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segunda-feira, 24 de julho de 2017

FENIX: PARA ALÉM DO CRACK – RESGATE DO FEMININO EM COMUNIDADE TERAPÊUTICA PARA MULHERES


Por Tania Salete - RJ, atualmente residindo em Fortaleza CE
taniasalete@gmail.com

Introdução:

            Historicamente a questão da drogadição era predominantemente masculina, tanto no Brasil quanto no exterior, entretanto a situação atual aponta outra realidade. O número de mulheres dependentes químicas está crescendo de maneira alarmante. Para exemplificar o fato, uma pesquisa realizada pela Secretaria de Desenvolvimento Social do governo de São Paulo constatou que o número de mulheres na região da “Cracolândia” praticamente dobrou em um ano: de 16% em 2016 para 34% em 2017, considerando que a pesquisa foi realizada em junho, ou seja, na metade do ano em curso.

            As pesquisas levantam outros dados importantes sobre a especificidade do tratamento voltado às mulheres. O público feminino é particularmente vulnerável ao uso de substâncias psicoativas que criam dependência, sobretudo por causa das questões hormonais, além de fatores sociais e comportamentais associados. No caso das mulheres, a quebra dos vínculos familiares, as questões relacionadas a violência doméstica, abuso de toda ordem, sobretudo sexual, o medo da perda dos filhos são fatores que contribuem para que haja maior resistência e adesão ao tratamento e possível recuperação.

Relato de Caso: Fênix, amor maior que o crack
Fênix* vivia no interior, família simples, a única mulher entre muitos irmãos. Desde pequena buscava se sobressair neste universo masculino, mantendo-se alerta, competitiva e nível de igualdade. Aos 15 anos, a família resolveu “vendê-la” para um homem mais velho, como pagamento pelo arrendamento da terra onde viviam. Fênix não concordou e resolveu fugir de casa. Veio para Rio de Janeiro, viver na cidade grande e se virar como podia. Foi trabalhar como empregada doméstica, mas logo se viu na condição de “escrava” da família. Pouco tempo depois estava na FEBEM, mas depois fugiu e foi morar numa comunidade e aos 18 anos conheceu um rapaz, porém foi abusada sexualmente e espancada. Ela o matou. Foi presa, condenada, cumpriu parte da pena e aos 23 anos retornou à comunidade e, em pouco tempo, já liderava uma quadrilha com 21 homens e uma “boca de fumo”. Ali conheceu o pai de seus dois filhos, mas segundo sua declaração: “Como era a única mulher naquele meio, tive que soterrar praticamente qualquer sentimento que demonstrasse fragilidade. O que começou como um ‘ganha pão’, passou a ser meu estilo de vida. A perversidade e a crueldade eram minhas marcas. Eu era respeitada e temida por conta das armas. Mas, ainda restava algum sentimento humano em mim, por causa dos meus filhos. Eu não queria que eles fossem atingidos pelo mundo em que eu vivia. Queria preservá-los de tudo aquilo”.
            Fênix pagava para cuidarem dos filhos, principalmente à noite, para que pudesse trabalhar em paz.  Materialmente supria as necessidades dos filhos, entretanto não conseguia ser carinhosa ou dar amor às crianças, embora estas insistissem que a mãe deixasse aquela vida porque era perigosa e poderia ser morta. Uma noite, Fênix quase feriu o próprio filho ao confundir a sombra dele com provável inimigo. Diante dos olhos assustados da criança, entendeu que era preciso parar e que não adiantava mais toda aquela vida louca.
            Milagrosamente, após um acordo, ( quem vive neste ambiente tem ciência que a possibilidade de sair “livre”/vivo deste círculo é nula) conseguiu sair daquele lugar,  deixar tudo para trás e cuidar realmente de seus filhos. Porém, Fênix sentia muita falta do poder, da adrenalina que a vida anterior proporcionava e para aliviar suas tensões, buscou as drogas. Só que desta vez, ela conheceu o crack. A partir deste episódio, Fênix foi perdendo o controle da situação, estava totalmente dependente da droga e já não cuidava mais dos filhos e nem de mais nada. Foi parar nas ruas, perdeu a guarda das crianças para o Conselho Tutelar e depois para o abrigo. Estava no fundo do poço, sentindo-se acabada. Mas recebeu ajuda e quis sair daquela escravidão. Foi para CT de mulheres.
Arteterapia: a arte do resgate
Segundo o psiquiatra Luiz Guilherme Ferreira Filho, do Caps AD, da Secretaria de Saúde Pública (Sesap) de Praia Grande/SP,  arte é neurociência, pela qual se alcança o inconsciente do paciente, colaborando para restabelecer o mecanismo de recompensa cerebral deturpado pela droga.  
“A Arte amplia o repertório de atuação do paciente. Ainda que não tenha talento, descobre que há outras formas menos nocivas de ter prazer.
Não é arte bela e nem feita para estar em galerias. É arte de resgate”.

