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segunda-feira, 8 de julho de 2019

SÉRIE OLHARES SOBRE OS MITOS: HADES E A DEPRESSÃO


Laila Alves de Souza - Curitiba/Rio de Janeiro
lai_ajt@hotmail.com
Nos outros textos dessa série “Olhares sobre os mitos” enfatizei a importância que a psicologia profunda atribui aos mitos. Estes não apenas carregam meras narrativas descrevendo sobre o comportamento humano, mas trata da vida da alma. Diz HILLMAN: “Os mitos governam nossas vidas. Governam uma história de caso a partir de baixo, através da história de alma.” (20011, p. 93)
Considerar a perspectiva pela história da alma é diferente da perspectiva pela história de caso. Numa história de caso temos como metodologia a descrição e a interpretação dos eventos e das emoções. E o tratamento, nessa perspectiva, se molda por essas colocações, trazendo luz as questões até então obscurecidas. Portanto, seguindo por esse caminho “de dar luz” ou “trazer à luz” partimos do pressuposto que a luz representa um critério que diz respeito a algo saudável e adequado. No entanto, quando nos atemos à história da alma, esta nos coloca em contato com aquilo que subjaz da EXPERIÊNCIA. A alma reclama a experiência! Ao invés de debruçarmos na tentativa de desvendar o que quer dizer essa experiência, nós vamos para as profundezas do que o indivíduo está experenciando. Tiramos, desse modo, qualquer tipo de parâmetro ou critério que indique que algo é adequado ou inadequado, sadio ou patológico, bom ou mal. Apenas ficamos com a escuta para alma daquele sujeito.
Peguemos uma das experiências psíquicas mais discutida da atualidade, a depressão. Ao imaginá-la nós já conseguimos agrupar certas associações e parâmetros a respeito da “doença”. Felizmente, já há um progresso na conscientização da depressão, ou seja, já existe um movimento de profissionais da saúde e outras áreas que a qualifica como algo sério e que a condição depressiva ultrapassa a força de vontade (força egóica) do sujeito. Este fica completamente vulnerável e à mercê da depressão. Essa experiência o consome, consome seu ego e sua orientação consciente, pondo-se à vista a natureza psíquica, a alma.
Na ótica da psicologia analítica, dentro da estrutura psíquica proposta por Jung, a condição depressiva é justamente a perda de energia psíquica que o ego possuía. Uma pessoa que se mantém ativa, com a capacidade cognitiva intacta e sem alterações nas suas necessidades físicas detém de uma quantidade específica de energia que a permite desenvolver suas atividades cotidianas. Sem essa energia concentrada na consciência nenhum movimento do ego é possível. A energia, portanto, regrediu às profundezas, isto é, há uma regressão da libido. Isso nos dá um panorama muito elucidativo da situação específica, que consiste naquilo que anteriormente foi mencionado como história de caso. No entanto, para a história da alma a linguagem é outra. Aí adentramos ao mito. 


