segunda-feira, 19 de outubro de 2015

"TEM UMA CÂMERA AQUI DENTRO" - Relatos sobre a sincronicidade no setting de Arteterapia


 por Maria Cristina de Resende

Ao longo da minha experiência em consultório, que está para completar uma década, fui observando uma série de relatos a respeito de situações onde podemos verificar o fenômeno da sincronicidade. Para aqueles que vivem tais situações, são apenas coincidências, entretanto, para aqueles que trabalham a partir da Teoria Junguiana ou flertam com seus conceitos, fica claro que tais coincidências fazem parte deste grupo de fenômenos não explicáveis pela lei de causa e efeito.

O ultimo relato ouvido no setting terapêutico foi de uma paciente que, numa mistura de surpresa e medo, começou uma das sessões com esta frase: “tem uma câmera aqui dentro, pois tudo que é falado aqui gera uma onda de coincidências bizarras”. Este fenômeno “bizarro” é a sincronicidade, descrita por Jung como:

 “[...] a simultaneidade de um estado psíquico com um ou vários acontecimentos que aparecem como paralelos significativos de um estado subjetivo momentâneo e, em certas circunstâncias, também vice-versa”.

No livro Sincronicidade, 2011, Jung começa sua exposição do tema apresentando uma série de pesquisas demonstrando a relação do individuo com fenômenos sem relação causal e conclui que a lei de causa e efeito não se aplica a tais eventos. Entretanto, eles se manifestam. Qual seria então a explicação para eles? “[...] ao lado da conexão entre causa e efeito, existe na natureza também outro fator que se expressa na sucessão dos acontecimentos e parece ter significado”, ainda que este significado seja difícil de ser reconhecido pelo pensamento ocidental e racional. Jung então, se volta para a pesquisa dentro de tradições mais antigas que podem nos ajudar a compreender um pouco sobre a temática.

Na filosofia tradicional chinesa o conceito do Tao é usado por Jung para compreender sobre o sentido dos eventos da sincronicidade. Muitas traduções podem ser encontradas para o Tao, mas aquela que melhor o define é “nada”. “O ‘nada’ é evidentemente, o ‘sentido’, ou a ‘finalidade’, e chama-se nada justamente porque em si ele não aparece no mundo dos sentidos, mas é apenas seu organizador”.

“O sentido [Tao] é a simplicidade suprema sem nome.
Se os príncipes e os reis pudessem conservá-lo,
Todas as coisas seriam os seus comensais.
O povo viveria em harmonia, sem precisar de leis e ordens.
O Tao não opera,
E, no entanto, todas as coisas são feitas por ele.
Ele é impassível
E, no entanto, sabe planejar.
A rede de céu é tão grande, tão grande,
De grandes malhas, mas não deixa escapar nada”

Isso me remete à ideia que defendemos ao longo de nossos escritos sobre a busca na Arteterapia pelo significado da obra (O que é?), uma busca reducionista que pode ser transformada pela compreensão da força e do sentido que a obra possui (Como te afeta? O que te evoca?). Kandinsky dispensa as formas libertando as forças e neste contexto o ateliê de Arteterapia pode ser o local onde as formas podem ser libertadas e as forças podem ser evocadas.

Tais forças, presentes nesta malha organizadora que o Tao apresenta, podem ser acessadas através do mergulho no setting arteterapêutico e no uso dos materiais com suas diferentes linguagens. Esta modalidade de atendimento convida o paciente a estar em um estado de atenção e reflexão intenso, pois aqui, durante o processo de sua imagem, há a necessidade de um alinhamento entre a objetividade da realidade material (incluindo os próprios materiais) e a realidade subjetiva, os afetos, os desejos, o Eros. Neste alinhamento, tempo e espaço se reconfiguram e a malha se torna acessível.

M. C. Escher.

Quando o paciente mantem este estado de atenção para além do espaço terapêutico, as manifestações do fenômeno da sincronicidade podem então ser facilmente observáveis. Sendo assim, a ocorrência desses fenômenos não aumenta durante um processo terapêutico, elas se tornam mais claras, pois a atenção dada a si mesmo pelo paciente o coloca em contato direto com esta malha organizadora.
Sobre a atenção e o interesse e sua relação com a sincronicidade, Jung relata em suas observações nas pesquisas iniciais que:

 “Uma experiência constante em todos estes experimentos é o fato de o número de acertos tender a diminuir depois da primeira tentativa e os resultados são, consequentemente, negativos. Mas se por qualquer motivo exterior ou interior ocorre uma reativação do interesse do SE, o número de acertos volta a subir. A ausência de interesse e o tédio são fatores negativos; a participação direta, a expectativa passiva, a esperança e a fé na possibilidade da ESP [Extra-Sensory Perception, percepção extra-sensorial] melhoram os resultados e, por isto, parecem constituir as condições adequadas para que os mesmos se verifiquem”.

