Por
Eliana Moraes - (MG) RJ
naopalavra@gmail.com
“Lutar com palavras
é a luta mais vã.
Entanto lutamos
mal rompe a manhã...
Não me julgo louco.
Se o fosse, teria
poder de encantá-las.
Mas lúcido e frio,
apareço e tento
apanhar algumas
para meu sustento
num dia de vida...
Lutar com palavras
parece sem fruto.
Não têm carne e sangue…
Entretanto, luto.
Palavra, palavra
(digo exasperado),
se me desafias,
aceito o combate.
Quisera possuir-te
neste descampado,
sem roteiro de unha
ou marca de dente
nessa pele clara...
Luto corpo a corpo,
luto todo o tempo,
sem maior proveito
que o da caça ao vento....”
O
Lutador, Carlos Drummond de Andrade
Neste ano em
que completo 10 anos de prática clínica tenho feito o exercício de trazer à
memória alguns pacientes que fizeram parte deste caminho, que me desafiaram e
consequentemente me construíram e lapidaram como terapeuta. Pacientes que
demandaram muito estudo, supervisão, mas sobretudo uma intuição aguçada para a
escuta e o manejo naquele momento em frente ao (lado do) paciente.
Sem dúvida um
dos fenômenos que mais me intrigaram é aquele em que o paciente tomado por
enorme angústia, não encontra palavras que lhe sirvam como expressão, que lhe
organize e “sossegue”. Hoje vejo que não por acaso, intuitivamente nomeei o
espaço que comportaria os registros dos meus estudos e pensamentos da minha
prática profissional como “Não Palavra”.
Venho de
uma primeira formação em psicologia ao qual somos orientados para o manejo
prioritariamente a partir das palavras de nossos pacientes. Fui construindo meu
caminho buscando orientação na literatura psicanalítica para a prática clínica
e atualmente faço parte de uma escola de psicanálise para que cada vez mais me
instrumentalize para uma boa escuta.
Para Lacan o “inconsciente está estruturado como uma
linguagem... Estruturado significa fala, meu léxico etc.”. A psicanálise é alicerçada na clínica estrutural, orientada (mas não engessada) pelos conceitos
das estruturas psíquicas. E para Lacan “O
que cria a estrutura é a maneira pela qual a linguagem emerge no início num ser
humano. É isso, em última análise, o que nos permite falar em estrutura.”
(LACAN in JORGE) Por este motivo ele tanto se dedicou aos estudos e à articulação da Linguística
de Saussure com a psicanálise. Entretanto, ele próprio em um dado momento
reconhece que o inconsciente é não-todo estruturado como linguagem, quando por
exemplo o “real” comparece e falta a palavra, falta algum significante que dê
contorno ao sujeito.
A clínica me
mostra que este fenômeno não é tão raro de acontecer. E como profissional da
clínica da Arteterapia, nestes casos me lembro de Roland Barthes, um dos mais
importantes teóricos da teoria da literatura e também um dos grandes filósofos
franceses do Século XX: “A língua é
fascista.” Para Barthes “... a língua não é nem reacionária nem
progressista, ela é pura e simplesmente fascista... porque o fascismo não
consiste em impedir de dizer, mas em obrigar a dizer.” (BARTHES in SYLLA)
Não acabe aqui
o aprofundamento na densa teoria de Barthes, mas nos interessa saber que o
autor associa o impacto das estruturas linguísticas ao impacto de um PODER
sociopolítico e não se exime de convocar aos intelectuais e escritores a
desempenharem um papel de resistência a este poder:
“... a resistência apenas seria possível fora do poder da linguagem, no
seu além, mas este além que conferiria um espaço de liberdade, não existe...
Contudo, segundo o autor, o intelectual deverá ser persistente na
resistência, embora esta se pareça com uma espécie de missão impossível...
Não havendo um exterior à linguagem num espaço fora ou além da
linguagem, cria-se então este além no interior da própria linguagem,
precisamente pela estratégia da criação
de não-lugares...” (SYLLA)
Penso que a
arte está para este “não-lugar” da linguagem e o arteterapeuta seu embaixador.
Relato de caso
"Assim,
cada arte chega, pouco a pouco, ao ponto em que se torna capaz de
exprimir, graças aos meios que lhe são próprios, o que só ela está qualificada
para dizer." (KANDINSKY)
Há cerca de um
ano recebi na clínica uma paciente com o diagnóstico de transtorno bipolar em
um quadro depressivo severo. Um membro da
família assistiu o filme de Nise da Silveira e intuitivamente compreendeu que a
arte poderia contribuir para alguém no limite de seu sofrimento. Assim, me
procurou como arteterapeuta, endossada pelo psiquiatra e pela psicoterapeuta que
a acompanhavam, pois notoriamente sua cognição e a fluência verbal estavam
comprometidas devido a gravidade do quadro, mas também pelos efeitos
colaterais do tratamento.
