Por Maria Cristina Resende
A
morte é a maneira mais brutal de guilhotinar os fios da projeção. Estes, que se
comportam como elásticos, retornam com a força proporcional à sua tensão e
invadem, com a mesma brutalidade que fora cortada, as intimidades da psique.
Ali, tocam e acordam quietos conteúdos que habitam o entorno daqueles outrora
projetados, e agora, todos insones, reclamam e berram ao pé do ouvido do Ego,
que desorientado com tantas informações pode recorrer a qualquer patologia para
salvar-se do não preparado confronto, do não trabalhado “recolhimento de suas
projeções”.
Resta
a ele o apoio de alguma ferramenta terapêutica para retomar suas projeções e
restabelecer a dinâmica psíquica que fora acometida pelo mal súbito da
realidade. Esta revela que na verdade quem morre não é o outro, mas o outro em
nós. E mais difícil do que agüentar a morte de alguém é agüentar a morte de um
de nós!
Crises
de ansiedade, crises de pânico, fobias ou problemas do sono podem ser uma
dessas balsas que o Ego se agarra diante da possibilidade de um naufrágio
psíquico. O que fazer diante do horror do incontrolável? Diante da impotência
humana sobre os ciclos de vida-morte-vida? Não acredito que o caminho seja ir
contra este movimento, mas a favor, ou seja, não se segurar em bóias que na
verdade só deixam à deriva os afetos “abandonados”, mas mergulhar o mais fundo
possível, sentir a dor, refletir sobre esses conteúdos que invadem a mente, mas
que um dia estiveram depositados em outrem. Deixar que esses vizinhos, agora
acordados e solidários àquele que retorna só para sua casa, falem e se
apresentem.
Ao
fazer esta, nada fácil, tarefa é possível compreender quem de nós esteve junto
com aquele que partiu, como o olhávamos, o entendíamos, o que esperávamos, como
o sentíamos e principalmente, o que ele nos evocava. Nesse processo, além de
sermos “obrigados” a nos reaver com o que projetamos no outro, se faz
necessário que nos apresentemos aos conteúdos vizinhos, que agora querem seu
espaço.
Essas
foram as minhas percepções ao longo dos primeiros dias do meu processo de luto.
Perdi uma irmã de apenas 11 anos, literalmente de um dia para o outro, não
tivemos tempo para compreender que havia um processo de morte e que aquela
pessoa, e tudo meu que estava nela, estava indo embora.
A
partir das minhas reflexões e da leitura que a Psicologia me dá, enquanto
Psicóloga que estou, percebi em mim mesma e nos meus familiares tudo o que
orientava e pontuava para meus pacientes de forma muito viva e gritante. Com a
ajuda da literatura tenho a oportunidade de compreender mais a fundo esse
processo e de poder estar aqui hoje passando adiante minhas percepções e
conclusões a nível profissional.
A
compreensão do processo de luto é uma tarefa que exige muita paciência e
reflexão por parte de quem vive, de quem está em seu entorno e principalmente
do profissional que trabalha com alguém que vive este momento. Quem vive,
acredita, durante um bom tempo, que não resistirá à tamanha dor, busca culpar-se,
punir-se pelo que fez ou deixou de fazer. Quem está ao seu entorno, muitas
vezes não agüenta compartilhar o sofrimento e, ou se afasta, ou busca através
de frases de efeito, de conselhos clichês e até mesmo de curas mágicas, possibilidades
externas para ajudar a “acabar” com a dor (talvez com o objetivo máximo, ainda
que oculto, de acabar com a própria dor). Por fim, o profissional precisa de
paciência e de uma escuta refinada para saber que este é um movimento muito
singular da psique e que tem um tempo próprio, e não as 2 semanas dadas pelo
nosso “adorável” DSM-V. um tempo onde lentamente a fala e/ou as expressões
realizadas no consultório podem dar indicativos desse movimento psíquico, para
onde ele aponta e o quem vem junto com ele. Freud já dizia em Luto e Melancolia
que
“embora o luto envolva graves
afastamentos daquilo que constitui a atitude normal para com a vida, jamais nos
ocorre considerá-lo como sendo uma condição patológica e submetê-la a
tratamento médico. Confiamos que seja superado após certo lapso de tempo, e
julguemos inútil ou mesmo prejudicial qualquer interferência em relação a ele”.