Sendo assim, concluo esta primeira explanação, com a reflexão sobre a força e a profundidade de um processo arteterapêutico e sua relação com a sincronicidade, isto devido à atenção e a percepção que tal abordagem convida o paciente a ter. A arte por sua vez também nos afirma que o mergulho diante do processo criativo de uma obra nos coloca dentro de um contexto onde a própria existência é percebida enquanto fenômeno, e para tal afirmação convido Argan a dizer sobre isso, a partir de Kandinsky:

[...] A arte, portanto, é a consciência de algo de que, de outra forma, não se teria consciência: não há dúvida de que ela amplia a experiência que o homem tem da realidade e lhe abre novas possibilidades de ação. E o que é conscientizado pela consciência que se realiza na operação artística? O fenômeno enquanto fenômeno. A consciência “racional” assume o fenômeno enquanto valor, mas no mesmo instante perde-o como fenômeno. A finalidade última de Kandinsky é levar o fenômeno enquanto tal à consciência, de fazê-lo ocorrer na consciência; como o fenômeno é existência, aquilo que se leva e se faz ocorrer na consciência é a própria existência. Esta é a função insubstituível da arte”. (ARGAN, 1998, p. 320).

M. C. Escher.

Referências Bibliográficas:
ARGAN, G. C. Arte Moderna. 5º reimpressão. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1998.
JUNG, C.G. Sincronicidade. Vozes, 2011.
KANDINSKY, W. Do espiritual na arte e na pintura em particular. 2ª ed. 2ª imp. São Paulo : Editora Martins Fontes,2000.

Contato: naopalavra@gmail.com

terça-feira, 13 de outubro de 2015

A EXPRESSIVIDADE DA PESSOA IDOSA - Um registro

O blog "Não Palavra" recebe como convidada uma querida amiga que tem dialogado conosco,  nos recebido em seu espaço tão acolhedor e de forma generosa trocado experiências e práticas. Luciana Machado, arteterapeuta conhecida por seu trabalho com idosos, hoje nos presenteia com um registro de sua participação no congresso de geriatria "GeriatRio 2015". Este registro é digno de nota uma vez que acreditamos e trabalhamos para que a Arteterapia seja respeitada e requisitada pela a equipe multidisciplinar e profissionais de saúde no cuidado com idosos e demais campos de atuação.

Bem vinda Lu!


Por Luciana Machado


Compartilho neste texto o tema apresentado por mim no CONGRESSO GERIATRIO 2015 , ocorrido entre 03 e 06 de setembro no RJ, na mesa – A EXPRESSIVIDADE DA PESSOA IDOSA. A mesa foi composta por representantes de diversas formas de terapia, sendo estas a Psicologia, a Musicoterapia, a Gerontopsicomotricidade e a Arteterapia, sendo nesta última o meu enfoque e onde tenho dez anos de atuação. Vale ressaltar, que esta foi a primeira vez que a Arteterapia teve espaço em um congresso de Geriatria e Gerontologia. Esta é mais uma grande conquista!

Durante os vinte minutos que tive na mesa do Congresso em questão, tentei transmitir uma base do que é a Arteterapia, e apresentar minha experiência no Projeto Rodarte, que mantenho há mais de dez anos ao lado de minha mãe Sonia Santos e, atualmente as voluntárias: Ana Lucia Machado dos Santos, Fernanda Sousa, Leila Amaral, Luana dos Santos Jabour, Mary Gomes Rai Silva e Tania Borges.

A linha de raciocínio foi falar da Arte, da Arteterapia e de seus benefícios até chegar neste Projeto, pois este é a prática e a experiência que possuímos capaz de provar todas as teorias citadas naquele momento. Sendo assim, citei a origem da arte, com os desenhos e pinturas rupestres pois a mesma é de origem milenar, é a expressão e o registro mais antigo dos diferentes potenciais humanos. Ao se expressar com e através da arte o homem o faz por inteiro; seu corpo, sua percepção, sua emoção, sua intuição estão presentes e atuantes, deixando a sua marca, fazendo-se conhecer.

