Por
Eliana Moraes
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Sabemos que o artista é aquele
que tem o dom de fazer um mergulho até as funduras do inconsciente e traduzir
na linguagem de seu tempo os conteúdos mais profundos da alma e da humanidade,
dando-lhes uma forma. Esta forma é variada a partir da pluralidade das
linguagens artísticas, não apenas as artes visuais, mas também as imateriais
como a música ou a poesia, além da dança e performances.
Desta maneira, podemos
entender que as expressões artísticas são a constelação de questões humanas que
não raramente comparecem como angústias em um setting terapêutico. Assim, em
minha prática como arteterapeuta, tenho investido em criar meu repertório de
obras artísticas que possam dialogar com as questões terapêuticas recorrentes
na escuta clínica e assim servir de instrumento como estímulos projetivos e
disparadores de reflexões e processos criativos.
Como técnica arteterapêutica,
com este recurso estamos explorando o fenômeno da projeção, que se dá como um
processo inconsciente automático, pelo qual um conteúdo inconsciente para o
sujeito é transferido para um objeto, fazendo com que este conteúdo pareça
pertencer a este. Segundo Jung, "a razão geral e psicológica das projeções é sempre um inconsciente ativado
que busca expressão.” (SHARP) e é este conteúdo inconsciente ativado que
precisamos ouvir.
As técnicas projetivas são
todas aquelas às quais o cliente/paciente recebe um estímulo direcionado a
algum dos cinco sentidos, e a partir dele fala o que percebe, o que sente, o
que pensa. Na sensação de estar falando de algo terceiro, o experienciador
naturalmente está projetando de si e assim falando de si mesmo.
Dando continuidade à reflexão
sobre as contribuições do Surrealismo para a Arteterapia, iniciado no texto de
12 de agosto de 2019, hoje destaco a utilização das imagens oníricas como
grande recurso para estímulos projetivos nas práticas da Arteterapia.
As imagens oníricas e as
questões terapêuticas
Conforme dito anteriormente, minha
porta de entrada para o estudo da História da Arte em diálogo com a Arteterapia
se deu a partir do movimento Surrealista: movimento artístico que buscava
alcançar expressões do inconsciente através de processos criativos que fugiam
da razão.
As imagens oníricas são a
produção mais marcante do Surrealismo nos anos 30. Têm como fonte de inspiração
os sonhos, cujo interesse dos artistas estava fortemente ligado a pesquisa de
Freud e a psicanálise. São aquelas pintadas por Salvador Dali, René Magritte,
Max Ernst, Yves Tanguy, (embora não se reconhecesse uma surrealista) Frida
Khalo e outros.
Estas imagens têm o efeito de
impactar o espectador com a sensação de que são ao mesmo tempo familiares porém
estranhas:
“...
familiar em razão do estilo minuciosamente realista que permite ao espectador o
reconhecimento dos objetos pintados; desconhecido, por causa da estranheza dos
contextos em que eles aparecem...” (BRADLEY, 2004)
Se
atentarmos bem, esta é uma descrição que também se encaixa aos sonhos, por isto
estas imagens se tornam tão provocadoras e desafiadoras. São imagens não
óbvias, não literais, ricas em simbolismos, metáforas, paradoxos - características tão presentes e ao mesmo tempo tão
desestabilizadoras da vida. Carregam em si um grande potencial de identificação
pelo espectador, provocando projeções capazes de auxiliar ao cliente/paciente
de Arteterapia a espelhar-se, (re)conhecer-se e falar-se.
A prática nos mostra que as imagens oníricas
surrealistas são um potente instrumento de estímulo projetivo interessante a
ser acessado, por exemplo, nos primeiros contatos do
experimentador da Arteterapia com o mundo das imagens e sua subjetividade.
Faz-se assim uma abertura psíquica e cognitiva para uma leitura mais abstrata,
poética, metafórica, simbólica das imagens e da vida (em oposição ao pensamento
concreto e racional que muitas vezes comparece no início de um processo
arteterapêutico).
A imagem afeta o
cliente/paciente e serve para aquecer o diálogo interno, trazendo subsídios
para grandes reflexões e elaborações. Pode ser oferecida uma obra a partir da
fala do experienciador, proporcionando um “encontro” entre a demanda
terapêutica e a imagem. Ou podem ser oferecidas diversas imagens para que o
experienciador sinta e escolha aquela que lhe toca naquele momento.
Aqueles que me conhecem de
perto, sabem que tenho uma relação especial com René Magritte, homenageado
inclusive ao nomear meu gato Renê. Em dois textos de 2015 que foram compilados
no livro “Pensando a Arteterapia” exploro um pouco mais sobre as obras deste
artista verdadeiramente instigante!
Neste texto vamos dialogar com
o grande surrealista Salvador Dali, as quais fazem parte do meu repertório como
arteterapeuta.
Dali e a jornada terapêutica
Anteriormente escrevi um texto
sobre uma obra de Dali, que muito marcou meu processo analítico pessoal e posteriormente
profissional. A obra “Batalha nas nuvens” inspirou o texto “Dali e a
jornada terapêutica” de 2015, também inserido no livro “Pensando a Arteterapia”.
Hoje desdobraremos este título
utilizando mais duas de suas obras tão ricas em simbolismos, mas que podemos
aplicá-las ao percurso de um sujeito em sua terapia.
Em “Girafas em chamas”
Dali traz a imagem sombria de um corpo que dele se abrem algumas gavetas. Tenho
usado esta obra com os que estão iniciando o processo arteterapêutico. Este é
um momento delicado, de enfrentamento, em que estamos abrindo nossas “gavetas”
há muito tempo fechadas: “o que contém em minhas gavetas? o que guardei tanto
tempo que agora preciso olhar? como eu me sinto abrindo estas gavetas? o que
preciso limpar e jogar fora? o que preciso ressignificar e transformar?”
.;Já a obra “Criança
geopolítica assistindo o nascimento do novo homem”, tenho usado com os
experienciadores do processo arteterapêutico que já estejam produzindo
movimentos de mudança em seu processo de individuação, não sem grande
investimento de energia psíquica, força e dores de crescimento. Esta imagem se
faz bastante impactante para os que estão (não apenas assistindo, mas)
produzindo o nascimento de um “novo homem”.
A partir destas imagens
podemos propor uma escrita criativa ou mesmo a produção de uma releitura da
obra, a partir da perspectiva do espectador. As possibilidades de processos
criativos a partir de uma obra fica a critério do arteterapeuta e sua criatividade.
O ponto pacífico é a potência que estas imagens carregam em si e desperta em
cada um de nós.
Referências Bibliográficas:
SHARP, Daryl. Léxico
Junguiano. Ed Cultrix, SP, 1991.
BRADLEY, Fiona. Surrealismo –
Movimentos da Arte Moderna. Ed Companhia das l etras, São Paulo. 1992.
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Sobre a autora: Eliana Moraes
Arteterapeuta e Psicóloga.
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia.
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia. Nascida em Minas Gerais, coordena o Espaço Não Palavra no Rio de Janeiro.
Autora do livro "Pensando a Arteterapia" CLIQUE AQUI
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