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segunda-feira, 19 de outubro de 2015

"TEM UMA CÂMERA AQUI DENTRO" - Relatos sobre a sincronicidade no setting de Arteterapia


 por Maria Cristina de Resende

Ao longo da minha experiência em consultório, que está para completar uma década, fui observando uma série de relatos a respeito de situações onde podemos verificar o fenômeno da sincronicidade. Para aqueles que vivem tais situações, são apenas coincidências, entretanto, para aqueles que trabalham a partir da Teoria Junguiana ou flertam com seus conceitos, fica claro que tais coincidências fazem parte deste grupo de fenômenos não explicáveis pela lei de causa e efeito.

O ultimo relato ouvido no setting terapêutico foi de uma paciente que, numa mistura de surpresa e medo, começou uma das sessões com esta frase: “tem uma câmera aqui dentro, pois tudo que é falado aqui gera uma onda de coincidências bizarras”. Este fenômeno “bizarro” é a sincronicidade, descrita por Jung como:

 “[...] a simultaneidade de um estado psíquico com um ou vários acontecimentos que aparecem como paralelos significativos de um estado subjetivo momentâneo e, em certas circunstâncias, também vice-versa”.

No livro Sincronicidade, 2011, Jung começa sua exposição do tema apresentando uma série de pesquisas demonstrando a relação do individuo com fenômenos sem relação causal e conclui que a lei de causa e efeito não se aplica a tais eventos. Entretanto, eles se manifestam. Qual seria então a explicação para eles? “[...] ao lado da conexão entre causa e efeito, existe na natureza também outro fator que se expressa na sucessão dos acontecimentos e parece ter significado”, ainda que este significado seja difícil de ser reconhecido pelo pensamento ocidental e racional. Jung então, se volta para a pesquisa dentro de tradições mais antigas que podem nos ajudar a compreender um pouco sobre a temática.

Na filosofia tradicional chinesa o conceito do Tao é usado por Jung para compreender sobre o sentido dos eventos da sincronicidade. Muitas traduções podem ser encontradas para o Tao, mas aquela que melhor o define é “nada”. “O ‘nada’ é evidentemente, o ‘sentido’, ou a ‘finalidade’, e chama-se nada justamente porque em si ele não aparece no mundo dos sentidos, mas é apenas seu organizador”.

“O sentido [Tao] é a simplicidade suprema sem nome.
Se os príncipes e os reis pudessem conservá-lo,
Todas as coisas seriam os seus comensais.
O povo viveria em harmonia, sem precisar de leis e ordens.
O Tao não opera,
E, no entanto, todas as coisas são feitas por ele.
Ele é impassível
E, no entanto, sabe planejar.
A rede de céu é tão grande, tão grande,
De grandes malhas, mas não deixa escapar nada”

Isso me remete à ideia que defendemos ao longo de nossos escritos sobre a busca na Arteterapia pelo significado da obra (O que é?), uma busca reducionista que pode ser transformada pela compreensão da força e do sentido que a obra possui (Como te afeta? O que te evoca?). Kandinsky dispensa as formas libertando as forças e neste contexto o ateliê de Arteterapia pode ser o local onde as formas podem ser libertadas e as forças podem ser evocadas.

Tais forças, presentes nesta malha organizadora que o Tao apresenta, podem ser acessadas através do mergulho no setting arteterapêutico e no uso dos materiais com suas diferentes linguagens. Esta modalidade de atendimento convida o paciente a estar em um estado de atenção e reflexão intenso, pois aqui, durante o processo de sua imagem, há a necessidade de um alinhamento entre a objetividade da realidade material (incluindo os próprios materiais) e a realidade subjetiva, os afetos, os desejos, o Eros. Neste alinhamento, tempo e espaço se reconfiguram e a malha se torna acessível.

M. C. Escher.

Quando o paciente mantem este estado de atenção para além do espaço terapêutico, as manifestações do fenômeno da sincronicidade podem então ser facilmente observáveis. Sendo assim, a ocorrência desses fenômenos não aumenta durante um processo terapêutico, elas se tornam mais claras, pois a atenção dada a si mesmo pelo paciente o coloca em contato direto com esta malha organizadora.
Sobre a atenção e o interesse e sua relação com a sincronicidade, Jung relata em suas observações nas pesquisas iniciais que:

 “Uma experiência constante em todos estes experimentos é o fato de o número de acertos tender a diminuir depois da primeira tentativa e os resultados são, consequentemente, negativos. Mas se por qualquer motivo exterior ou interior ocorre uma reativação do interesse do SE, o número de acertos volta a subir. A ausência de interesse e o tédio são fatores negativos; a participação direta, a expectativa passiva, a esperança e a fé na possibilidade da ESP [Extra-Sensory Perception, percepção extra-sensorial] melhoram os resultados e, por isto, parecem constituir as condições adequadas para que os mesmos se verifiquem”.

Sendo assim, concluo esta primeira explanação, com a reflexão sobre a força e a profundidade de um processo arteterapêutico e sua relação com a sincronicidade, isto devido à atenção e a percepção que tal abordagem convida o paciente a ter. A arte por sua vez também nos afirma que o mergulho diante do processo criativo de uma obra nos coloca dentro de um contexto onde a própria existência é percebida enquanto fenômeno, e para tal afirmação convido Argan a dizer sobre isso, a partir de Kandinsky:

[...] A arte, portanto, é a consciência de algo de que, de outra forma, não se teria consciência: não há dúvida de que ela amplia a experiência que o homem tem da realidade e lhe abre novas possibilidades de ação. E o que é conscientizado pela consciência que se realiza na operação artística? O fenômeno enquanto fenômeno. A consciência “racional” assume o fenômeno enquanto valor, mas no mesmo instante perde-o como fenômeno. A finalidade última de Kandinsky é levar o fenômeno enquanto tal à consciência, de fazê-lo ocorrer na consciência; como o fenômeno é existência, aquilo que se leva e se faz ocorrer na consciência é a própria existência. Esta é a função insubstituível da arte”. (ARGAN, 1998, p. 320).

M. C. Escher.

Referências Bibliográficas:
ARGAN, G. C. Arte Moderna. 5º reimpressão. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1998.
JUNG, C.G. Sincronicidade. Vozes, 2011.
KANDINSKY, W. Do espiritual na arte e na pintura em particular. 2ª ed. 2ª imp. São Paulo : Editora Martins Fontes,2000.

Contato: naopalavra@gmail.com

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