Citei a Dra. Nise da Silveira, como uma grande Psiquiatra que trocou os eletrochoques por tintas e pincéis, ou seja, por atividades criativas revolucionando a seção de terapia ocupacional do Hospital Pedro II. Seu legado é de grande valor para todos aqueles que trabalham com a produção e leitura de imagem com olhar terapêutico. Em seguida
 falei da Arteterapia e citei depoimentos de alguns dos participantes de nosso Projeto.

O atendimento de Arteterapia com idosos pode ser realizado  individualmente ou em grupo, ou até mesmo em domicílio - indicado para aqueles com dificuldade de locomoção ou declínio cognitivo mais avançado.

Mostrar o nosso trabalho em um congresso médico é um passo importante para os arteterapeutas, um merecido reconhecimento dos resultados, do esforço e dedicação dos profissionais, cada vez com maior visibilidade.

Atualmente o número de Geriatras no Brasil está em torno de 1.400 profissionais e acreditamos que esta parceria em um trabalho de prevenção resultará em um benefício sem igual. Geriatras e Gerontólogos podem e devem indicar aos seus pacientes trabalhos arteterapêuticos, pois assim poderão beneficiar um número cada vez maior de idosos.

A Arte cura e a Arte é para todos!!!!


Para quem quiser conhecer um pouco mais sobre o trabalho de Luciana Machado e o trabalho do Projeto Rodarte:


segunda-feira, 5 de outubro de 2015

SALVADOR DALI E MANOEL DE BARROS EM DIÁLOGO POR UM ANIVERSÁRIO


Por Eliana Moraes

Eu não amava que botassem data na minha existência.
A gente usava mais era encher o tempo.
Nossa data maior era o quando.
O quando mandava em nós.
A gente era o que quisesse ser só usando esse advérbio.
Assim, por exemplo: tem hora que eu sou quando uma árvore
e podia apreciar melhor os passarinhos.
Ou tem hora que eu sou quando uma pedra.
E sendo uma pedra eu posso conviver com os lagartos e os musgos.
Assim: tem hora eu sou quando um rio.
E as garças me beijam e me abençoam.
Essa era uma teoria que a gente inventava nas tardes...

Manoel de Barros em “Memórias inventadas: a segunda infância”


Durante o último mês estive refletindo sobre  o tema “Tempo”, especificamente sobre o tempo de vida ou o tempo na vida. Esta questão me atravessou porque hoje, cinco de outubro é meu aniversário e completo 31 anos. Quando me dei conta que esta data se aproximava, uma pontinha de tristeza me surpreendeu com uma estranha sensação de perda: a perda dos “30 anos”, a mulher balzaquiana, tão profundamente vivenciada e que tornou-se tão simbólica em minha história de vida.

Entretanto, no decorrer de minhas reflexões percebi que muito mais do que uma idade cronológica apontada pela minha certidão de nascimento, “os 30 anos” tornaram-se uma experiência e estado de alma. Então, para felicitar mais um ano de uma vida bem vivida, tenho repetido para mim mesma: “Que venham os 31, mas que eu não perca a alma de 30 que eu conquistei”.

Estas reflexões ganharam eco  quando demorei-me admirando a tão conhecida obra de Salvador Dali “Relógios Moles”, que ilustra este texto. Contemplá-la me fez lembrar que relógio e calendário foram criações humanas para que pudéssemos nos organizar melhor em nosso dia a dia. Mas o tempo em si é muito maior do que a cronologia e não podemos enrijecê-lo.

Manoel de Barros me presenteou com sua linda visão poética e  me deu a palavra “quando” como data maior. Com ela posso comemorar meus “30 anos” em quantos aniversários eu assim o desejar.

Deste texto autobiográfico posso traduzir como inspiração para minha atuação como psicóloga e arteterapeuta, dois pontos. Primeiramente o uso das expressões artísticas como estímulos no setting terapêutico. Artistas são seres humanos com a sensibilidade ímpar de traduzir em diversas linguagens, percepções, sentimentos e experiências tão profundamente humanas de forma sublime. Um diálogo com estas expressões nos proporcionam uma sensação de encontro, pertencimento e também alguma espécie de “vocabulário” para que possamos (nos) falar.

