"Perspicácia" René Magritte
Por Eliana Moraes (MG)
RJ
naopalavra@gmail.com
No processo da construção de minha identidade profissional como
arteterapeuta, o grande “pulo do gato” se deu quando compreendi a importância
de estudar as teorias da ARTE, dentre elas a História da Arte. Compartilho este
percurso no texto “Diálogos entre a História da Arte e a Arteterapia” CLIQUE AQUI
Neste contexto, nos últimos anos, assumi a proposta de me
dedicar à pesquisa sobre possíveis aplicabilidades da História da Arte nas
práticas arteterapêuticas. Venho compartilhando fragmentos desta pesquisa
continuada, sempre que algum conteúdo ganha forma mais estruturada. Afinal o
compartilhar enquanto estudo é minha forma de caminhar, a qual acabou se
tornando o mote do Não Palavra.
Tenho dito que estudar História da Arte é como adentrar em um
imenso universo, com sensações de infinito, mas para estudá-la de forma
profunda, consistente e aplicável, não podemos nos hipnotizar com o todo, pois
isto pode ser paralisante. Tenho sugerido que cada interessado eleja
determinado campo que lhe atravesse e procure se dedicar ao seu estudo, sem
pressa, fazendo contato, dialogando de forma ampla, deixando-se afetar e
impressionar, até que as articulações entre as expressões artísticas e a
Arteterapia vão surgindo de maneira intuitiva e inspirada.
Este foi meu caminho ao fazer um recorte para a Arte Moderna como
início da minha pesquisa. Assumi por hábito eleger um movimento artístico e
passar um tempo, até mesmo meses dialogando com ele. Leio os historiadores da
Arte, assisto filmes, levo estes conteúdos para meus grupos de estudos, levanto
hipóteses de embasamentos para escuta clínica na atualidade, bem como possíveis
práticas criativas nele inspirada, aplico estas técnicas em grupos vivenciais e
com pacientes que dialoguem com a temática... até que depois de tanto me deixar
afetar por todos estes estímulos, estruturo um conteúdo para ser compartilhado
com os interlocutores do Não Palavra, em palestras e textos. Este é o motivo
pelo qual esta pesquisa é aparentemente lenta, mas acredito que só assim
poderemos efetivamente teorizar sobre as aplicabilidades da História da Arte na
Arteterapia de forma consistente.
Em linhas gerais, a Arte Moderna é reconhecida do início do século
XX até o pós-guerra, entre as décadas de 50 à 70, e sua escolha se deu porque
ao longo dos meus estudos percebi que este movimento histórico quebrou uma
série de paradigmas na arte, que colaboraram diretamente para que a Arteterapia
pudesse ser pensada e estruturada como prática e profissão anos mais tarde.
Acredito que a Arteterapia é uma “filha” da Arte Moderna e por isto decidi
estudá-la desde o início.
Hoje inicio uma série
de dois textos que se propõem a pensar contribuições da Arte Moderna para a
Arteterapia em seu surgimento e prática, e a importância de seus estudos pelo
arteterapeuta. Lembro que este é um estudo em construção, portanto em aberto
para futuros acréscimos ou até retificações em algum momento, se for
necessário.
Por que articular a
Arte Moderna com as práticas arteterapêuticas?
a) a) A Arte Moderna espelha
nossa cosmovisão: modernidade e pós modernidade
“Toda
obra é filha de seu tempo e, muitas vezes, mãe dos nossos sentimentos”
Kandinsky
Como nos diz Ezra Pound, os artistas são “antenas da raça” humana,
dando forma aos movimentos sociais e psíquicos do mundo. Entendemos que nossos
pacientes são indivíduos inseridos nesta maneira coletiva de viver e enxergar o
mundo e neste sentido podemos estudar este período da história da arte para
colaborar com nossa escuta terapêutica, nos âmbitos individual e coletivo.
Além disto, estas expressões artísticas, como “mãe dos nossos sentimentos”,
podem servir de espelhamento ou estímulos projetivos em propostas
arteterapêuticas que tragam conteúdos plasmados por artistas de nossos tempos
que façam eco aos indivíduos.
b) b) A abertura para a subjetividade na
expressão artística: nos temas e nas técnicas
Até meados do século XIX, na arte tradicional, os temas considerados
arte eram aqueles idealizados, como mitologias, iconografias religiosas, inspirados
na antiguidade clássica. Da mesma forma, os materiais e técnicas eram somente
considerados dentro das categorias tradicionais (sobre os materiais nos
aprofundaremos em um próximo texto). Em 1874, os impressionistas abriram as
portas para uma verdadeira revolução na arte: eles se libertaram das quatro
paredes dos ateliês para retratar o mundo moderno e a natureza a partir de suas
percepções, derrubando o muro entre o ateliê e a vida real. E assim abre-se espaço
para o subjetivo nos temas e na forma e pintar.
Desta maneira, este movimento é responsável pela abertura para a
subjetividade na arte. Pintar a partir de suas impressões trazia para a
expressão as percepções e sensações do artista. E a partir de então, a
subjetividade passa a ter cada vez mais importância nas artes visuais, rompendo
aos poucos com a objetividade da pintura figurativa tradicional.
