Colagem tridimensional de Ferreira Gullar
Por Patricia Serrano
- RJ
Por ocasião do trabalho
de conclusão do módulo Gestalt da Arte – Percepção e tomada de consciência do
curso de formação em Arteterapia que participo, tive a oportunidade de entrar
em contato com os principais conceitos da Gestalt e articular com as técnicas
expressivas da Arteterapia.
Trabalhamos duas ferramentas da Gestalt Terapia: o conceitos
maximizando e minimizando. Juliano (1999) nos traz as seguintes definições:
Maximizando – quando o cliente
fica preso a detalhes, incapaz de ter uma visão geral e ampla, é possível
sugerir que mude de lugar na sala, assuma outra posição, concretamente olhando
por um outro ponto de vista (...) que assuma uma posição na qual possa ter uma
perspectiva totalmente diferente.
Minimizando – ocorre quando o
cliente precisa “retirar” energia de um certo tema e é necessário trabalhar
novas perspectivas.
Desses conceitos extraímos basicamente a ideia de uma
mudança de ponto de vista, uma nova perspectiva, mudança de posição e ampliação
do olhar. Muitas vezes, diante do sofrimento psíquico, o indivíduo paralisa e
tem dificuldade de identificar um novo olhar sobre o problema e encontrar
saídas.
Segundo Dalgalarrondo (2008) nas síndromes depressivas, por
exemplo, dentre vários sintomas, há uma predominância de sentimentos de
tristeza e tédio, desesperança, ruminações com mágoas antigas e dificuldade de
tomar decisões. O referido autor nos traz a poesia de Fagundes Varella que
representa bem esse estado de sofrimento psíquico:
E pouco a pouco se esvaece a bruma,
Tudo se alegra à luz do céu risonho
E ao flóreo bafo que o sertão perfuma.
Porém minh’alma triste e sem um sonho
Murmura olhando o prado, o rio, a espuma:
Como isto é pobre, insípido, enfadonho!
O poeta nos fala de um olhar empobrecido, insípido e
enfadonho, e nós terapeutas de que forma nos colocamos diante dessa demanda na
clínica tanto individual quanto grupal? De que forma podemos nos utilizar das
técnicas expressivas para minimizar esse sofrimento e proporcionar no setting
terapêutico um novo olhar e/ou um novo posicionamento?
A partir desses questionamentos entramos em contato com a
possibilidade criativa através do trabalho com o tridimensional.
Segundo Moraes (2019) o tridimensional tem como propriedade
a possibilidade de deslocar o olhar, de explorar outras perspectivas, obter
novas percepções de um mesmo objeto, cenário ou imagem, bastando para isso
movimentar-se. Estimula a busca de soluções, o reconhecimento dos recursos, a
criação de estratégias e suas execuções, além de trabalhar a proatividade, o
pensar fora da caixa, em especial quando explorada a pluralidade dos materiais.
TRABALHO DESENVOLVIDO
Colagem tridimensional de Ferreira Gullar
Munidos desses conceitos, desenvolvemos a técnica grupal
com o seguinte tema: Ferreira Gullar e a Colagem Tridimensional. Ferreira Gullar,
poeta, escritor e crítico de arte, poucos anos antes de sua morte, em 2016,
enveredou pelas artes plásticas, fazendo colagens em relevo que, segundo ele,
nasciam do acaso, conforme recortava materiais de cores diversas. Com a palavra
o escritor descrevendo seu processo criativo:
“Estava recortando um papel de cor verde,
quando de repente o avesso desse papel, que era de outra cor, se mostrou: colei
o recorte assim mesmo, isto é, a forma verde que recortara e mostrando o avesso
de cor cinza, que passei a fazer em formato maior.”
Inspirados por esse artista das palavras e por que não das
cores, também nos utilizamos de sua poesia para sensibilizar o grupo antes da
atividade em si. Segue “Traduzir-se”:
Uma parte de mim
é todo mundo;
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera;
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta;
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente;
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem;
outra parte,
linguagem.
Traduzir-se uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?
Ferreira Gullar , Na Vertigem do Dia. 1980.
Sensibilizados visualmente e através das palavras de
Ferreira Gullar, iniciamos a atividade propriamente dita.
Inicialmente propomos aos participantes que entrassem em
contato com as folhas A4 coloridas e fizessem a escolha de duas delas de cores
distintas colando uma na outra. Disponibilizamos tesouras, estiletes e cola para
que através do recorte, colagem e dobradura eles fossem encontrando formas que
saíssem do bidimensional para o tridimensional.
Após essa etapa, sugerimos que a produção fosse manuseada
de maneira que o participante pudesse observar novos ângulos e perspectivas da
forma tridimensional que criou.
Segundo Moraes (2019) colocar o sujeito na experiência com
o material significa colocá-lo para agir sobre ele em suas questões psíquicas.
Sugere que o arteterapeuta atente para os “verbos” ou às ações que cada
material proporcionará externa e internamente em seu cliente. No caso da
construção da escultura, por exemplo, portanto o tridimensional, a referida
autora nos fala que as ações provocadas são: estruturar, construir,
reconstruir, edificar, concretizar, materializar, dar corpo, fazer crescer,
levantar, ficar em pé, erguer, verticalizar, buscar soluções, formar
estratégias, executar, realizar, “batalhar”, persistir.
Importante estar atento a esses verbos pois eles vão nos
possibilitar fazer a ligação entre o discurso do cliente, portanto a sua
necessidade, com a técnica expressiva de escolha para trabalhar a questão.
No compartilhamento da atividade foi visível o quão
surpreendente e potente se deu o processo de criação e esses “verbos” estavam tão
presentes nos discursos dos participantes. E para além desse processo criativo
inicial, que por si só já é riquíssimo de reflexões, essa técnica ainda nos
permite propor o estímulo a um novo olhar sobre o objeto como um exercício
concreto de ver as situações de vida sob uma nova perspectiva - o que muitas
vezes se faz necessário para a manutenção da saúde mental.
Estamos distantes
e com a saudade
enxergamos os detalhes
Zack Magiezi
Referência Bibliográfica:
DALGALARRONDO, P. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. Porto Alegre: Artmed, 2008.
GULLAR, F.
Traduzir-se In: GULLAR, FERREIRA. Na
Vertigem do Dia. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
JULIANO, J.C. A arte de restaurar histórias: diálogo
criativo no caminho pessoal. São Paulo: Summus editorial, 1999.
MORAES, E. Pensando a Arteterapia, Vol. 2. Divino
de São Lourenço: Semente Editorial, 2019.
KAZ, L. A
revelação do avesso de Ferreira Gullar. Texto publicado do site da revista
Veja, Rio de Janeiro, 2014 (Acesso em: https://www.uqeditions.com/artigo-ferreira-gullar)
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Sobre a autora: Patrícia Serrano
Psicóloga
Arteterapeuta em formação
Pós-graduada em Psicologia Hospitalar pela FIOCRUZ
Atendimentos clínicos individuais
Atualmente compõe a Equipe Não Palavra na gestão dos materiais e eventos