Em um segundo momento, a reflexão sobre a desconstrução da idade cronológica, seus estereótipos e sensos comuns de cada faixa etária. Em minha prática com o público chamado idoso, constantemente me deparo com clichês que reduzem aquele ser humano em nome de sua idade. A Organização Mundial de Saúde nomeia como idosas as pessoas com mais de 65 anos de idade em países desenvolvidos e mais de 60 anos de idade em países em desenvolvimento. Além disso, subdivide a idade adulta em: meia idade, idoso, ancião e velhice extrema, levando em consideração apenas a idade cronológica do indivíduo.

A teoria da psicanálise, que me ampara em boa parte das minhas reflexões,  nos propõe um olhar para a velhice para além das representações sociais carregadas pelos indivíduos desta faixa etária. Denuncia que há uma inscrição do social (e o social somos cada um de nós) ao velho como inútil, feio, alguém que já cumpriu tudo aquilo que lhe cabia e que não possui mais o desejo. Vale observamos o ato simbólico da instituição da aposentadoria, endereçando este que já cumpriu seus anos de contribuição trabalhista aos seus aposentos apenas para aguardar o fechamento do seu ciclo biológico.

Subvertendo esta ótica, a psicanálise nos propõe o conceito de sujeito e defende que há uma subjetividade para além da idade cronológica ou de um corpo biológico. Particularmente é esta visão que tenho adotado cada vez mais em meu trabalho, e não poderia ser diferente com o público da chamada terceira idade.

Esta também é a visão que quero em minhas reflexões pessoais e na celebração de cada ano de vida que eu vivenciar daqui pra frente. Este espaço que traz no nome “Não Palavra” um convite à ampliarmos nossa escuta sobre a linguagem para além da verbal, hoje proponho a “Não Idade” em um convite ao nos experimentarmos e responsabilizarmos como sujeitos que possuem o  desejo de vida.



CONTATO: naopalavra@gmail.com

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

PENSANDO SOBRE A COLAGEM NA ARTE E NA ARTETERAPIA.

Por Flávia Hargreaves

Henri Matisse, 1953. Guache sobre papel recortado, colado sobre papel montado em tela.

A colagem é uma técnica/linguagem muito utilizada em Arteterapia, e é, com frequência, um dos primeiros trabalhos sugeridos no setting por ser considerado mais “seguro” do que a pintura, por exemplo. Quem já passou pela Arteterapia como cliente já deve ter se deparado com a sugestão de criar uma “colagem de apresentação”. Nada contra, nem a favor ... o texto que se segue é apenas uma reflexão, com mais perguntas que respostas.

Para começarmos a pensar sobre a Colagem e a Arteterapia, é preciso entender que esta ingressa na História da Arte na Arte Moderna, sendo utilizada até os dias de hoje, com técnicas, abordagens e intenções múltiplas. Como a História da Arte é sempre o meu ponto de partida para pensar as técnicas plásticas, sugiro ao leitor um breve passeio pelas obras de Matisse, Picasso, Braque, Juan Gris, Ernst, Schwitters e Arp, e dos poetas Jorge de Lima e Ferreira Gullar. Neste breve texto citarei apenas alguns, mas fica a dica...

Juan Gris, artista cubista, “tal como Braque, disse ter sido atraído para a colagem por causa do sentimento de certeza que lhe proporcionava. [...] Braque se refere aos fragmentos de papel que, mais tarde, foram incorporados aos desenhos como suas ‘certezas’.” (GOLDING, p.46-52). Mais uma vez nos deparamos com o sentido de “segurança” da técnica.

Podemos pensar também sobre a questão de se estar trabalhando com “algo que já existe”, “fora”, ou seja, imagens de revista, papéis coloridos, que não irão exigir do cliente habilidades de desenho, pintura, conhecimento de mistura de tintas, ou ter que “tirar”as imagens de “dentro”.

Yves Tanguy, artista surrealista, fala da pintura e do desenho com uma abordagem interessante, dizendo que a pintura traz mais “surpresas”. Neste caso, ele também se refere à pintura como “menos segura”. Podemos refletir sobre isso ... mas dificilmente encontraremos respostas definitivas. Cada artista e cada cliente irá lidar com os materiais e as técnicas de arte de modos particulares. O que para um parece assustador, para outro se mostra um prazer. Por exemplo, enquanto uma pessoa se sente confortável em buscar imagens prontas e recriá-las numa colagem, para outra esta pode se mostrar uma tarefa angustiante, buscando nas revistas ou caixas de recortes a imagem que já tem em mente, preferiria, talvez, criá-la a partir da sua imaginação.

