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segunda-feira, 18 de março de 2019

OS MATERIAIS E A INTENSIFICAÇÃO DO VIVER: SOBRE O ATO DE RETIRAR

"Pietá" Michelangelo 


Eliana Moraes (MG) RJ 
naopalavra@gmail.com
Instagram: @naopalavra

No percurso da formação de minha identidade profissional me deparei com a questão sobre o que me diferenciava de uma psicóloga que se utiliza de técnicas expressivas e uma arteterapeuta propriamente dita. Uma das respostas que encontrei e me constituiu se dá no manejo dos materiais pelo arteterapeuta. 

Tenho pensado no arteterapeuta como um “promotor de encontros” entre o sujeito que fala e um material que será facilitador de seu discurso, da elaboração de conteúdos psíquicos e de retificações subjetivas a partir do ato criativo. Neste sentido faz-se estrutural que o arteterapeuta se dedique a conhecer e se aprofundar cada vez mais na riqueza e pluralidade de materiais possíveis a serem aplicados no setting terapêutico. 

O arteterapeuta deve trabalhar com metáforas. Investir em apresentar para seu paciente/cliente a analogia entre a questão trazida por ele e aquele material. Sem o devido investimento na construção deste simbolismo o paciente pode não compreender e não investir de si naquela criação, tornando o processo sem sentido e inócuo. A delicadeza e destreza da construção das metáforas e analogias entre as questões subjetivas e os materiais expressivos tem sido um dos pontos mais trabalhados em supervisões que ofereço para arteterapeutas em construção. 

No texto de hoje trago a reflexão sobre o processo criativo que refere-se ao ato de retirar aquilo que não é, retirar o excessos, o que pesa e faz perder a forma essencial: o esculpir. 

Sobre a escultura 

A escultura se faz por imagens plásticas em relevo total ou parcial. É considerada a 4ª das artes clássicas. Através da maior parte da história, permaneceram as obras dos artistas que utilizaram-se dos materiais mais perenes e duráveis possíveis como a pedra - mármore, pedra calcária, granito - ou metais - bronze, ouro, prata. Usavam-se ainda materiais de origem orgânica como argila, terracota, ou materiais mais nobres como madeira, marfim ou âmbar. Mas de um modo geral, pode-se esculpir em quase tudo que consiga manter por pelo menos algumas horas a forma idealizada, utilizando materiais como manteiga, gelo, cera, gesso, areia molhada..

A escolha de um material normalmente implica a técnica a se utilizar. A cinzelação, quando de um bloco de material se retira o que excede a figura utilizando ferramentas de corte próprias. Já a modelagem, quando se agrega material plástico até conseguir o efeito desejado e a fundição, quando se verte metal quente em um molde feito com outros materiais. 

Nas práticas da Arteterapia, a modelagem é amplamente usada, mas hoje o processo protagonista é a cinzelação. Em seu texto “Sobre a psicoterapia” Freud nos lembra as palavras do grande artista Leonardo da Vinci:

“A pintura, diz Leonardo, trabalha per via di pore, pois deposita sobre a tela incolor partículas coloridas que antes não estavam ali; já a escultura, ao contrário, funciona per via di levare, pois retira da pedra tudo o que encobre a superfície da estátua nela contida.” (FREUD,1905 [1904])

E esta metáfora se mostra riquíssima ao arteterapeuta. 

A escultura na prática da Arteterapia 

“Como faço uma escultura? Simplesmente retiro do bloco de mármore tudo que não é necessário.” Michelangelo

Freud dizia que ao longo da vida, em seu processo natural de constituição, o sujeito vai adquirindo e acoplando em si algumas orientações e diretrizes referentes à educação, referências culturais, familiares, códigos de civilização... Mas chega um determinado momento em que o sujeito se estranha, acha-se pesado e sem forma, em angústia. Intuitivamente ao buscar um processo analítico percebe que perdeu sua forma original e todo um trabalho de “retirar” se dá ao longo do tratamento. 

