Por Eliana Moraes – MG
@naopalavra
@atelienaopalavrabh
Dentre os estudos escolhidos para 2024, resgatei um livro que já havia
lido por duas vezes. Meu primeiro encontro com “A prática da psicoterapia”
de Carl G. Jung foi na faculdade de psicologia, por volta de 2006, e me
identifiquei amplamente com as palavras do autor. Alguns anos mais tarde, já
profissional atuante de psicologia, reli o livro, solidificando alguns recursos
terapêuticos que eu intuitivamente, já fazia uso.
Neste ano, decidi ler pela terceira vez esse livro, mas agora com as
lentes de uma arteterapeuta propriamente dita, e também como supervisora e
colaboradora para o desenvolvimento de arteterapeutas na formação continuada. Meu
objetivo é buscar na Psicologia Analítica (como em outras abordagens teóricas)
as possíveis aplicações na Arteterapia como prática, saber e profissão. O texto
de hoje é o compartilhamento da primeira parte desse estudo e articulação.
Para nós, arteterapeutas brasileiros, está claro que uma das principais
referências teóricas advindas das teorias da psicologia é a Psicologia
Analítica e sua imensa contribuição para a leitura simbólica das imagens produzidas
nas sessões arteterapêuticas. Além disso, o próprio manejo terapêutico
junguiano é bastante instrumentalizador do arteterapeuta. Entretanto, resgatei
a memória de que um dos pontos que mais me encantaram em “A prática da psicoterapia”
foram as palavras de Jung que compreendia a razão de ser das diversas teorias
da psicologia e sugeria que os representantes de cada ponto de vista se
resguardassem de classificar como errôneos pontos de vista diferentes:
Para os representantes
de cada um dos pontos de vista, era bastante natural e mais simples considerar
errônea a opinião do outro. Uma apreciação objetiva dos fatos reais mostra, no
entanto, que cada um desses métodos e teorias tem sua razão de ser, não
só pelo êxito obtido em certos casos, como também por mostrarem realidades
psicológicas que comprovam amplamente os respectivos pressupostos... a
existência de múltiplos enfoques psicológicos possíveis não deveria ser
pretexto para se considerarem as contradições insuperáveis, e as
interpretações, internamente subjetivas e não mensuráveis. As contradições em
qualquer ramo da ciência comprovam apenas que o objeto da ciência tem
propriedade, que por ora só podem ser apreendidas através de antinomias. (JUNG,
1971/2004, p 2)
Tenho defendido em minhas aulas e escritos, a importância do
arteterapeuta em formação continuada, ter a oportunidade de ampliar seu
repertório teórico, conhecendo outros referenciais e desenvolvendo seu estilo
próprio de ser e atuar como arteterapeuta. Não se trata de fazer uso de
diversas frentes de orientações sem critérios, mas sim a ampliação progressiva de
recursos para a contemplação da diversidade de aspectos humanos a serem acolhidos
no setting. Da mesma forma, se compreendemos a complexidade humana atualizada
nos diversos pacientes/clientes recebidos, podemos considerar que essa diversidade
também irá comparecer nas diferentes interpretações dos fenômenos humanos. Nas
palavras de Jung:
A psicoterapia é um
campo da terapêutica, que se desenvolveu e atingiu uma certa autonomia somente nos
últimos cinquenta anos. As opiniões nesta área foram mudando e diferenciando-se
de várias maneiras. As experiências foram se acumulando e dando lugar a
diversas interpretações. A causa disso está no fato de a psicoterapia não ser
um método simples e evidente, como se queria a princípio. Pouco a pouco
foi-se verificando que se trata de um tipo de procedimento dialético, isto é,
de um diálogo ou discussão entre duas pessoas... O primeiro desses fatos deve
ter sido a necessidade de reconhecer que era possível interpretar os dados
da experiência de diferentes maneiras. Desenvolveram-se diversas escolas de
concepções diametralmente opostas. (JUNG, 1971/2004, p 1)
Em seu livro, ao apresentar a sua teoria prática da psicoterapia, Jung
adverte:
Para prevenir
equívocos quero logo acrescentar que essa mudança de ponto de vista, de modo
algum declara incorretos, supérfluos ou ultrapassados os métodos anteriormente
existentes. Isto porque, quanto mais o conhecimento penetra na essência do
psiquismo, maior se torna a convicção de que a multiplicidade de
estratificações e as variedades do seu humano também requerem uma variedade de
pontos de vista e métodos, para que a diversidade das disposições psíquicas
seja satisfeita. (JUNG, 1971/2004, p 7)
Mais além, ele nos faz um pedido (por vezes esquecido):
Logo, se venho a
público para dizer algo a respeito das minhas ideias, peço, por favor, que isso
não seja interpretado como uma propaganda de uma nova verdade, ou como anúncio
de um evangelho definitivo. (JUNG, 1971/2004, p 36)
As palavras de Jung nos convidam a uma postura profissional adulta, que
busca os embasamentos teóricos sem uma postura arrogante frente a teorias
diferentes, bem como sem eleger uma teoria como um “evangelho” a ser seguido.
