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segunda-feira, 4 de setembro de 2017

CONTRIBUIÇÕES DE KANDINSKY AO ARTETERAPEUTA

Por Eliana Moraes - (MG) RJ
naopalavra@gmail.com

Nos últimos tempos tenho pensado e estimulado aos que estão à minha volta para que pensemos sobre o arteterapeuta e sua função no social atual. Em um texto anterior denominado “Uma arte que nos salve da loucura destes tempos, Dadaísmo e Arteterapia” (CLIQUE AQUI) relatei minhas articulações pessoais sobre como o movimento dadaísta poderia dar embasamento para o ofício do arteterapeuta.
Sincronicamente, há poucas semanas decidi reler um livro que abriu as portas para uma nova fase da minha vida profissional, em meados de 2013, quando efetivamente me encontrei na Arteterapia: “Do espiritual na arte” de Wassily Kandinsky. A releitura deste livro se deu pelo desejo de retomar os estudos sobre o caminho para a abstração, tão característico do artista, e sua teorização sobre as potências das cores e das formas. Estudo que me servirá como embasamentos para as palestras deste semestre e textos que estão em fase de gestação.
Entretanto, como é interessante reler um livro, passado algum tempo de amadurecimento profissional e pessoal! Meus olhos foram capturados pelos primeiros capítulos desta riquíssima obra em que Kandinsky pensa sobre o lugar do artista e da arte, na história e no coletivo.
Tenho me dedicado à conscientização do arteterapeuta como portador da sensibilidade tão singular do artista, como aquele que capta, percebe, compreende, expressa e traduz para as mais variadas linguagens da arte as questões mais profundamente humanas, mas especialmente aquele que exerce a função de oferecer a arte e sustentar um território “sagrado” para que ela aconteça. Penso que a tomada de consciência sobre a profundidade, responsabilidade e  convocação que esta função nos implica seja essencial para a construção de um arteterapeuta.
Sendo assim, naturalmente a leitura e o estudo sobre o que grandes artistas teorizaram sobre este lugar no social e para a história, instrumentaliza o arteterapeuta na construção de sua identidade profissional. Hoje, a proposta é trazer alguns fragmentos das articulações de kandinsky sobre este tema aos quais podemos acolher como “cartas aos jovens arteterapeutas” (dentre os quais me incluo) nos dias atuais.
Uma mudança de rumo
“Toda obra de arte é filha de seu tempo e, muitas vezes, mãe de nossos sentimentos. Cada época de uma civilização cria uma arte que lhe é própria e que jamais se verá renascer.” KANDINSKY
Podemos pensar a história da arte como a história da humanidade registrada pelo olhar tão sensível do artista. Kandinsky foi um artista que registrou e participou de um caminho de mudanças de perspectivas na história. Até então vigorava o Iluminismo, um movimento cultural da elite europeia que procurou mobilizar o poder da razão a fim de reformar a sociedade do conhecimento. Ao final do século XIX, observamos o processo de queda destes ideais, em que a ênfase à razão deu lugar à ênfase do romantismo na emoção. Assim:
 “... Kandinsky... Sábio da arte moderna, insere-se exatamente na linhagem de todos os que... quiseram responder à angustia com a certeza... ele assistiu ao desmoronamento de todo um sistema baseado na exatidão de nossa visão, na coincidência entre o valor e a realidade: o mundo que nossos sentidos nos desvendam, é um conjunto de fenômenos que têm poucas relações com a realidade das coisas.” SERS in KANDINSKY
Em última análise, uma mudança de perspectiva como esta possibilitou à Freud,  poucos anos mais tarde, postular uma outra instância no psiquismo humano para além da consciência: o inconsciente, nosso objeto de busca como arteterapeutas.
Rumo à “necessidade interior”: um caminho para a abstração 

“Quando a religião, a ciência e a moral (esta última pela mão rude de Nietzsche) são abaladas, e quando os apoios exteriores ameaçam ruir, o homem desvia seu olhar das contingências exteriores e dirige-o para si mesmo.” KANDINSKY
Assim, Kandinsky propunha:
“...Uma evolução da arte afastada das redundâncias do materialismo para se tornar um instrumento com o qual se comunicam emoções ‘puras’ obtidas por meio do impacto sensorial e psíquico de formas e cores.” VERSARI
Kandinsky recusava toda arte que fosse tão somente decorativa, a “arte pela arte” que é filha de seu século e permanece inteiramente no exterior. A arte deveria corresponder a uma “necessidade interior”. Neste pensamento, deveria tornar-se abstrata, esta mudança de rumo exigia o desaparecimento do objeto. Mas então, substituir o objeto pelo que?
“... a partir do instante em que...a experiência íntima do artista e a força de emoção que a torna comunicável aos outros transparece, a arte entra no caminho... do qual reencontrará o que perdeu... O objeto de sua busca não é o objeto material concreto a que o artista se prendia exclusivamente na época precedente... mas será o próprio conteúdo da arte, sua essência, sua alma... Esse conteúdo, só a arte pode captá-lo, só ela pode exprimi-lo claramente com os meios que lhe pertencem.” KANDINSKY
Interessante ressaltar que o livro “Do espiritual na arte” foi concluído em 1910 e no mesmo ano kandinsky pinta seu primeiro quadro abstrato, demonstrando a estreita ligação entre o investimento na teoria e em sua experiência. As obras de kandinsky são expressões imagéticas de suas teorizações e verdadeiros estudos sobre a relação entre as cores e as formas. (Eis aqui uma verdadeira inspiração aos arteterapeutas que por um lado devem se alimentar das teorias que lhes sustentam mas por outro lado nunca se perderem se suas próprias experiências com a arte, a criatividade e o agir sobre os materiais expressivos)
Penso que esta mudança de perspectiva sobre a função da arte abre caminho para nossa prática como arteterapeutas, quando a oferecemos como meio para que sujeitos (do cotidiano, mas seres humanos com suas sensibilidades e necessidades) encontrem um caminho rumo a sua “necessidade interior”. Por meio da arte podem se ver, se ouvir, se apropriar de si, se retificar e retornar como autores de suas vidas.
Ao arteterapeuta cabe estar ao lado deste sujeito em sua jornada rumo ao si mesmo, oferecer os materiais expressivos que sejam mais facilitadores deste processo e a partir de sua escuta instrumentalizada exercer sua vocação:
“Cada quadro encerra misteriosamente toda uma vida, uma vida com seus sofrimentos, suas dúvidas, suas horas de entusiasmo e de luz. Para o que tende essa vida? Para quem se volta a alma angustiada do artista quando, também ela, participa de sua atividade criadora? O que ela quer anunciar? ‘Projetar luz nas profundezas do coração humano, eis a vocação do artista’, escreveu Schumann.” KANDISNKY