HADES 
Hades é o deus que reina o submundo ou mundo das trevas, assim também designado como o reino dos mortos. Como Hécate (já mencionada em outro texto CLIQUE AQUI) ele é um deus ctônico. Esses deuses são deuses que residem na escuridão, no subterrâneo. Não se tem certeza de como eram o rosto desses deuses, uma vez que, o que está debaixo dos nossos pés, além da terra, não passa pelo nosso campo de visão, não sabemos o que jaz nessa escuridão desconhecida. 
Hades é “(...) o escuro reverso não só de Zeus, mas também de Hélio.” (KERÉNYI, 2015, p. 208). Esses dois últimos deuses estão associados com a luz e o reino celeste e Hades, no entanto, nos puxa para seu reino sombrio de escuridão, para baixo. Vemos no rapto de Perséfone exatamente essa dinâmica. Resumidamente, Core, filha de Deméter, estava colhendo flores quando de repente a terra se abriu e dela se irrompeu Hades em sua carruagem com seus corcéis negros. Hades a raptou e a levou para seu reino ctônico. Core a princípio, tentou lutar contra o raptor, mas foi levada à força. Deméter ficou desesperada pelo sumiço da filha, até que descobriu, por Hélio - aquele que tudo vê - que foi Hades quem a raptou. Ao tentar resgatar sua filha, viu que esta se tornara a rainha do submundo, Perséfone, esposa do deus temível. E constatou também que esta comera sementes de romã e que quem come no Hades não sai mais de lá. Porém, a insistente Deméter reivindicou a Zeus o retorno de sua filha junto a ela, alegando que se isso não acontecesse a terra não ia mais prosperar, já que ela era a deusa da vegetação e fertilidade. Zeus conseguiu negociar com seu irmão Hades de que Perséfone ficaria com ele um terço do ano e o resto com sua mãe. Fazendo a terra florescer quando as duas se encontram.     
Esse rapto por Hades, ou seja, esse puxar para baixo é exatamente a experiência da depressão. Estamos como Core, colhendo flores nas pradarias da vida, quando, de repente, o chão se abre para o caminho das profundezas. Descemos aos ínferos, ou seja, a energia psíquica cai nas trevas. Os gregos chamavam essa queda de katabasys. Vemos esse motivo da queda em muitos mitos e contos, e como sendo uma experiência arquetípica, sofremos ou sofreremos essa experiência. Por isso podemos dizer que a depressão é uma das katabasys da mitologia atual. Frases tais como “estou no fundo do poço”, “estou caindo num abismo”, “perdi o chão”, “me sinto fraco e impotente”, revelam que a experiência do rapto de Hades ao reino da morte é o começo de um processo de morte propriamente dito.