Subjetividade é tudo aquilo que é próprio do sujeito. É
algo que está baseado na sua interpretação individual, mas pode não ser válido
para todos. Expressar-se de forma subjetiva dentro do campo da arte é um legado
da Arte Moderna que possibilita diretamente as práticas arteterapêuticas que,
por definição estimula que através das linguagens da arte um sujeito possa
expressar-se a partir de sua subjetividade, sem juízo de valor ou técnico.
c)
A Arte Moderna inaugura uma nova
concepção de arte
Este período é marcado pelo advento das vanguardas artísticas,
formadas por artistas que estariam a frente do seu tempo, rompendo com os padrões
acadêmicos vigentes. Elas determinaram a arte ocidental na primeira metade do
século XX e em vez de um código visual universal como foi determinado pelo
Renascimento e institucionalizado pelas academias e a arte tradicional, as
vanguardas artísticas criaram códigos visuais específicos. Daí a multiplicidade
de movimentos surgidos neste período.
As vanguardas artísticas quebraram paradigmas estruturais como: a
arte da representação naturalista; uma arte extremamente racional e técnica; cânones formados por um código visual
universal em temas e técnicas. A Arte
Moderna estabelece uma arte expressiva e conceitual; o rigor técnico perde espaço; abrem-se
inúmeras frentes e estilos (“ismos”).
A Arteterapia bebe da fonte da Arte Moderna quando flexibiliza o
rigor técnico em nome do potencial expressivo e conceitual das obras
resultantes, legitimando a multiplicidade de estilos possíveis, a partir da
singularidade expressiva de cada sujeito.
d) d) A abertura para o “não belo”, “o feio”
A Arte Moderna proporciona a migração do idealismo para se mostrar
a realidade, como por exemplo o mundo moderno e a natureza (Impressionismo), a
velocidade (Futurismo), mas também o caos, o sofrimento, a perturbação... (Dadaísmo).
Neste sentido passa-se ser possível expressar o “não belo” através da arte.
Em Arteterapia abrimos espaço para a expressão daquilo que é
necessário para o sujeito criador. Um olhar externo pode julgar este conteúdo
como “belo” ou “feio”. Porém, nós podemos nos apropriar daquilo que Wassily
Kandinsky, um dos grandes artistas da Arte Moderna conceituou com o “Belo
Interior”:
“O
‘Belo Interior’ é aquele para o qual nos impele uma necessidade interior quando
se renunciou às formas convencionais do Belo. Os profanos chamam-na de feiura.
O homem é sempre atraído, e hoje mais do que nunca, pelas coisas exteriores,
não reconhecendo de bom grado a necessidade interior. Essa recusa total das
formas habituais do ‘Belo’ leva a admitir como sagrados todos os procedimentos
que permitem manifestar sua personalidade.” (KANDINSKY, 1990, p 48)
Este é o estímulo que oferecemos aos experienciadores da
Arteterapia, que façam contato e expressem através das linguagens da arte o seu
“Belo Interior”.
e) e) Da representação exterior para a
expressão do interior
Este é um movimento de conversão muito característico deste
período da História da Arte: o olhar do artista se desloca do exterior para seu
interior.
Isto podemos observar em citações de vários artistas como Paul
Klee “A arte não reproduz o visível, ela torna visível... a minha intenção
não é refletir a superfície, assim como a chapa fotográfica, mas penetrar
no interior.” (MORAES, 2019), Henri Matisse “A pintura deixou de ter
a tarefa de representar os acontecimentos da História; estes encontramo-los nos
livros. Para nós, a pintura é algo mais. Ela serve para o artista exprimir
suas visões interiores.” (WALTHER) e Kandinsky “É evidente portanto
que, a harmonia das cores deve unicamente basear-se no princípio do contato
eficaz... Princípio da Necessidade Interior.” (KANDINSKY)
Este é o caminho que a Arteterapia apresenta para seus
experienciadores: que vá se aproximando cada vez mais de seus conteúdos
interiores em um caminho de autoconhecimento e apropriação de sua individuação.
Vale destacar que na imagem, o caminho para o interior se
dá no caminho para a abstração. Este é o motivo pelo qual tenho estudado expressões
abstratas e estimulado que os arteterapeutas deem espaço para a leitura
simbólica de imagens abstratas por si só, sem terem pressa de encontrar um
símbolo figurativo, pois neste sentido entendemos que quanto mais inconsciente
o conteúdo, mais abstrato (inominável) ele é. Assim entendo que precisamos
explorar mais o abstrato como expressão do mundo interior.
Em um próximo texto darei continuidade as articulações entre a
Arte Moderna e a Arteterapia, trazendo aspectos sobre as técnicas e materiais!
BIBLIOGRAFIA:
ADES,
Dawn. “Dadá e Surrealismo” in Conceitos da Arte Moderna. Nikos Stangos (org).
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.
GOLDING,
John. “Cubismo” in Conceitos da Arte Moderna. Nikos Stangos (org). Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.
GOMPERTZ,
Will. Isso é arte?. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
KANDINSKY,
Wassily. Do espiritual na arte
WALTHER,
Ingo F. Matisse. Taschen, 1993.
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Sobre a autora: Eliana Moraes
Arteterapeuta e Psicóloga.
Pós graduada em História da Arte
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia.
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia. Nascida em Minas Gerais, coordena o Espaço Não Palavra no Rio de Janeiro.
Autora dos livros "Pensando a Arteterapia" Vol 1 e 2