E, se o cliente gostar tanto de colagem e passar anos em terapia explorando uma única linguagem? Ele estaria limitado? Congelado? Defensivo? Ou simplesmente encontrou a sua expressão? Deveríamos sugerir que "Rodin virasse pintor ou Monet escultor?" [1] Será que podemos fazer esta analogia entre artistas e não-artistas? Eu arriscaria que, neste aspecto, sim.

Também podemos levar em consideração o caso do cliente ser alérgico a tintas ou ter algum impedimento para pintar. Tenho uma amiga que passou por isso, pintou durante décadas e veio uma alergia que a impediu de continuar. Infelizmente não fez como Matisse, que em 1939, recorreu à colagem fazendo recortes com catálogos de tinta. Posteriormente passou a usar papéis pintados com guache, usando a tesoura como lápis ou pincel. Matisse diz: “Cortar diretamente na cor faz-me lembrar o trabalho de escultores em pedra.”

Hans Arp, artista dadaísta, e Ferreira Gullar, poeta e artista diletante, passam por uma experiência semelhante no que diz respeito à colagem e ao acaso na criação. Em episódio frequentemente citado, Arp insatisfeito com um desenho rasga-o em pedaços que caem no chão e se surpreende com a expressão da organização “acidental” e aceita o acaso. Gullar muda seu processo de colagem, que fazia a partir de um desenho prévio, a partir de um “acidente” com o gato que, ao passar, desarrumou seus recortes. Passou a criar jogando os recortes para cima e aceitando o acaso na criação, como Arp. Este processo também deu origem às suas colagens em relevo.

Max Ernst e Hans Arp, 1920. Colagem com fragmentos de fotografia, 
guache, lápis, caneta e nanquim sobre papel cartão.

Ernst, artista surrealista, já traz um outra abordagem da colagem. Diz: “a técnica da colagem é a exploração sistemática do encontro casual ou artificialmente provocado de duas ou mais realidades estranhas entre si sobre um plano aparentemente inadequado, e um cintilar de poesia que resulta da aproximação dessas realidades.” [...] e continua, “fracionar e rejuntar, como faz a colagem, não repõe a unidade quebrada. Ela não pasteuriza nem pacifica. Não tem vocação democrática se isto for entendido como união de todas as diferenças. Há diferenças que não cabem em determinadas formas, mas cabem em outras.” ((Richter, 1993. P. 63).

Acredito que a segurança na colagem seja relativa e que toda a expressão plástica nos reserva grandes surpresas. E talvez a técnica deva ser escolhida pelo cliente desde o primeiro contato, para onde o seu desejo aponta. Mas como coloquei no início deste texto, não tenho respostas, mas “uma colagem” de pensamentos ainda em construção e, claro, um pequeno recorte diante de um tema imenso.

E pra você, o que é colagem?

[1] comunicação verbal de Maddi Damian Jr., dia 19 de setembro de 2015, durante aula da pós-graduação Arteterapia e Processos de Criação, Universidade Veiga de Almeida, RJ.

Este é o tema da próxima palestra do CICLO DE PALESTRAS NÃO-PALAVRA, dia 5 de outubro.

"A Colagem na Arte Moderna e sua contribuição para a Arteterapia" 
com Flávia Hargreaves
Dia 5 de outubro das 18h às 20h.
Local: Casa das Palmeiras. Rua Sorocaba, 800.
Inscrições no local às 17:50h, Contribuição R$ 15,00 por palestra.
A renda será doada à Casa das Palmeiras.

Contato: naopalavra@gmail.com

Bibligrafia:
ESSERS, Volkmar. Matisse. Editora Benedikt Taschen, 1993.
GOLDING, John. Cubismo.  In : STANGOS, Nikos (org.). Conceitos de Arte Moderna. 2 ed. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1991, p. 38-57
PASSETI, Dorothea Voegeli. Colagem: arte e antropologia. Dispoinível em: http://www.pucsp.br/ponto-e-virgula/n1/artigos/02-DodiPassetti.htm
TEIXEIRA, Rafael. Colagens acadêmicas. Veja Rio. 19.11.2014.

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

A DESCONSTRUÇÃO DO AUTOR DIANTE DA SUA OBRA - Um relato sobre as palestras do mês de setembro (2015)

Por Maria Cristina Resende



Quando falamos em obra, podemos tomar este termo como uma imagem geral. Sendo esta todo o produto do nosso desenvolvimento pessoal/profissional/espiritual que se manifesta em algo.

“[...] criar é basicamente formar. É poder dar uma forma a algo novo. [...] novas coerências que se estabelecem para a mente humana, fenômenos relacionados de modo novo e compreendidos em termos novos.” (Criatividade e Processos de Criação).