            Quando conheci Fênix, era uma pessoa muito dura, bem masculinizada, não gostava de conversar, tinha um tom de voz agressivo, praticamente não sorria e não tinha nenhum cuidado com a aparência, embora isso fosse estimulado pela instituição.
Nas atividades de Arteterapia, no momento de compartilhamento, Fênix fazia questão de relatar sua situação anterior, o poder que exercia sobre os homens, como manipulava as situações a seu favor e sempre ganhava no final. 
            Em uma das atividades, após três meses de convivência na CT, abordamos o tema da autoestima,  autoimagem. A proposta era que elas deveriam “enfeitar” uma determinada imagem feminina da maneira que desejassem. Fênix, pela primeira vez em tanto tempo, teve oportunidade de acessar o distante mundo feminino, experimentar objetos e adornos que já não faziam mais parte de sua realidade. Aos poucos, foi se permitindo contemplar aquela imagem, enfeitá-la com adornos simples e até usou um batom bem clarinho. Um sorriso surgiu em seus lábios. No compartilhamento revelou: - “Não uso batom há muito tempo! Não gosto muito disso. Prefiro mais natural.

            Aos poucos, Fênix foi se desvelando, através do acesso aos materiais de arte, da crescente confiança que sentia em compartilhar parte de sua vida, tanto na equipe de trabalho, quanto no próprio grupo. Sentia-se livre para expressar suas emoções, a luta para vencer seus comportamentos adictos e a dificuldade em se relacionar com as outras companheiras. Em alguns momentos mais conflituosos durante a semana, houve a possibilidade no grupo para que Fênix se retratasse com alguém e restabelecesse um clima mais tranquilo no grupo e na própria instituição. Para nós, da equipe, era visível sua mudança, tanto no aspecto físico, quanto emocional: sentia-se mais segura, com autoestima mais equilibrada, entendendo melhor sua história, sobretudo em relação ao seu objetivo maior que era resgatar seus filhos do abrigo, ter condições de manter-se limpa e reconquistar sua condição de mulher e cidadã, capaz de gerir sua vida e de sua família.
            Em um dos últimos trabalhos que participou, em junho de 2016, confecção do quadro (colagem) e um caderno dos sonhos, ( Fênix manifestou seu desejo de encontrar um “homem de Deus, um amor verdadeiro”, pois nunca havia se apaixonado até então. Todos os seus relacionamentos anteriores, principalmente sexuais, foram sob efeitos da droga. Não sabia como se relacionar de outra forma.) Tinha  sonhos de viajar, voltar estudar e se formar,  de se casar, ter um marido que a amasse e que ela amasse também e principalmente  ter seus filhos de volta, ( resgatar e exercer sua maternagem** de fato),  reunir todos numa casinha, ainda que fosse simples.


            Nossos encontros duraram aproximadamente 18 meses e ao final deste tempo, Fênix já estava trabalhando fora da instituição. Havia conseguido provar ao Juiz e ao Conselho Tutelar sua plena condição de cuidar de si mesma e dos filhos. Com seu trabalho, já era possível pagar aluguel de uma pequena casa e agora seus filhos já estavam com ela, matriculados na escola e Fênix atualmente prepara-se para o ENEM em novembro.  Está namorando há mais de um ano e meio, ficará noiva em setembro e provavelmente seu casamento será no final deste ano.
A Arteterapia é uma ferramenta maravilhosa que possibilita que as pessoas se encontrem consigo mesmas, se percebam e resgatem sua essência e assim, contribui de maneira efetiva para restauração de pessoas que já se sentiam condenadas.
Fênix é um exemplo de alguém que lutou, que acreditou no amor e que os laços de mãe e filho podem sim tirar alguém do mais profundo poço.

