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segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Kandinsky, Gestalt e a Arteterapia (Parte II)

Por Maria Cristina Resende


Psicologia da Gestalt também é conhecida como Psicologia das Formas, mas não podemos nos confundir ao acreditar que é uma psicologia que preza os formatos, formas é diferente de formatos. Entendemos como formatos os moldes, uma forma que adquiriu um significado e por formas entendemos como a possibilidade de ser qualquer coisa, ou seja, um significante. É assim que Kandinsky expressa sua arte, a partir de formas, de significantes e a Gestalt nos explica como existe uma tendência em traduzirmos essas formas em formatos, ou seja, como nós, seres humanos, tendemos, inata e pelo aprendizado, a organizar essas formas para que elas nos transmitam uma mensagem de melhor conforto para nossa mente consciente, pois é aqui que a Gestalt se se debruça.
Para a Psicologia da Gestalt e, posteriormente, a Gestalt-terapia, a consciência é tudo que temos para analisar, pois é nela onde os fenômenos se apresentam. Não há a preocupação em buscar uma causa ou uma instancia inconsciente que governe nossas ações. Sua abordagem é fenomenológica, e uma de suas fontes filosóficas é o existencialismo.
Nos estudos da Psicologia da Gestalt nos deparamos com alguns conceitos e algumas leis da percepção, ou seja, o modus operandi de como nossa percepção, a capacidade de receber a sensação e decodifica-la, se organiza para compreender um fenômeno, um estímulo.

Dentre esses conceitos temos o de figura-fundo, ou seja, a figura como aquilo que está no topo na nossa cadeia de hierarquias e o fundo como todo o contexto por trás dela. 


O que você vê nesta imagem? Apenas uma figura?

Mas como essa teoria pode nos ajudar em nossa prática enquanto Arteterapeuta?
Trabalhamos basicamente com as imagens produzidas pelo nosso cliente, independente do material escolhido ou sugerido. As imagens são a expressão de sua percepção sobre seus afetos, suas relações, seus pensamentos e suas angústias. Muitas vezes as hierarquias não estão bem estabelecidas e vemos numa mancha de tinta, ou numa colagem um completo caos, uma desorganização que muitas vezes traz uma inércia, um não saber de onde partir e para onde ir. Identificar através de algumas técnicas a figura que emerge dessa Gestalt (forma) é ajudar a buscar um fluxo de abertura e fechamento de Gestalten, ou seja, uma capacidade de sentir a necessidade, ir a busca de sua saciedade, analisar e despotencializar as interrupções desse movimento e com isso partir para novas etapas do processo terapêutico e, mais além, o processo da nossa vida.
Vemos também o princípio de agrupamento, onde nossa percepção tende a agrupar estímulos que possuam alguma semelhança entre si. Há também o fechamento, ou seja, tendemos a completar, preencher falhas de estímulos que se apresentem a nós. Nossa percepção tende a nos colocar num entendimento sobre a vida de forma mais simples e mais confortável para nós, isso nos mostra que para conseguirmos enxergar de forma clara aquilo que se apresenta é preciso um esforço de olhar para além dos formatos e perceber as formas e as múltiplas possibilidades que existem ali.


Foi isso que Kandinsky expressava com o abstracionismo, as formas e suas potencias, com suas tensões e conflitos, com a busca em equilibrar, sem negar, nem esconder. Argan completa
“a arte [...], é a consciência de algo de que, de outra forma, não se teria consciência: não há duvida de que ela amplia a experiência que o homem tem da realidade e lhe abre novas possibilidades e modalidades de ação. E o que é conscientizado pela consciência que se realiza na operação artística? O fenômeno enquanto fenômeno. [...] A finalidade última de Kandinsky é levar o fenômeno enquanto tal à consciência, de fazê-lo ocorrer na consciência; como o fenômeno é existência, aquilo que se leva e se faz ocorrer na consciência é a própria existência. Esta é a função insubstituível da arte.”

É importante o profissional e o estudante de arteterapia buscar a força da obra produzida, buscar o todo, buscar atingir o fluxo de necessidades e o movimento em busca de saciá-las.
Buscar o fluxo do vir a ser, o movimento de entrar em contato com o mundo e com as várias possibilidades que existem nele, para além do mundo dos formatos pré-estabelecidos.
Nestas sequencias de publicação podemos ter um breve vislumbre de novas modalidades de ver e estudar a arteterapia, que não excluem outras que já fazem parte do método escolhido pelo profissional, mas soma à sua prática e amplia suas próprias percepções sobre essa grande área que se estabelece cada vez mais que é a Arteterapia.