Como fui
procurada como arteterapeuta, justamente pelos potenciais terapêuticos da arte
e seus materiais, propus uma “primeira entrevista” diferente, em que deixei
disponível sobre a mesa diversos materiais de variadas linguagens da arte, como
desenho, pintura, colagem e modelagem. Entretanto, ao meu primeiro contato com
a paciente ficou claro seu estado de extremo esvaziamento, pensamento
lentificado, fala monossilábica. Compreendi que aqueles estímulos se
apresentavam como uma poluição de todas as ordens e decidi começar “do zero”. Lancei
mão de uma mandala para colorir e pedi que ela preenchesse aquilo que estava
vazio e trouxesse cor ao que não tinha. Após alguns instantes ela começou a
esboçar alguns movimentos. Seus traços enfraquecidos, seu ritmo lentificado e
os espaços que ainda permaneceram em branco me contaram um pouco mais sobre
aquela pessoa. Saltou-me aos olhos que a área interna da mandala foi preenchida
com cores quentes e os elementos da periferia permaneceram vazios. Ela estava
“voltada para dentro” mas ainda havia energia ali. Eis uma primeira entrevista
sem uma palavra.
O trabalho foi
seguindo seu curso através das cores. Orientada por uma de minhas grandes
referências teóricas para a prática da Arteterapia, Wassily Kandinsky, as cores
possuem a capacidade de agir como um estímulo psicológico e sensorial. Cada cor
possui um conteúdo intrínseco próprio, um conteúdo força, uma potência. Apostei
que as cores poderiam “afetar” ou “provocar” algum desejo ou movimento nesta
moça, além de que por sua “simplicidade”, poderiam servir de linguagem
expressiva para alguém tão embotado.
A cor preta
apareceu de forma natural e apostei em trabalhar o significante “bipolar” –
para além de um diagnóstico, mas um movimento humano da oscilação entre os
opostos, paradoxos e antagonismos - através das cores preto e branco. Foram
feitos diversos trabalhos explorando a polaridade preto/branco mas também a
percepção aguçada e o investimento no degradê, nas diversas tonalidades ou
possibilidades que existem entre eles, o(s) cinza(s).
Em seguida
passamos a explorar outras polaridades em cores. Tomando como referência a
teoria das cores, o círculo cromático é dividido por cores que podem ser
consideradas opostas/complementares (deixo aqui a sugestão de pesquisa e
aprofundamento deste tema pois em muito contribui para meu olhar na clínica da
Arteterapia como um todo). São elas vermelho/verde, azul/laranja, amarelo/roxo.
Esta última polaridade escolhida pela paciente a ser trabalhada.
Em um dos
trabalhos a partir deste estímulo, desta vez através da colagem, a paciente
produziu a imagem que ilustra este texto (mediante sua autorização). Esta foi a
primeira vez que estes símbolos, que ao longo do processo se tornaram
recorrentes, se constelaram em imagem. Formas como um rolo ocupavam a cabeça,
mas por algum motivo a boca era impedida de expeli-los. Esta imagem me impactou
profundamente pois percebi que incialmente não se tratava de interpretar ou
descobrir qual era a natureza do impedimento para a boca. Tão pouco o caso de
minimizar ou deslegitimar aquele impedimento e solicitar, demandar sua fala. O
fato era que havia ali um ser humano sem nenhum comprometimento do aparelho fonatório, em profunda angustia pois pensamentos a
consumiam mas eram interditados à
palavra.
Porém, a
imagem gritava. Por imagem falou. E ali mais uma vez tive a certeza que a
arte, os materiais, o ato criativo, servem de linguagem para aqueles que por
algum motivo não podem falar com as palavras.
Assim surgiu a
questão da angústia, antes mesmo de suas questões pessoais, diante da demanda externa para que ela
produzisse palavras e falasse. Percebi que o setting arteterapêutico exerceria
ali um outro convite à expressão interditada. Novos caminhos, novo vocabulário,
novas “palavras-imagens” (ver texto de Beatriz Abreu aqui), nova comunicação.
O profundo
investimento pessoal que gradativamente foi emergindo a cada agir criativo me
mostravam que estávamos no caminho certo. Com poucas ou nenhuma palavra aquela
moça criava, se debruçava, explorava seus recursos como os materiais
disponíveis a cada proposta, o espaço disponível no papel/superfície para cada
trabalho, o tempo de sua sessão (que em
alguns momentos tornara-se curto). Estas expressões aguçavam minha escuta como
arteterapeuta que sou, instrumentalizada para a escuta do processo, a escuta do
agir. As imagens produzidas, riquíssimas de conteúdos, questionamentos pessoais
além de críticas ao social altamente pertinentes.
Se o amigo
leitor espera por um “grand finale” para
este relato, digo que ele não existe, pois ainda está em aberto – a vida é um processo. Esta moça segue na
luta pela sobrevivência e pessoalmente sou muito empática a ela quando diz o
quão é difícil viver. O que podemos dizer é que ela encontrou um possível, um
caminho para dar passos de enfrentamento
rumo ao desconhecido da vida.
Viver não é
fácil. Mas, graças a Deus pela arte que nos estende a mão, oferecendo uma
linguagem quando é impossível a palavra.
Caso você tenha se identificado com a proposta do “Não palavra abre as portas” e se sinta motivado a aceitar o nosso convite, escreva para naopalavra@gmail.com
Assim poderemos iniciar nosso contato para maiores esclarecimentos quanto à proposta, ao formato do texto e quem sabe para um amadurecimento da sua ideia.
A Equipe Não Palavra te aguarda!
Referências teóricas:
JORGE, Marco
Antonio Coutinho. Freud e a invenção da clínica estrutural in Futuros da Psicanálise.
KANDINSKY, Wassily. Do espiritual na arte.
SYLLA,
Bernhard. Roland Barthes: “A língua é fascista”: aproximações a um topos da
filosofia do século XX.