Naturalmente este é um processo penoso pois, cada uma destas referências faz parte da história do sujeito e sua constituição. Porém, agora pesam, e demanda alguma quantidade de força para retirar tudo aquilo que não é mais necessário, ou então que não é mais do sujeito. Esta força precisa ser bem dosada, pois se demasiadamente fraca, não terá o efeito desejado. Se muito forte, pode machucar o sujeito ou até mesmo ser retirada alguma parte que sim lhe pertence. 

Freud defende que o processo de análise é análogo ao processo da escultura. E aqui faz uma distinção entre os métodos terapêuticos que trabalham com a sugestão (análoga à pintura) e o método psicanalítico: 

“De maneira muito semelhante, senhores, a técnica da sugestão busca operar per via di pore; não se importa com a origem, a força e o sentido dos sintomas patológicos, mas antes deposita algo - a sugestão - que ela espera ser forte o bastante para impedir a expressão da ideia patogênica. A terapia analítica, em contrapartida, não pretende acrescentar nem introduzir nada de novo, mas antes tirar, trazer algo para fora...” (FREUD,1905 [1904])

Um processo de esculpir. Retirar tudo que aquilo que se encontra na superfície da forma estrutural nela contida. Este é um processo vivido no setting terapêutico que pode ser objetivado com um material simples: o sabonete. 


Utilizando os materiais de corte específicos, o paciente/cliente de Arteterapia tem a oportunidade de entrar em contato com a sensação inicial de carregar excessos de bagagens, referências, heranças, informações. Percebe a necessidade de investir alguma força na retirada destes excessos, mas também é convidado a dosar sua força para que não seja nem de mais e nem de menos. 

A prática nos mostra que muitas vezes o paciente/cliente inicia este processo de retirada ainda inseguro, sem saber que forma buscar, mas este é exatamente o sentimento de quem se perdeu da forma essencial e deseja reencontrá-la. E este reencontro só é possível quando há a disponibilidade do processo contínuo de retirar, ainda que sem saber aonde este caminho dará. 

O reencontro da forma ali contida e escondida se dá de forma singular. Cada imagem ou símbolo encontrado é único, remetendo-nos ao reencontro da verdade de cada sujeito, sua singularidade. 


Mas neste trabalho também emerge uma segunda questão: o que fazer com os restos, com tudo aquilo que foi retirado? No processo terapêutico esta reflexão se faz muito simbólica pois há um convite a se nomear tudo aquilo que fez parte da construção do sujeito e agora ele retira. Há uma grande tomada de consciência e decisão sobre quais conteúdos devem efetivamente serem jogados no lixo ou quais conteúdos não podem ser simplesmente descartados mas necessitam ser transformados para que não pesem da mesma forma. 

Este processo tem se demonstrado profundamente tocante para aqueles que os experienciam, pois convoca a responsabilização de cada sujeito, para que ele se perceba e tome uma nova postura em relação àquilo que ele é e àquilo que lhe causa sofrimento. 



Referência Bibliográfica: 

FREUD, Sigmund. Sobre a psicoterapia. Obras Completas Vol VII. 
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Sobre a autora: Eliana Moraes



Arteterapeuta e Psicóloga. 


Especialista em Gerontologia e saúde do idoso e cursando MBA em História da Arte.

Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia. Nascida em Minas Gerais, coordena o Espaço Não Palavra no Rio de Janeiro.
Autora do livro "Pensando a Arteterapia" CLIQUE AQUI

Um comentário:

  1. Acho essa questão essencial na dinâmica da arteterapia. No meu entender, que dialoga com meu modelo de praticar a Arteterapia, a via de pore e a de retirare são igualmente parte do processo. Pore não no sentido freudiano de sugestão, mas do modo como o proprio sujeito se constrói, em sua singularidade, na relação com o material a cada instante. A pintura pode "retirar" sentidos ocultos tanto quanto a escultura. Embora a primeira proceda preferencialmente por via dia pore (mas alguns operam também via retirare nesse processo) e a escultura, à priori (mas nem sempre exclusivamente) por retirare.

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