Ao longo do mês de setembro falei em alguns locais sobre uma linha de pesquisa a qual tenho me dedicado que é compreender o processo de criação e a livre expressão em um ateliê de Arteterapia. Este tema tem sido objeto de muitas controvérsias internas, de muita busca teórica e com isso acaba por revelar alguns buracos teóricos que habitam minha trajetória acadêmica e de formação profissional.

Buscar preencher esses buracos exige dedicação, estudo e principalmente abertura para a desconstrução de perspectivas e pensamentos pré-definidos.

Dentro do ateliê de livre expressão e experimentação o terapeuta pouco fala e muito observa, muito percebe os movimentos de seu cliente. Precisa conhecer profundamente cada material, na teoria e na prática, precisa saber como se dá um processo de transferência, pois ele pode estabelecer uma ponte muito segura para o mergulho na criação ou não. E desse processo estabelecido de forma negativa pode vir também a dificuldade em realizar obras que capturem os conteúdo carregados emocionalmente que precisam ser trabalhados no setting.

É importante que o terapeuta descontrua a ideia da representação, pois nada é representacional, mas sim uma manifestação existencial de algo que habita uma camada de nossa psique que a arte tem o privilégio de acessar, ainda que nem sempre acesse coisas bonitas.

“Eu acho que eles não deveriam olhar para, mas olhar passivamente e tentar receber o que a pintura tem a oferecer, não trazer uma questão ou uma ideia pré-concebida sobre o que é pra ser procurado. Eu acho que o direcionamento que o inconsciente faz significa muito ao olhar as pinturas. Eu acho que elas deveriam ser desfrutadas como uma música.” (Jackson Pollock).

Essas idéias pré-concebidas que Pollock nos fala, são os modus operandi nos quais nos moldamos ao longo de nossa vida, e assim como nosso cliente precisa se esvaziar dessas ideias para começar um processo de criação autêntico e singular, nós, enquanto terapeutas, precisamos da mesma busca na nossa trajetória profissional. Se não mergulharmos no nosso processo de tensão-krísis-kaos-criação, corremos o risco de tudo não passar de uma grande brincadeira de cortar e colar.

E esse mergulho, na Arteterapia, se dá através dos materiais de arte, das possibilidades de criação através deles e da ampliação da percepção do fluxo psíquico diante dessas possibilidades, deixar ser levado por materiais e técnicas que antes nunca foram experimentados ou que nunca foram atraentes. Não se preocupar com o que está sendo feito, mas como está sendo feito.

Alcançar a “consciência do agido e do ato”. Essa deve ser a máxima dentro do processo de nosso cliente e do nosso próprio processo existencial.

“[...] a arte é a consciência de algo de que, de outra forma, não se teria consciência: não há dúvida de que ela amplia a experiência que o homem tem da realidade e lhe abre novas possibilidades de ação. E o que é conscientizado pela consciência que se realiza na operação artística? O fenômeno enquanto fenômeno. A consciência ‘racional’ assume o fenômeno enquanto valor, mas no mesmo instante perde-o como fenômeno. A finalidade última de Kandinsky é levar o fenômeno enquanto tal à consciência, de fazê-lo ocorrer na consciência; como o fenômeno é existência, aquilo que se leva e se faz ocorrer na consciência é a própria existência. Esta é a função máxima da arte.” (ARGAN, Giulio. Arte Moderna. 5ª reimpressão. Ed. Companhia das Letras. 1998).


Yves Klein em seu "Salto no Vazio". Fotografia: Harry Shunk "Um Homem no Espaço! O Pintor do Espaço Lança-se no Vazio" (1960).


domingo, 13 de setembro de 2015

ARTE: UMA ALIADA PARA NOSSO CÉREBRO


Dando continuidade ao nosso desejo de pensar a Arteterapia em seus possíveis embasamentos teóricos, o Blog "Não Palavra" recebe hoje uma pessoa muito especial: Juliana Ohy. Psicóloga e Arteterapeuta, especialista em Psicopedagogia e Psicogeriatria no Rio de Janeiro, hoje nos conta sobre suas paixões e motivações no trabalho com idosos, articulando Neurociência e Arteterapia.

Bem vinda Ju! 



Por: Juliana Ohy


            Muitas vezes quando falamos em cognição, neurônios, conexões nervosas, nos fechamos ao mundo da medicina e da ciência.  E a pergunta que me instigou por muito tempo foi: Será que a arte pode influenciar em uma esfera tão complexa quanto nossa máquina mental: O cérebro?

