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segunda-feira, 2 de julho de 2018

O SENTIMENTO DO MUNDO: Drummond e o arteterapeuta




Por Eliana Moraes (MG) RJ 

“Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo”

Carlos Drummond de Andrade

O tempo de gestação deste texto iniciou-se na última semana de maio, às vésperas do dia 27, data em que foi marcado inicialmente o lançamento do livro “Pensando a Arteterapia”. Poucos sabem, mas ao longo do mês de maio eu trazia um peso no peito e não sabia o porquê. As pessoas me abordavam animadas sobre o evento tão esperado e estranhamente eu me esforçava para sorrir e dizer que tudo estava sendo preparado com muito carinho para aquele dia especial. Lá no fundo do meu íntimo eu me justificava que aquele sentimento poderia ser porque eu não estava realmente preparada para aquele momento. 

Porém, na quinta feira dia 24, para a minha “surpresa” recebi um telefonema da editora me informando que os livros estavam presos em São Paulo por conta da greve dos caminhoneiros que se iniciou naquela semana. Além disso, comecei a ouvir de pessoas queridas que estariam impossibilitadas de participar do evento pela dificuldade de locomoção e segurança. 

Apesar do susto, não foi uma surpresa. 
E ali pude compreender parte daquela sensação estranha que eu guardava intuitivamente. 

Neste momento, eu que já estava acompanhando os movimentos do nosso país naquela semana intensa, passei a prestar mais atenção em cada desdobramento daquela verdadeira paralisação, nos campos do coletivo e individuais aos quais tive acesso. Sem entrar no mérito político, mas emprestando meu corpo, percepções e sensações para aquele momento social tão emblemático. 

Afinal esta é a função do artista. Dentre a pluralidade humana, o artista é portador de uma sensibilidade singular para a percepção e compreensão da natureza, da vida e do cotidiano dos seres humanos e a partir dela, dá forma àquilo que vê (além). 

Passada a mudança de data do evento e toda a reorganização necessária com todos os envolvidos, continuei a ouvir aquele sentimento – que embora mais claro, não havia se dissipado. Foi aí, que graças às sincronicidades da vida, alguém “soprou no meu ouvido” o nome do livro “Sentimento do Mundo” de Carlos Drummond de Andrade. Poeta que tanto me identifico, até mesmo por ser um mineiro de alma e estilo que passou boa parte da sua vida no Rio de Janeiro e tudo que ele contém. 

Pessimismo: o poeta que denuncia 


“Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que se esteriliza os abraços...”

em Congresso Internacional do Medo

Dediquei-me à leitura e reflexão deste livro tão importante para a literatura brasileira. Terceiro livro de Drummond, que inaugura a “fase ideológica” do poeta, relacionando o eu e o mundo. Nesta fase, Drummond demonstra que percebeu o que está acontecendo no mundo e que vai lutar para que mais pessoas também entendam e saiam do estado de alienação. Publicado em 1940, este livro que traz 28 poemas, reverbera o contexto mundial e brasileiro dentre guerras e ditaduras. 

“O sentimento do mundo” deve ser lido com calma e atitude meditativa. Neste texto destaco fragmentos, e dois dos poemas que mais me tocaram e fizeram eco ao meu sentimento do mundo atual:

“Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
...
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.

Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.”

em Os ombros suportam o mundo

Mais uma vez, muito me identifiquei com Drummond, no momento em que se coloca como observador do mundo ao seu redor e através daquilo que lhe é mais caro, a poesia, investe em chamar a atenção de quem o pudesse ouvir. 

Nos dias atuais, basta assistirmos qualquer jornal (mundial ou local) para percebermos o quão estranho está o mundo em que vivemos. E não há como os artistas em sua sensibilidade passarem ilesos ao sentimento do mundo do século XXI. 

Chega um tempo que não adianta fugir ou entregar os pontos. Chega um tempo em que reconhecer a vida é um imperativo. A vida. 

Esperança: a busca de sentido


“Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.”

em Mãos Dadas 

No grupo de estudos que coordeno, estamos estudando Kandinsky, que tanto teorizou sobre a sensibilidade do artista. Temos refletido justamente sobre o arteterapeuta como participante desta sensibilidade, mas com o ofício de oferecer a arte para que cada sujeito dê forma aos seus possíveis dentro de um setting arteterapêutico. 

Percebemos o quão importante é que o arteterapeuta se reconheça como portador desta sensibilidade perante ao mundo e à humanidade. Que entre em contato com ela, a estimule, aqueça, pois a partir desta sensibilidade poderá abrir canais intuitivos e exercer com propriedade sua função de oferecer os materiais de arte e apresentar as propostas vivenciais – não a partir de seu próprio desejo, mas respondendo às demandas dos indivíduos do tempo presente. 

Sua matéria são “os homens presentes”, pertencentes a este mundo/país/cidade presentes e suas vicissitudes. Esta consciência colabora para que o arteterapeuta, que tem duas mãos e o sentimento do mundo, ofereça a arte como um “alimento” para a vida presente, pois segundo Kandinsky: 

Aquele que, entre eles, é capaz de olhar além dos limites da parte a que pertence é um profeta para os que o cercam. Essa multidão tem fome – muitas vezes sem que ela própria esteja consciente disso – o pão espiritual que convém às suas necessidades.” KANDINSKY

Caso você tenha se identificado com a proposta do “Não palavra abre as portas” e se sinta motivado a aceitar o nosso convite, escreva para naopalavra@gmail.com
Assim poderemos iniciar nosso contato para maiores esclarecimentos quanto à proposta, ao formato do texto e quem sabe para um amadurecimento da sua ideia.

A Equipe Não Palavra te aguarda!
Referências Bibliográficas:

ANDRADE, Calos Drummond. O sentimento do mundo. 
KANDINSKY, Wassily. Do Espiritual na Arte.
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Sobre a autora: Eliana Moraes



Arteterapeuta e Psicóloga. 

Especialista em Gerontologia e saúde do idoso e cursando MBA em História da Arte. 

Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".

Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 

Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia.
Nascida em Minas Gerais, coordena o Espaço Não Palavra no Rio de Janeiro.

3 comentários:

  1. Tania Salete,​ ​Fortaleza2 de julho de 2018 às 17:19

    Quanta percepção, quanta sensibilidade! Este texto é um convite à esperança, um convite à não desistência e uma alavanca para nos posicionarmos como "profetas e atalaias" da esperança, tendo a arte como eficaz instrumento de expressão de dores, conflitos e temores. Sejamos àqueles que oferecem "o pão espiritual" aos que clamam por saciedade da alma e a Arteterapia uma forma de ampliar nossa voz! Parabéns! Aprendendo contigo em todo tempo! Grata por compartilhar "mais alimentos saudáveis".

    Com carinho e saudades da convivência,

    Tania Salete

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  2. Sempre nos trazendo reflexões maravilhosas! Muito bom tê-la ao vivo em São Paulo, seus caminhos nos levam além. Bjs.

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  3. Cara Eliana! Você foi se apresentando a mim devagarinho... com cuidado e amorosidade e, hoje, devo dizer-lhe que fui capturada pela sua sensibilidade, amorosidade e pela arte em forma de poesia! Admiro-a pelo não-palavra, palavra não dita mas... bem-dita à nossa alma! Parabéns pela proposta e que possamos sempre "com-o-outro" nos regozijarmos "com-todos-os-outros" que em nós habita, trazendo esperança, crença e arte em nosso cotidiano. Adorei a presença de Drumond e sua poesia para este momento... beijos floridos e poéticos

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