Para
Jung, em nossa psique reside um grande conjunto de conteúdos que chamamos
complexos. Estes estão conectados uns com os outros, assim como ilhas de um
arquipélago que se conectam através de um substrato em comum. Nossos complexos
se apresentam para nós através das projeções, movimento natural da psique em
que olhamos o outro através das nossas lentes, vemos no outro partes de nós,
boas ou não que ficam carregadas da nossa energia psíquica. O que tornam as
relações mais próximas muito afetivas, ou melhor, afetadas por nossos
conteúdos. No luto, a perda do objeto dessas projeções, faz com que elas
retornem para nossa psique, e quando ocorre um movimento muito brusco de
introjeção da libido, como dito anteriormente, esses complexos ficam carregados
e acabam por invadir o Ego com essa sobrecarga de energia, daí as diversas
informações que ele recebe e que podem bagunçar ainda mais o processo doloroso
do luto.
Por
isso, o profissional deve atuar sobre o outro de modo a proporcionar um espaço
onde seja possível o esvaziamento desses conteúdos, um lugar onde se possa falar
sobre a dor, sobre os temores, as lembranças e sobre tudo mais que venha com
esse processo. Falar sobre a morte é importante, lembrar da morte do ente
querido é importante, assim disse Freud:
“Cada uma das lembranças e
expectativas isoladas através das quais a libido está vinculada ao objeto é
evocada e hipercatexizada, e o desligamento da libido se realiza em relação a
cada uma delas”
Ou
seja, é preciso que cada memória e momento que venha à tona sejam colocados
através de palavras ou expressões plásticas para que essa energia seja aos
poucos liberada para realizar novos fios de projeção, pois “quando o trabalho do luto se conclui, o ego fica outra vez livre e
desinibido”.
É
quando a arteterapia é muito bem vinda neste penoso processo, pois pode ser um
instrumento de descarga dos conteúdos nos quais estamos tocando, ou sendo
tocados e que nos traz a possibilidade de ter um material fora de nós para
olhar, refletir e falar sobre. As cores podem ser transformadas, suavizadas ou
intensificadas, os materiais podem sofrer desdobramentos e se tornam aliados no
processo de elaboração e de liberação dos afetos “abandonados” em nossa psique.
Os medos ganham forma, a tristeza, a culpa ou as punições ganham cara e nome,
podemos conversar com elas.
Pinturas
realizadas com cores aguadas nos permitem a sutileza de entrar em contato com emoções
profundas, com o não controlável, com o soltar as mãos através das tintas que
escorrem sobre os papeis. As colagens nos ajudam a organizar e a pescar os
rastros projetados, a argila toca no homem mais arcaico e traz a tona o que
pode se esconder lá no fundo de nossa mente, e principalmente a livre expressão
que nos mostra onde e como está o processo.
O
uso de ferramentas da arteterapia no processo de luto não deveria se limitar aos
consultórios após o processo já instalado. Percebi que as instituições
hospitalares oferecem quase zero de ajuda aos familiares e pacientes em estados
terminais ou em risco grave de vida. Penso que a Psicologia Hospitalar e a Arteterapia
no contexto hospitalar podem ajudar a trabalhar esses laços projetivos,
inserindo o tema da morte em reuniões com o grupo familiar trazendo a tona
questões relacionadas à perda daquele ente querido, às imagens mentais e aos
afetos latentes naquele momento tão delicado e singular na vida de um
indivíduo. Espaços dentro das instituições onde, através das técnicas
expressivas, toda a angustia que envolve esse momento possa ser expressada.
Com
isso, acredito que a morte ganhe um sentido maior que a perda objetiva de alguém,
mas uma possibilidade de reencontrar consigo mesmo, uma oportunidade única,
ainda que muito dolorosa, de juntar nossos fragmentos e buscar aquilo que
realmente é caro para nós, aquilo que realmente nos move e nos motiva, aquilo
que nos faz acordar todos os dias e ir em busca, ainda que seja a própria
busca!