            Foram questionamentos como esse que fizeram aprofundar meus conhecimentos e unir duas paixões que me cercam: A neurociência e a Arteterapia.

            Isso porque, atualmente, vivemos duas realidades: A primeira é que a população está envelhecendo muito mais do que as gerações passadas e isso faz com que o cérebro viva muito mais anos, acarretando em doenças neurodegenerativas, fruto desse envelhecimento. A segunda, é que as pessoas estão cada vez menos afetuosas, mais distanciadas fisicamente umas das outras e até de si mesmas.

            Para que um ser humano tenha qualidade de vida, acredito que ele necessite de um equilíbrio nos planos social, psíquico, físico, emocional e cognitivo. Pensando nisso, despertei a tentativa em juntar a estimulação, a reabilitação cognitiva e a arte para que juntas pudessem trazer um resultado favorável e completo a minha prática clínica: idosos com demência.

            Uma pintura, por exemplo, desperta sentimentos fluidos e nos remete a emoções muitas vezes esquecidas. Mas além disso, esta é uma excelente ferramenta para estimular a atenção, a percepção, a organização espacial, a coordenação motora dentre outras funções que nosso cérebro, como um experiente maestro, controla no nosso dia-a-dia.

            Desde então, percebo que técnicas expressivas podem auxiliar não somente as questões emocionais, como a Arteterapia bem nos mostra, mas também a desenvolver habilidades cognitivas necessárias para que aquele cérebro já envelhecido retome suas conexões nervosas e volte a funcionar de forma menos passiva.

            A neuroplasticidade nos mostra que o cérebro é capaz de refazer conexões antigas e novas áreas serem estimuladas a partir de exercícios cognitivos. Então, por que não usar a arte como forma de estimulação e também um novo acesso ao afeto perdido?

            Quando entendemos que a arte pode ser um instrumento fabuloso para nosso cérebro, damos novo sentido a vida, às memórias, ao que falamos, ao que enxergamos, ao que ouvimos e ao que sentimos.

            É exatamente nisso que acredito e venho desenvolvendo diariamente técnicas expressivas para que possamos cuidar com mais qualidade dos idosos.




            Para saber mais, acesse o site: julianaohy.com.br ou participe do curso que criei a fim de compartilhar esse conhecimento.


segunda-feira, 7 de setembro de 2015

CUBISMO E A ARTETERAPIA

por Flávia Hargreaves

Picasso, Violino e Uvas, 1912.

 Sobre o Cubismo

Não consigo evitar o incômodo ao ouvir a palavra “fragmentação” fazendo referência ao Cubismo (1). E isto é o que parece óbvio para muitas pessoas, dado a frequência com que escuto este termo. Não quero dizer com isto que o termo precisa ser banido, mas sim usado com cuidado, evitando interpretações reducionistas e equivocadas.

Nestas ocasiões sempre me vêm à mente a imagem de um diamante. Minha imagem de um diamante fragmentado é a de uma pedra estilhaçada, que por descuido caiu, quebrou; enquanto que a de um diamante lapidado, traz o seu aspecto multifacetado, que reflete o que está ao seu redor de modo planejado. Bem, vejo o cubismo como um diamante cuidadosamente lapidado, por especialistas da forma. Esta visão torna, para mim, impossível ver o Cubismo como fragmentação. Ele não divide, ele multiplica.

Mas porque escrever sobre o Cubismo num blog sobre Arteterapia? No que este estudo pode auxiliar no espaço terapêutico?

Para começar, pela mudança de perspectiva proposta pelo Cubismo, abandonando o ponto de vista único para uma visão múltipla. Pela exploração cuidadosa do objeto, pela possibilidade de ver simultaneamente suas várias faces.

Convido o leitor a ler textos sobre Arte como se estivesse lendo Psicologia, fazendo um diálogo com as situações com que nos deparamos no setting, substituindo, por exemplo, os termos “artista” por “cliente” e “objeto/modelo/tema” por “questão”, “situação”, etc. Para mim foi um exercício esclarecedor na questão de porquê “Arteterapia” traz o termo “Arte”, o que muitas vezes é questionado.