Pelo contrário, nos diz que o terapeuta deve buscar os métodos que lhe fazem
sentido e que possa neles depositar confiança:
Só importa os métodos
em que o terapeuta tem confiança. Sua fé no método é decisiva. Se acreditar,
ele fará por seu paciente tudo quanto estiver ao seu alcance, com seriedade e
perseverança, e esse esforço voluntário e essa dedicação têm efeito
terapêutico... (JUNG, 1971/2004, p 4-5)
Aqui registro minha primeira reflexão e sugestão ao arteterapeuta,
conhecedor da Arteterapia como um procedimento terapêutico riquíssimo de modalidades
práticas, referências teóricas e repertórios técnicos: que o arteterapeuta se
permita e permaneça se atualizando e buscando conhecer as tantas possibilidades
proporcionadas pela Arteterapia. E que passo a passo, dia após dia, vá
costurando sua colcha de retalhos, que construirá sua identidade e estilo
profissional, singular e irrepetível.
Uma Arteterapia não diretiva/invasiva
Jung adverte aos terapeutas sobre a necessidade de não se colocarem em
uma posição de saber superior. Compreende que um terapeuta não tem condições de
julgar a integralidade daquele sujeito e aponta que o caminho do processo
terapêutico é dialético, abrindo espaço para que o outro se apresente, sem
limitá-lo com pressupostos teóricos:
Se, na qualidade de
psicoterapeuta, eu me sentir como autoridade diante do paciente e, como médico,
tiver a pretensão de saber algo sobre a sua individualidade e fazer
afirmações válidas a seu respeito, estarei demonstrando falta de espírito
crítico, pois não estarei reconhecendo que não tenho condições de julgar a
totalidade da personalidade que está lá à minha frente. Posso fazer
declarações legítimas apenas a respeito do ser humano genérico... [mas] só
posso afirmar sobre a individualidade de outrem, o que encontro em minha
própria individualidade, corro o risco, ou de violentar o outro, ou de
sucumbir por minha vez ao seu poder de persuasão. Por isso, quer eu queira,
quer não, se eu estiver disposto a fazer o tratamento psíquico de um
indivíduo, tenho que renunciar à minha superioridade no saber, a toda e
qualquer autoridade e vontade de influenciar. Tenho que optar
necessariamente por um método dialético, que consiste em confrontar as averiguações
mútuas. Mas isto só se torna possível se eu deixar ao outro a oportunidade
de apresentar seu material o mais completamente possível, sem limitá-lo
pelos meus pressupostos. (JUNG, 1971/2004, p 3)
O autor ainda complementa suas orientações dizendo que o terapeuta deve
sempre manter seu olhar sobre a dimensão individual, que ultrapassa qualquer
possibilidade de previsão e interpretação:
Como explicamos na
introdução, a parte individual é única, imprevisível e não interpretável.
O terapeuta deve renunciar neste caso a todos os seus pressupostos e técnicas e
limitar-se a um processo puramente dialético... em fazer da atitude menos
preconcebida possível. Em outras palavras: o terapeuta não é mais um
sujeito ativo, mas ele vivencia junto um processo evolutivo individual.
