadas, no chão. De repente aparecem três homens
tocando instrumentos vestidos com roupa colorida, como se fossem mexicanos,
sentados em cima de um caixão de defunto todo preto.
Após
ouvir seu relato, como sensibilização, pedi para Eunice fechar os olhos e entrar
em contato com as sensações do sonho. Após algumas tentativas ela disse não
conseguir sentir nenhuma sensação, “apenas um estranhamento” (sic). Sugeri que
Eunice desenhasse a imagem do sonho a qual também resistiu. Então, para
auxiliar o contato com as sensações apresentei algumas imagens de René Magritte
para facilitar a associação com as imagens do sonho, visto que a Arteterapia
possibilita a utilização de diferentes recursos expressivos.
Eunice
escolheu a imagem – “O domínio encantado IX (1953)”.
Imagem do sonho de Eunice
Depois
de um tempo observando a imagem, do quadro de Magritte, Eunice comentou que se sentia
como “a pessoa que está olhando de dentro da árvore” (sic)... “ela parece ter
uma base firme, que é o tronco da árvore, mas seu olhar está voltado para
fora...parece que fora, o ambiente é árido e rígido, dá um pouco de medo. Lá
atrás tem uma montanha em forma de águia que assusta, mas também desperta o
desejo de voar longe”. (sic).
A
partir dessa observação parece que Eunice começou perceber algumas das questões
que estavam “obscurecidas”. Então, sugeri a escrita criativa para expressar
seus sentimentos.
“Quero voar...
Quero voar, mas a terra
me segura com seus apuros.
Quero voar, mas a vida
me segura e sinto dor.
Quero voar longe, mas
meu voo é rasante.
O que me impede de voar
longe?
O medo da vida?
O medo da morte?
O medo da perda?
O medo do perdão?
O medo do medo?
O medo de ser?
O medo de vencer?
O medo de viver?
O medo de ser livre?”
Dessa
forma, Eunice pode entrar em contato com o sentimento de solidão e o medo de
uma provável separação devido ao divórcio iminente o qual queria evitar a todo
custo. A partir da imagem de Magritte, ela foi associando às imagens que
emergiram no sonho possibilitando o contato com as sensações imprecisas e incompreensíveis
imersas em seu inconsciente conseguindo aproximá-las da consciência e só depois
conseguiu desenhar uma imagem do sonho.
O
contato com o conteúdo desse sonho teve vários desdobramentos, inclusive a
elaboração de alguns lutos, um processo que já vinha delineando-se e que pode
ser trabalhado nos encontros seguintes usando diferentes recursos da
Arteterapia.
O
emprego da Arteterapia como recurso surpreende por sua riqueza de
possibilidades no setting arteterapeutico, favorece o acesso a camadas mais
profundas do psiquismo promovendo insigths e favorecendo a
elaboração de conteúdos inconscientes de forma mais amena e prazerosa.
Assim
venho construindo a minha trajetória, sigo, como Ariadne, tecendo a minha teia,
só que desta vez seguindo meus sonhos diurnos aceitando os desafios dos fios
que se entrelaçam formando nós e criam imagens surpreendentes a cada teia
tecida.
REFERENCIAS
JUNG,
C.G et al. “O homem e seus símbolos”. trad. Maria Lúcia Pinho. 3. ed. especial.
Ed. HaeperCollins. Rio de Janeiro, 2016.
Participação
no Workshop “Sonhos – Discursos da Alma”. Ministrado por Marisa Catta Preta.
Instituto Freedom. Carga horária – 8 horas.
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Sobre a autora: Sueli Antonusso
Arteterapeuta, com registro na AATESP – 453/0618. Especialista em Psicanálise e Orientação Profissional e Carreira pelo Instituto Sedes Sapientiae. Bacharel e Licenciada em Filosofia pela PUC-SP. Idealizadora do projeto “CICLOS – que idade a idade tem?”. Atua com atendimento clínico à jovens, adultos, idosos e grupos, com o foco voltado para a ressignificação da história de vida e o acolhimento de demandas em fase de finalização e/ou início de Ciclos, como: início da idade adulta, maturidade, transição de carreira e tantas outras que fazem parte dos Ciclos de Transição. Coordenação de oficinas de Formação e Capacitação para educadores da rede pública. Realiza palestras e cursos destinados ao desenvolvimento pessoal e realização do potencial criativo com o objetivo de incentivar a exploração do novo e encorajar a autonomia.
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