Por Claudia Maria Orfei Abe - São Paulo/SP
Resolvi instituir um Caderno
de Escrita Criativa para o meu pai, como sendo mais uma atividade para ele fazer.
Estava com 83 anos de idade no início de 2018, viúvo há cerca de um ano e muito
entediado. O diagnóstico de Doença de Alzheimer veio mais tarde naquele ano.
O texto inaugural do caderno foi
escrito no dia 16/04/2018. Entreguei-lhe o mesmo, e para dar um título olhei ao
meu redor para os objetos da sala. Vi sobre a mesa da sala de jantar as peças
de um quebra-cabeças bem grande sendo montado, não por ele sozinho obviamente.
Falei para ele escrever um texto de uma página inteira. Intitulado “Quebra Cabeça”,
o texto teve uma certa lógica, começo-meio-fim, poucos erros de ortografia, divisões
em parágrafos, pontuações, agradecimento e assinatura.
Texto: “Quebra Cabeça”
Na semana seguinte, propus
novamente a escrita de um novo texto. Mas aí ele ficou esperto. Escreveu uma
página inteira em linhas alternadas! Não tive dúvida, virei a página e falei
para ele continuar a escrita até o final. Um mês depois, ele já não conseguia
escrever uma página inteira. Passamos para meia página e depois para perguntas
e respostas.
Está certo que não conseguimos
fazer essa atividade com muita frequência, mas foi o suficiente para eu
observar como o cérebro dele estava funcionando.
Comecei com perguntas simples:
Como você se chama? Quantos anos você tem? Quantos filhos, seus nomes, netos,
bisneto, no que se formou, do que gostava de brincar quando criança, qual era a
sua profissão. Só pelas respostas percebi alguns esquecimentos seus.
E assim fomos alternando, pois
às vezes ele escrevia texto de uma página, depois, perguntas e respostas,
depois pulava linhas. As perguntas foram tendo graus de dificuldade aumentados,
e até que ele se saiu bem com esta: O que significa ARTE para mim? (Foto
no início deste texto).
Para minha surpresa, chegou um
dia que a letra dele começou a ficar um pouquinho diferente, uma ou outra
resposta não tinham nada a ver com as perguntas. Mas, tivemos também respostas
bem humoradas e algumas nas quais ele transmitiu como se sentia naquele
momento:
Com este calor intenso, nesta
sala, o que você gostaria de estar fazendo agora? Nada! Absolutamente nada! Mas...jogar
tombola, fazer palavras cruzadas ou tomando um sorvete de côco não seria má
idéia!
Que tipo de sorvete eu gosto?
Picolé, raspadinha, massa, de cone, de copinho? Que sabores? Em resposta:
prefiro sempre em taça de vidro, sorvete de chocolate seguido de alguns tragos
de água pura. Recuso sorver de palito por ser muito gelado e duro p/ saborear!
Como você está se sentindo
hoje? Maravilhosamente mau!!
Como está o seu emocional? Ótimo!
Graças a minha saúde mental! O que você gostaria de fazer agora? Gostaria
de descrever meu estado espiritual que está ótimo!
Surgiram também respostas
interessantes: Se você estivesse no deserto do Saara, o que você faria? Andaria
de camêlo no deserto infinito e apreciaria a macies da areia sêca do deserto do
Saahara! Se pudesse fugir deste calor, para onde eu iria? Com certeza eu
tomaria um banho de mar, mergulhando e furando as ondas, que vem de encontro a
nós. Esse é meu esporte favorito: furar as ondas do mar. O que eu preciso
para ficar inspirado, já que hoje não estou me sentindo inspirado? Fisicamente
mais calmo e seguro de que estou curado e esquecer a idade de idoso que esta se
apossando em mim.
Resolvi fazer a atividade de
uma forma diferente, desta vez mostrando a ele uma parte do vídeo Rivers and
Tides de Andy Goldsworthy* pelo celular. Na cena, o artista estava construindo
uma obra apenas com gravetos, de forma suspensa, e eis que bateu um vento e
desmanchou toda a obra, mostrando a efemeridade e impermanência das coisas.
Após assistirmos o vídeo, propus ao meu pai uma escrita criativa.
Texto baseado em trecho do vídeo “Rivers and Tides”
Terminarei contando a
experiência de uma escrita criativa a partir da observação de uma foto em uma
revista, neste caso, foto do Orloj** na República Tcheca. Primeiro conversamos
um pouco sobre a fotografia, do que se tratava e onde ficava essa torre com o
relógio, forte atração turística.
Texto
inspirado na foto do “Orloj”, República Tcheca
Fomos obrigados a encerrar essa atividade por um período pois ele apresentou problemas nos olhos, o que dificultou enxergar os escritos e as linhas do caderno, inclusive por conta dos medicamentos oftalmológicos. Infelizmente acabou também perdendo a visão do olho direito.
Este ano, 2020, levamos meu
pai à uma consulta médica. Aproveitei para mostrar alguns trabalhos que ele fez
nas sessões arteterapêuticas comigo, na época em que ele estava tratando os problemas
nos olhos. O médico ficou impressionado com a beleza da letra do meu pai. Agora,
de vez em quando, peço para ele escrever apenas um parágrafo, para vermos como
está a sua escrita, sua letra, se o texto tem sentido, e aviso que levaremos na
próxima consulta do oftalmologista. Daí ele fica parado um tempão pensando: Não
posso escrever nada banal...
Nota: a grafia itálica se
refere à escrita de meu pai, portanto possui alguns erros inclusive de acentuação. acentuação.
* Para assistir o Vídeo Rivers and Tides CLIQUE AQUI
** O Orloj é um relógio astronômico medieval,
localizado em Praga, capital da República Checa. Este relógio foi montado na
parede sul da Prefeitura Municipal da Cidade Velha na Praça da Cidade Velha,
que são atrações turísticas bastante populares. (Wikipedia)
Se você quiser ler meus textos
anteriores neste blog, são eles:
Fazer o Máximo com o Mínimo -
01/06/20
Tempo de Corona Vírus, Tempo
de se Reinventar - 13/04/20
Minha Origem: Itália e Japão -
17/02/20
Salvador Dali e “As Minhas
Gavetas Internas” - 11/11/19
“’O olhar que não se perdeu’:
diálogos arteterapêuticos entre pai e filha” -19/08/19
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Sobre a autora: Claudia Maria
Orfei Abe
Arteterapeuta – atuei em
instituição com o projeto “Cuidando do Cuidador”, para familiares e
acompanhantes dos atendidos. Atuei também em instituição de longa permanência
para idosos com o projeto “Mandalas”, sua maioria com Doença de Alzheimer.
Atendo em domicílio e on line.