* Fênix – nome fictício que adotei para esta mulher, pois como o pássaro mitológico, ela também ressurgiu das cinzas e da fumaça das pedras de crack para uma nova vida, com seus filhos e um novo e verdadeiro amor. 
** Gerar, gestar e parir é maternidade. Cuidar, amar, proteger, doar, ensinar é maternagem. Maternidade é instinto, maternagem é aprendizado. A maternagem é o útero das relações humanas.

Caso você tenha se identificado com a proposta do “Não palavra abre as portas” e se sinta motivado a aceitar o nosso convite, escreva para naopalavra@gmail.com

Assim poderemos iniciar nosso contato para maiores esclarecimentos quanto à proposta, ao formato do texto e quem sabe para um amadurecimento da sua ideia.

A Equipe Não Palavra te aguarda!
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Sobre a autora: Tania Salete


Graduação em fonoaudiologia, pós graduação em psicopedagogia. Especialização em Arteterapia pela POMAR, Rio de Janeiro, atuando com grupos terapêuticos e de apoio em casa de recuperação feminina e masculina. Atualmente residindo em Fortaleza.


Este é o segundo texto de Tania para o blog Não Palavra. Para ler o primeiro texto CLIQUE AQUI

9 comentários:

  1. Muito inspirador o texto e revelador do poder resgatador da arte na reestruturação de um projeto de VIDA. Parabéns Tania!

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    1. Obrigada, Luciana! É um privilégio participar de algo tão inspirador e restaurador! Feliz por esta chance de apresentar a potência da Arteterapia em uma área tão desafiadora!

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  2. Parabéns!! Tania por mais um excelente texto. Considero a ARTETERAPIA como valiosa ferramenta no processo terapêutico.

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  3. Tânia. Parabéns por esta bela experiência. Tenho acompanhado em minha prática arteterapêutica, pacientes ressignificarem suas vidas como a Fênix, sua paciente.

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  4. Comentário enviado por Arlem Maffra:

    O uso de drogas como o CRACK, ensina á mente do usuário, a pior das lições; como obter prazer através de atalhos químicos. Mesmo que isso custe coisas, dignidade, pessoas e a própria vida. A Arteterapia aplicada por Tânia Salete Moreira, como ferramenta na ajuda do tratamento, não só distraí a mente, atenuando as lembranças eufóricas do uso, como ajuda a reeducá-la, para voltar ao caminho da busca do prazer pela elaboração, esforço e paciência. Por experiência, tendo sido usuário de CRACK por quase 15 anos. Dos quais 7 como morador da cracolandia de SP.
    (Arlem Maffra- Escritor e Jornalista)

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  5. Tânia, Foi realmente uma das experiências mais marcante que vivenciamos através do acompanhamento com o grupo terapêutico na Cristolândia Feminina. Agora quando você vai alçar outro voo, nós estaremos continuando com o proposito de favorecer através de ações terapêuticas que muitas outras Fênix possam se fortalecer para dar os seus primeiros voos. Temos pela fé e um trabalho consciente o desejo de sermos parte deste processo de transformação. Feliz em ver que tudo que você vivenciou como parte desta equipe serviu para lhe dar a força de uma Fenix, que você possa agora, no reinicio de uma nova etapa de sua vida voar alto. Parabéns!

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  6. Obrigada, Janaína! Muito honrada em fazer parte.destz equipe e evidenciar a importância da Arteterapia como ferramenta eficaz e potente no resgate de pessoas em tais situações!

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  7. Que texto inspirador amiga... Quando conheci a arteterapia através de você, não imaginava o quanto ela era eficaz como uma ferramenta para ajudar a restaurar vidas. E que bom que existem pessoas como você,capacitada e pronta no cuidado com o próximo, você sempre me orgulha de ser sua amiga! Parabéns pelo seu trabalho que acompanhei tão de perto, sei que onde quer que você esteja fará diferença na vida daqueles que precisarem. Grande beijo!

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  8. Acho que será impossivel escrever o quanto suas palavras e suas atitudes como terapeuta e amiga fazem a diferença entre a realidade e o bem estar dos pacientes, e eu tive o privilégio de fazer parte um pouco do seu trabalho e admirar seu potencial. Parabéns amiga

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