Bibliografias usadas:

NICOLETTO, Ugo. RIZZON, Luiz Antônio. BISI, Guy Paulo. BRAGHIROLLI, Elaine Maria. Psicologia Geral. Ed. Vozes. 23ª edição. Petrópolis, RJ.
FAGAN, Joen. SHEPHERD, Irma Lee. Gestalt-Terapia. Teoria, Técnicas e Aplicações. Ed. Zahar 4ª edição. Rio de Janeiro, RJ
KANDINSKY, Wassily. Do espiritual na arte. Ed. Martins Fontes. Rio de Janeiro.
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. Ed. Companhia das Letras.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Kandinsky, Gestalt e a Arteterapia (Parte I)


Por Maria Cristina Resende


Quando estudamos a história da humanidade percebemos que cada área do saber retrata, à sua maneira, as realidades externas e internas do homem e seu desenvolvimento. Fazendo um recorte entre o final do século XIX até meados do século XX vemos que esse desenvolvimento foi marcado por inúmeras rupturas do pensamento vigente. Tanto as ciências exatas, quanto a filosofia, a psicologia e as artes em geral sofriam uma mudança brusca em seus alicerces, assim como a política e a economia ocidental.

Até o final do século XIX a arte ensinada pela academia prezava a retratação da natureza o mais fiel possível, herança recebida da Renascença. O ápice deste ideal foi alcançado com os Impressionistas, que em suas telas “aplicavam pinceladas curtas e manchas que traduzissem os reflexos vacilantes de uma cena ‘ao ar livre”’, ou seja, buscavam a retratação da natureza através da perfeita percepção ocular dos objetos sob a incidência da luz. Com isso, Gombrich nos traz à reflexão que neste momento da arte “foi como se todos os problemas de uma arte que visasse à imitação da impressão visual tivesse sido solucionados”, mas posteriormente a essa meta alcançada foi “como se a insistência nessas metas não tivesse mais nada a acrescentar”.

Como ir além???

No início do século XX um jovem advogado busca um novo sentido para sua vida através da arte. Wassily Kandinsky renuncia a carreira do direito e se volta ao mundo artístico após conhecer o movimento Impressionista. Entretanto, o que mais lhe chama a atenção, não fora o objetivo deste movimento, mas sim a forma como os objetos eram pincelados, quase sem contorno.

Sua arte foi filha de um tempo em que os contornos existentes foram se esvanecendo conforme a ciência atomizava os blocos de concreto, enquanto a psicologia mergulhava em instâncias impossíveis de serem vistas aos olhos da razão, num momento em que as formas pré-estabelecidas foram sendo lentamente dissolvidas em um novo paradigma da cultura ocidental. Valores, costumes, crenças, política e economia não satisfaziam mais aos anseios de homens e mulheres que buscavam dar sentido a todas as novas descobertas. Segundo o próprio Kandinsky “toda obra é filha de seu tempo e, muitas vezes, mãe dos nossos sentimentos[1], logo, uma nova arte que pudesse expressar os novos tempos começou a ser delineada.

Neste movimento, Kandinsky se deteve nas formas simples, nas cores e nos fenômenos que se apresentavam à consciência sem buscar explicações na natureza dos objetos para tais aparecimentos, pois para ele

o mundo que nossos sentidos nos desvendam é um conjunto de fenômenos que tem poucas relações com a realidade das coisas. [...] Assim, a arte não precisa imitar um mundo que sequer possui realidade filosófica e cuja própria realidade material a descoberta do átomo fará vacilar.”

Ou seja, Kandisnky está descrente do mundo das formas, descrente de uma arte que visa imitar a natureza e seus objetos tal como aparecem para nossos olhos. Há algo por traz disso, há algo que antecede isso, algo mais puro, mais essencial. Argan explica que Kandinsky buscava nas formas “um conteúdo intrínseco próprio; não um conteúdo objetivo ou de conhecimento (como aquele que permite conhecer e representar o espaço através de formas geométricas), e sim um conteúdo-força, uma capacidade de agir como estímulo psicológico[2].

Chegamos ao ponto onde arte abstrata de Kandinsky se aproxima da psicologia. Pois ambos trabalham com forças que atuam sobre o homem e que possibilitam um estímulo para a conscientização e um movimento de sua existência.

Na análise de sua teoria e de suas obras somos convidados a conhecer um pouco mais sobre uma teoria da psicologia muito pouco falada nas formações e cursos de arteterapia, a Psicologia da Gestalt. Acredito que muitos profissionais podem não querer se aproximar devido ao objeto de estudo desta teoria, a consciência e como ela percebe o mundo. Há uma maior ênfase nas psicologias profundas, principalmente a Teoria Junguiana.