O REINO DE HADES
Ao chegar no reino dos mortos, forçadamente, nós nos defrontamos com o desespero e o tédio. Como afirmam CHEVALIER & GHEERBRANT (2009) o reino de Hades é "(...) lugar invisível, eternamente sem saída (salvo para os que acreditava nas reencarnações), perdido nas trevas e no frio, assombrado por monstros e demônios, que atormentam os defuntos."(p. 505). É a escuridão total! De nada adianta puxar o indivíduo para a luz, pois ele já está mergulhado nesse reino de trevas. Aqui, quando vemos pela perspectiva da clínica, é imperativo que o terapeuta abrace a experiência do rapto de Hades. Ficar erguendo seu paciente para a direção da luz em tentativas de tirá-lo do reino da morte é perder o processo que alma pede daquele paciente. Ao invés de se perguntar “como faço para tirá-lo dessa condição sombria?” se propor fazer a pergunta “o que a alma quer com essa experiência sombria?”.
Por estar no reino da morte, uma das respostas para essa pergunta é justamente a morte. Ela tem que se apresentar para ambos envolvidos no processo – o paciente e o terapeuta. Fugir dela é não permitir que Core se transforme em Perséfone. Como diz HILLMAN (2011) “(...)cada morte é a nossa própria criação.” (p. 73-74). No entanto, a tendência é que sintamos uma angústia demasiada na presença dela e que, assim, queiramos acelerar o processo. Dessa forma, é importante salientar aqui que no reino de Hades não existe tempo, o deus Cronos (cronológico) que estamos acostumados no mundo “de cima” não existe aqui embaixo. Por isso que o depressivo entra em outro estado de tempo, bem mais vagaroso e pesado, se culpando, inclusive, por não conseguir fazer as coisas no tempo em que as outras pessoas estão. Exigir essa aceleração do depressivo é praticamente deixá-lo mais culpado no mundo de Hades.
Como foi mencionado acima, estar preso a esse reino é ser assombrado por monstros e demônios. Nessa experiência, como o ego não tem energia psíquica pois essa regrediu, esse é um momento precioso para a alma. Quando o eu está em “bom estado e funcionamento”, as resistências estão em dia e são facilmente consteladas, além do que, as personas estão firmemente encaixadas com as propostas do ego. Porém, sem a força usual desse, somos obrigados a ver o que jaz nas nossas profundezas, aspectos esses bem escondidos pelos mecanismos do bom funcionamento. Nossos monstros e demônios já são da casa de Hades e são eles, justamente, o alimento que necessitamos para essa experiência, como são as sementes de romã ingeridas por Perséfone. São monstros que viram valiosos materiais psíquicos. 
Hades também é chamado de Plutão que significa “o rico”. "Então Plutão refere-se às riquezas escondidas ou às riquezas do invisível." (HILLMAN, 2013, p. 53). Portanto, por mais temível e perturbador que possa ser o caminho ao passar por essa experiência em que reina a morte, só se possibilita dar esse mergulho nas riquezas escondidas quando o ego não está em seu trono na luz. 
Assim podemos perceber que algo tão ameaçadoramente desestruturador, cujo nome damos de patologia (relacionando-a com termos tais como desordem, doença e desvio), mostra-se, no final das contas, como uma criação feita pela alma. Olhar a depressão pela ótica do trono na luz é olhá-la por esse perfil negativo e tomar todas as providências para tirar a pessoa do reino das trevas. Quando Hillman afirma que a alma patologiza, ele quer dizer que a é através de manifestações “não normais e sadias” que o indivíduo é forçado a olhar para sua individualidade; individualidade esta que está além desses termos: normal e adequado. Pelo contrário, a alma que se individua tem que ir além do que o coletivo afirma como sujeito adaptado, para assim poder se diferenciar como indivíduo. Um indivíduo, portanto, a serviço de seu Self e não das personas coletivas. Esse é o processo de individuação.     
 A subida então, como Perséfone faz para encontro de sua mãe, a terra, é o percurso de saída do estado depressivo. O mundo é outro porque se adquire uma nova percepção do mesmo: “Não sou mais aquele que foi raptado”, uma amiga um dia me afirmou: “Aquilo foi em outra existência.” Passado pela morte, agora o indivíduo se vê mais “psiquizado”, ou seja, muitas coisas se tornaram psíquicas; as cascas que antes eram sustentadas pelo ego foram derrubadas e as essências foram reveladas. O olhar de Perséfone é justamente o olhar para essência das coisas, diz BERRY (1997): 
Com isso entendo que a percepção das diferenças no reino da natureza de Deméter é também uma percepção de essências no reino de Perséfone - onde essência é o “Não-visto”, a semente oculta da romã, ou o “invisível”. Desse modo, notar as diferenças do mundo da superfície é ter, ao mesmo tempo, uma percepção através de uma consciência dos invisíveis do mundo inferior.” (p. 89)  
É olhar as coisas e as situações pela perspectiva da alma. Esse olhar de Perséfone para as essências é imprescindível aos terapeutas, pois enxergar através do aparente, seja ele um sintoma ou o discurso literal, é poder enxergar o que a alma pede. Além do que, a Perséfone tem uma função psicopompa, ou seja, ela é a guia que tem familiaridade com os dois reinos, o terrestre e o submundo; o material e o psíquico. Assim, o terapeuta é o guia que ajuda a travessia do paciente, permitindo e vivenciando a experiência do reino da morte, mas não se dissolvendo junto com o paciente. A Arteterapia é o campo que também proporciona uma atitude de Perséfone, que no manuseio do material (Perséfone com Deméter), traz o reino das essências (Perséfone com Hades).
Portanto, o olhar para o mito, na sua própria linguagem, nos permite o aprofundamento naquilo que se apresenta. Temos uma psicologia muito voltada para as histórias de caso, onde a percepção e a abordagem para a depressão pegam um outro rumo. No entanto, quando nos voltamos para aquele indivíduo e paramos para escutar (com Eros) seu rapto, sua katabasys, sua estadia no mundo de Hades e sua subida, de forma que nenhuma outra pessoa terá igual, estamos pegando o rumo da psicologia da alma.        

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
BERRY, Patricia. Encarando os Deuses (org. James Hillman). São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1997.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. RJ: José Olympio, 2009.
HILLMAN , James. Sonho e o mundo das trevas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
 _______________. Suicídio e Alma. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
KERÉYNI, Karl. A mitologia dos gregos: vol I: A história dos deuses e dos homens. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015
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Sobre a autora: Laila Alves de Souza

Psicóloga
Pós- graduada em psicologia clínica na abordagem da Psicologia Analítica.
Atendimentos clínicos pela abordagem da Psicologia Analítica no Rio de Janeiro.
Atualmente compõe a Equipe Não Palavra na gestão dos projetos.

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