(JUNG, 1971/2004, p 5)
Trazendo as orientações de Jung para a Arteterapia propriamente dita,
precisamos reconhecer que como arteterapeutas possuímos um desafio o mais. Quando
compreendemos o manejo arteterapêutico, que ouve a demanda do sujeito e lhe oferece
aquele material (o estímulo projetivo, a materialidade, o processo criativo...)
pertinente e facilitador, faz-se aqui um grande desafio para que essa condução
não seja diretiva e invasiva. E mais, que a leitura das imagens resultantes não
sejam fruto de interpretações projetivas, (advinda dos conteúdos psíquicos do
próprio arteterapeuta), abusivas, previsíveis e gerais.
O desenvolvimento do arteterapeuta em sua formação continuada colabora
que ele crie recursos para a sustentação de uma escuta sensível, num lugar de
mediador (não de protagonista), decodificando o pedido do paciente/cliente em
sua demanda terapêutica quanto ao
material que lhe será pertinente naquele contexto clínico.
O fazer arteterapêutico e a individuação
Um dos principais pilares da Psicologia Analítica está no caminho
individual de “cura” de cada sujeito: sua individuação, seu autoconhecimento e seu
processo de se tornar aquilo que ele é. E que dessa forma tenha condição de
assumir a coragem e a responsabilidade de ser quem é:
Em todos esses casos,
o médico deve deixar aberto o caminho individual da cura, e neste caso o
processo terapêutico não acarretará nenhuma transformação da personalidade, mas
será um processo, chamado de individuação. Isso significa que o paciente se
torna aquilo que de fato ele é. (JUNG, 1971/2004, p 8)
Com isso, não se visa
o “individualismo”, mas unicamente uma forma de estabelecer a condição
prévia indispensável a todo ato responsável, que é que cada qual se conheça a
si mesmo e a sua própria maneira de ser, e que tenha a coragem de assumi-la.
O homem só passa a ser responsável e capaz de agir, quando existe a seu modo.
(JUNG, 1971/2004, p 24)
O método vivencial de processos criativos e a formações das imagens advindas
do universo simbólico do sujeito, são especificidades da Arteterapia dentre os
procedimentos terapêuticos, colaborando e potencializando cada indivíduo rumo ao seu
autoconhecimento, responsabilização de seus atos e conteúdos psíquicos bem como
a apropriação e coragem de assumir-se em sua integralidade.
Encerrando essa primeira etapa de estudo e aplicação do livro “A
prática da psicoterapia” em territórios arteterapêuticos, fica claro que
ser arteterapeuta não é fácil. É um caminho trabalhoso de desenvolvimento
continuado, com seus altos e baixos, luzes e sombras, dores e delícias... Mas se
ao longo dessa caminhada surgir a sensação de fracasso ou incapacidade,
lembremos das palavras de Jung:
Na minha prática
psicoterapêutica de quase trinta anos acumulei uma série considerável de
fracassos, que me influenciaram mais do que meus sucessos... O psicoterapeuta
pouco ou nada aprende com os sucessos, principalmente porque o fortalecem nos
seus enganos. Os fracassos, ao invés, são experiências preciosíssimas, não só
porque através deles se faz a abertura para uma verdade maior, mas também
porque nos obrigam a repensar nossas concepções e métodos. (JUNG, 1971/2004, p
36)
Em um próximo texto continuaremos nosso bate papo entre “A prática
da psicoterapia” e a prática da Arteterapia.
Referência Bibliográfica:
JUNG, Carl G. A prática da Psicoterapia.
______________________________________________________________________________
Sobre a autora: Eliana Moraes
Arteterapeuta e Psicóloga
Pós graduada em História da Arte
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
Cursando MBA em Logoterapia e Desenvolvimento Humano
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia.
Faz parte do corpo docente de pós-graduações em Arteterapia: Instituto FACES - SP, CEFAS - Campinas, INSTED - Mato Grosso do Sul.
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia online, sediada em Belo Horizonte, MG.
Autora dos livros "Pensando a Arteterapia" Vol 1, 2 e 3
Organizadora do livro "Escritos em Arteterapia - Coletivo Não Palavra"