O artista como um profeta:

Kandinsky defende que esta mudança de rumo direcionada à “necessidade interior” atinge dimensões tão profundas que alcança uma experiência espiritual ao qual ele descreve a partir da metáfora de um triângulo. O artista, com sua sensibilidade e intuição tão aguçada exerce uma função muito delicada, desafiadora, pesada e por vezes solitária:
“Então sempre surge um homem, um de nós, em tudo nosso semelhante, mas que possui uma força de ‘visão’ misteriosamente infundida nele. Ele vê o que será e o faz ver. Por vezes desejaria libertar-se desse dom sublime, dessa pesada cruz sob a qual verga. Mas não pode. Apesar das zombarias e do ódio, atrela-se à pesada carroça da humanidade, a fim de soltá-la das pedras que a retêm e, com todas as suas forças, impele-a para a frente.” KANDINSKY
“Um grande triângulo divididos em partes desiguais, a menor e a mais aguda no ápice, representa... bem a vida espiritual... Por vezes na ponta extrema, não há mais do que um homem sozinho. Sua visão iguala sua infinita tristeza. E os que estão mais perto dele não o compreendem. Em sua indignação, tratam-no de impostor, de semilouco...
Podem-se descobrir artistas em todas as partes do triângulo. Aquele que, entre eles, é capaz de olhar além dos limites da parte a que pertence é um profeta para os que o cercam. Ele ajuda a fazer avançar a carroça recalcitrante... Essa multidão tem fome – muitas vezes sem que ela própria esteja consciente disso – o pão espiritual quem convém às suas necessidades.” KANDINSKY
Penso que aqui está a convocação que Kandinsky faz a nós, artistas e arteterapeutas atuantes no século XXI. Através de nossa sensibilidade e intuição, temos a capacidade de perceber a loucura dos nossos tempos, de ver além do estabelecido e através da arte sermos agentes no social, contribuindo para o avanço da “pesada carroça da humanidade.”
É digno de nota que kandinsky não se furta de fazer menção à uma espécie de efeito colateral deste caminho para uma experiência espiritual ao qual pode tomar o artista:
“Esse esquema da vida espiritual... [esconde] todo um lado de sombra, uma grande face obscura, uma mancha morta. Com demasiada frequência, esse pão converte-se no alimento de todos aqueles que se mantém num plano mais elevado. Mas, para eles, pode vir a se tornar um veneno. Uma pequena dose basta para agir sobre a alma... Absorvido, em dose elevada, esse veneno arrasta a alma em sua queda brutal. Num de seus romances, Stenkiewicz compara a vida espiritual à natação; aquele que não trabalha sem descanso e não luta incessantemente está condenado a afundar. É então que o dom natural do homem, o ‘talento’... pode tornar-se uma maldição para o artista que o recebeu e também para todos aqueles que comerem desse pão envenenado.” KANDINSKY
Penso que este fragmento serve de alerta ao arteterapeuta para que esteja atento a si, sua biografia, suas próprias “necessidades interiores” e que dê espaço a elas nos lugares oportunos: a própria terapia e a supervisão. Estes são os espaços propícios para que o arteterapeuta não se envenene, que permaneça nadando e não afunde. As consequências para um terapeuta com a sensibilidade artística que não cuida de si e se propõe a cuidar do outro são catastróficas para todos.
Concluo com kandinsky que incentiva seu leitor à esta tão profunda mudança de rumo através da experiência da arte:
“Quem quer que mergulhe nas profundezas de sua arte, em busca de tesouros invisíveis, trabalha para erguer essa pirâmide espiritual que chegará ao céu”. KANDINSKY

 Caso você tenha se identificado com a proposta do “Não palavra abre as portas” e se sinta motivado a aceitar o nosso convite, escreva para naopalavra@gmail.com
Assim poderemos iniciar nosso contato para maiores esclarecimentos quanto à proposta, ao formato do texto e quem sabe para um amadurecimento da sua ideia.

A Equipe Não Palavra te aguarda!

Referências Bibliográficas:
MORAES, Eliana. Uma arte que nos salve da loucura destes tempos: Dadaísmo e Arteterapia
KANDINSKY, Wassily. Do espiritual na Arte
VERSARI, Maria Helena. Grandes mestres: Kandinsky

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