Cubismo e a perspectiva
“[...] Durante 500 anos, desde o início da Renascença italiana, os artistas tinham sido guiados pelos princípios da perspectiva matemática e científica, de acordo com os quais o artista via seu modelo ou objeto de um único ponto de vista estacionário. Agora, é como se Picasso tivesse andado 180 graus em redor de seu modelo e tivesse sintetizado suas sucessivas impressões numa única imagem. O rompimento com a perspectiva tradicional resultaria, nos anos seguintes, no que os críticos da época chamaram visão ‘simultânea’ – a fusão de várias vistas de uma figura ou objeto numa mesma imagem. [...]  A rejeição da perspectiva  tradicional, com ponto de vista único, era tão essencial para a materialização das sensações espaciais que Braque desejou transmitir quanto para o desejo de Picasso em transmitir uma multiplicidade de informações em cada objeto pintado.” (GOLDING, 1991, p. 40-43).
O olhar Analítico e Sintético

Sempre tive dificuldade com esta divisão. As definições de cubismo analítico e sintético não respondiam às minhas indagações, nem mesmo a observação das obras que embora claramente diferentes não pareciam se encaixar tão bem nas definições, para mim deixavam a sensação de “faltar algo”. Finalmente, ao ler o artigo de Golding (1991), tudo me pareceu mais claro. Era uma questão de procedimentos.

Segundo Juan Gris (apud. GOLDING, 1991, p. 51) o modo analítico seria partir de uma ideia preconcebida do tema e de uma imagem naturalista e conscientemente analisá-la e reduzi-la de acordo com os princípios da visão simultânea. Devemos entender aqui “redução” no seu aspecto formal.

O processo Analítico parte da representação do objeto, da figura, para a exploração de suas vistas múltiplas, que embora pareça caminhar para a abstração mantêm-se figurativa, mantendo “chaves”, “pistas” para que possamos recompor a figura mentalmente. De qualquer modo, creio ser possível pensar em um olhar abstrato sobre a figura, geometrizando e multifacetando o objeto. Se por um lado nos afasta do objeto, que muitas vezes o confunde com o fundo, com os espaços vazios, por outro nos aproxima pois amplia nossa consciência e conhecimento do mesmo.

Gosto de pensar na ideia de “desdobramento” do objeto, e de “andar ao redor”. Diante de um objeto cotidiano, que “conheço”, percebo que “não o conheço” e “não o compreendo” antes de desdobrá-lo e andar ao redor.

Quantas vezes em terapia, estamos diante de um tema conhecido, de um discurso conhecido, que na verdade mantêm muitas faces ocultas, inconscientes, que se revelam quando observados de novos ângulos. Este seria, a meu ver, o procedimento analítico da arte transposto para o setting arteterapêutico.

Picasso, 1913.

O procedimento sintético, seria o inverso. Parte do abstrato para a representação, para a figura. Parte do que eu ainda não sei, vou buscar nas formas abstratas uma figura/objeto/tema. No cubismo este processo teve forte influência das colagens, os “papiers collés”.  Segundo Juan Gris (apud. GOLDING, 1991, p.52), “[...] quando as formas abstratas se tornam objetos, elas são de certo modo, particularizadas e [...] ficam mais poderosas [...].”

Em Arteterapia nos deparamos com frequência com este procedimento. A partir de manchas, de formas abstratas, recortes, etc., quando ainda não estamos diante de uma figura clara, de um tema, de uma questão,de um símbolo, ... tudo, a princípio parece indefinido, desconhecido e, aos poucos, uma figura se impõe, ou damos um nome à mancha, a particularizamos.

O Cubismo é UM entre os muitos movimentos da História da Arte que podem auxiliar o arteterapeuta no aprofundamento da sua percepção e compreensão das imagens produzidas em terapia. Seja qual for o período da História da Arte estudado, suas obras estarão sempre se referindo a um momento do desenvolvimento da humanidade, a um lugar, a um tempo, e nós estaremos aqui, hoje dialogando com estas imagens e reconhecendo em nós o reflexo destes momentos, destes muitos homens ao longo da história.

Espero que esta leitura desperte o interesse pelo estudo da Arte em Arteterapia, não pela busca de receitas, mas pelo aprofundamento e pela riqueza que nos oferece.

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(1) Movimento da Arte Moderna do início do século XX, tendo como pioneiros Pablo Picasso (1881-1973) e Georges Braque (1882-1963). Destaque para Juan Gris (1887-1927). Forte influência de Cézanne (1839-1906).

Referência Bibliográfica

GOLDING, John. Cubismo.  In : STANGOS, Nikos (org.). Conceitos de Arte Moderna. 2 ed. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1991, p. 38-57