Por
Flávia Hargreaves
fmhartes@gmail.com
Ilustração:
Flávia Hargreaves.
Tinta
acrílica aplicada com esponja e lápis aquarelado sobre papel schoeler 4R. Anos
90.
“Cada materialidade[1] abrange de início, certas possibilidades de ação e outras tantas impossibilidades. Se as vemos como
limitadoras para o curso criador, devem ser reconhecidas também como
orientadoras, pois dentro das delimitações, através delas, é que surgem
sugestões para se prosseguir um trabalho e mesmo para se ampliá-lo em direções
novas. De fato, só na medida em que o homem admita e respeite os determinantes da matéria com que lida
como essência de um ser, poderá seu
espírito criar asas e levantar vôo, indagar o desconhecido.” (OSTROWER, 1997, p.
32)
Este pensamento irá se desdobrar sobre a questão do que a autora
designou “imaginação criativa” que seria “um pensar específico sobre um fazer
concreto”. O imaginar criativo precisa levar em consideração a materialidade
com a qual trabalha. A partir desta afirmação poderemos colocar que se
estivermos tratando de materiais das artes plásticas como, por exemplo, o
papel, precisamos entender suas propriedades, sua cor, flexibilidade,
resistência, suas possibilidades e suas impossibilidades, o que não significa
seguir regras, mas sim ter consciência da realidade com a qual se está lidando.
Toda a ação sobre o material terá consequências.
Outra questão, ainda no que se refere aos materiais de arte, a autora
coloca que o material não é somente físico, “para o homem as materialidades se
colocam num plano simbólico [...].” (OSTROWER, 1997, p. 33) Tanto a matéria
como as formas carregam valores culturais, nos falam de uma época, de um lugar,
etc.
A autora faz um paralelo entre as potencialidades da matéria e as nossas
e nos diz que:
“[...] na forma a ser dada
configura-se todo um relacionamento nosso com os meios e conosco mesmo. [...] o
imaginar – esse experimentar imaginativamente com formas e meios – corresponde
a um traduzir na mente certas disposições que estabeleçam uma ordem maior, da matéria, e ordem
interior nossa. Indaga-se através das formas entrevistas, sobre aspectos novos
nos fenômenos, ao mesmo tempo que se procura avaliar o sentido que esses
fenômenos novos podem ter para nós”.
(OSTROWER, 1997, p. 34)
Determinantes da matéria:
possibilidades e impossibilidades de ação
Em Arteterapia sempre defendi a importância do conhecimento dos
materiais pelo profissional no que diz respeito às suas propriedades físicas,
ou seja, ao que seria determinante naquela matéria a ser manipulada e
transformada no setting. Observa-se
uma predominância da utilização dos meios plásticos, o que torna este
conhecimento fundamental. Conhecer os materiais na sua dimensão física irá
compor com os valores expressivos e culturais dos quais vem impregnada, um
conhecimento essencial para lidarmos com esta materialidade.
O conhecimento dos materiais não se limita a oferecer uma base para a
aplicação de técnicas de arteterapia, mas, ao contrário, oferece suporte para a
ampliação no uso dos materiais, sustentando o “estar ao lado” do cliente diante do “não
saber se vai dar certo”, permitindo as inovações e transgressões tão
fundamentais para a criação.
Houve muitas ocasiões em que meus clientes quiseram fazer algo
inusitado, e me perguntaram “e se eu fizer assim? vai dar certo?” e eu pude
responder “não sei, vamos descobrir”. Preciso abrir um parênteses: Certa vez, e
é importante que se compartilhe também os erros, me envolvi demasiadamente em
auxiliar o cliente na busca de soluções técnicas para uma proposta desafiadora
e fui chamada a atenção. O cliente me repreendeu: “Você está buscando soluções
pra mim!” Lição anotada. E, sim, ele estava buscando soluções para a própria
vida.
De qualquer modo, enquanto o arteterapeuta se sentir inseguro diante da materialidade
da sua prática ele não poderá criar este espaço seguro para que o cliente se
lance na experimentação. Quando propomos uma técnica diretiva, corremos menos
riscos, mas para lançar mão de uma proposta de livre experimentação dos
materiais como me proponho a fazer é importante ter se experimentado nesta
labuta do ateliê, no aprendizado com estas matérias. Como diz a artista Louise
Bourgeois: “Fazer, Desfazer, Refazer” entendendo que cada desfazer e cada
refazer é um fazer novo. E é isso mesmo, labuta, trabalho, suor, insistência,
cair e levantar.
Direções Novas
Como escreveu Eliana Moraes, no texto deste blog “Micro e macro, arte e
vida”[2] (28/04/2014), o micro
seria o trabalho produzido no setting
e o seu desdobramento seria no macro, na própria vida. Maria Cristina de
Resende corrobora com este pensamento em seu texto “Observações da clínica”[3] (20/06/2016) colocando que
“[...]a realidade que se cria dentro do consultório precisa ser potencializada
até que transborde para fora daquele espaço terapêutico, e então as
experimentações de materiais se transformam em experimentações na vida e,
portanto, de vida!”
Experimentar novos meios, novos materiais também significa experimentar
novos modos, novas direções na vida, descobrindo potencialidades adormecidas ou
desconhecidas. Esta experiência nos fortalece, amplia nossas possibilidades de
ação.
Ostrower (1997, p. 39) nos diz que “a imaginação criativa nasce do
interesse, do entusiasmo de um indivíduo pelas possibilidades maiores de certas
matérias ou certas realidades. [...] para poder ser criativa, a imaginação
necessita identificar-se com uma materialidade.”
Finalizando volto a afirmar que a
prática da Arteterapia exige do profissional certo nível de intimidade com os
materiais plásticos, e para tanto este profissional não pode ocupar um lugar de
estranheza com os mesmos, ou ainda estar limitado a repetição de receitas, sem
se ocupar do conhecimento das qualidades e potenciais de cada material. Quando
digo qualidades não me refiro somente a certo material evocar certo sentimento,
etc., mas também a algo muito mais primário, como: se este material dilui em
água? Demora para secar? O que acontece se eu fizer
isso ou aquilo? A dimensão laboratório, cozinha das artes plásticas. E, é
claro, eles também terão o seu lugar marcado na história, e este também será um
estudo fundamental.
REFERÊNCIAS
OSTROWER, Fayga. Criatividade e Processos de Criação. 12ª ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 1997.
MORAES,
Eliana. Micro e macro, arte e vida. publicado em 28/04/2014. Disponível em <http://nao-palavra.blogspot.com.br/2014/04/micro-e-macro-arte-e-vida.htmlpublicado> Acessado em 20/06/2016.
RESENDE,
Maria Cristina. Observações da clínica. publicado em 20/06/2016. Disponível em
<http://nao-palavra.blogspot.com.br/2016/06/observacoes-da-clinica.html > Acessado em 20/06/2016.
NOTAS
[1] Ostrower se refere à
“materialidade” em um sentido amplo abrangendo “tudo o que está sendo formado e
transformado pelo homem.” Podendo referir-se tanto à pedras como a pensamentos,
conceitos, sons, afetos, etc.
[2] http://nao-palavra.blogspot.com.br/2014/04/micro-e-macro-arte-e-vida.htmlpublicado publicado em 28/04/2014.
[3] http://nao-palavra.blogspot.com.br/2016/06/observacoes-da-clinica.html publicado em 20/06/2016.
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