Em uma próxima publicação vamos compreender melhor como a Psicologia da Gestalt pode contribuir para uma compreensão das obras produzidas pelos nossos clientes e de como ele percebe o mundo ao seu redor além de suas próprias necessidades.
Bibliografias usadas:

NICOLETTO, Ugo. RIZZON, Luiz Antônio. BISI, Guy Paulo. BRAGHIROLLI, Elaine Maria. Psicologia Geral. Ed. Vozes. 23ª edição. Petrópolis, RJ.
FAGAN, Joen. SHEPHERD, Irma Lee. Gestalt-Terapia. Teoria, Técnicas e Aplicações. Ed. Zahar 4ª edição. Rio de Janeiro, RJ
KANDINSKY, Wassily. Do espiritual na arte. Ed. Martins Fontes. Rio de Janeiro.
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. Ed. Companhia das Letras.





[1] KANDINSKY, Wassily. Do espiritual na arte. Ed. Martins Fontes.
[2] ARGAN. A arte Moderna.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

O QUADRADO E O CÍRCULO NA CLINICA DA ARTETERAPIA


Por: Eliana Moraes


Quando

Quando olho para mim não me percebo.
Tenho tanto a mania de sentir
Que me extravio às vezes ao sair
Das próprias sensações que eu recebo.

O ar que respiro, este licor que bebo,
Pertencem ao meu modo de existir,
E eu nunca sei como hei de concluir
As sensações que a meu pesar concebo.

Nem nunca, propriamente reparei,
Se na verdade sinto o que sinto. Eu
Serei tal qual pareço em mim? Serei

Tal qual me julgo verdadeiramente?
Mesmo ante as sensações sou um pouco ateu
Nem sei bem se sou eu quem em mim sente.

Álvaro de Campos
 (Heterónimo de Fernando Pessoa)

                Quando me deparei com este poema de Fenando Pessoa imediatamente me veio à mente um perfil de pacientes que não raro recebemos na clínica da arteterapia. São pacientes que apresentam uma latente desorganização, um vulcão de emoções e sensações ao qual não são capazes de administrar e são tomados por elas. Pacientes empobrecidos em sua função pensamento, com dificuldade de racionalizar e tomar consciência de tudo aquilo o que sente e por este motivo, o domina e transborda. E muitas vezes transborda também para seu corpo, apresentando sintomas físicos recorrentes e dolorosos. Pacientes que sofrem e são reféns de seu sofrimento. De minha prática posso citar pacientes depressivos, com transtornos de ansiedade e histéricos graves.
                Este perfil de paciente é carente de contorno, eixo, foco, limite, base, “segurança”. E são muito beneficiados com técnicas estruturantes e organizadoras na arteterapia. Sem este momento de estruturação ele não tem condições de se reconhecer, se pensar e fazer movimentos de mudança. E a prática nos mostra que neste momento, recursos para os quais muitas vezes nós arteterapeutas “torcemos o nariz” se mostram excelentes  para o paciente: as retas, as réguas, a geometria. Lembro aqui a grande artista Loise Bourgeois: Geometria: Regras imutáveis, confiáveis, seguras. Diferente das relações pessoais”.  E precisamos reconhecer quando nosso paciente precisa de segurança para continuar em seu caminho de autoconhecimento.
            Esta questão me lembra as discussões do nosso grupo de estudos “A prática da Arteterapia” no qual discutimos amplamente a importância do arteterapeuta “levantar seu olhar” das técnicas aprendidas em sala de aula e desenvolver e apurar seu olhar para o paciente. Da mesma forma, deslocar seu olhar de si mesmo, aquilo que deseja trabalhar, as técnicas que deseja aplicar, como deseja narcisicamente conduzir a jornada de autoconhecimento de seu paciente. Quem é seu paciente? Aonde ele está? O que ele deseja? O que ele pode? O que ele precisa?  
            Se compreendemos que as criações dos grandes artistas são por definição expressões humanas e percebemos o grande número de artistas que lançaram mão da geometria e das retas em sua arte, e além disso aprofundaram-se amplamente no seu estudo expressivo e simbólico, não podemos negligenciar este potencial. Em arte, produção de imagens e expressão com fim terapêutico não existe certo ou errado, mocinho ou bandido, ou somente um caminho possível.

          Ao arteterapeuta cabe não ter uma visão limitada ou se restringir, mas ter um rico leque de opções de técnicas para acioná-las a cada passo de seu paciente. Um rico leque significa técnicas de expansão e desconstrução mas também técnicas de estruturação e organização. Que nós arteterapeutas possamos também sorrir para a geometria e para as réguas.  Ao desestimularmos o acesso de nosso paciente a ferramentas tão exploradas na arte como a geometria e seus instrumentos por considerá-los limitantes, bloqueadores da livre expressão e da criatividade, não seríamos nós os limitadores?